Antonio Mendes de Oliveira Castro
(1950 - )


Certas “descobertas” sobre o comportamento humano e animal que vejo publicadas na imprensa com grande estardalhaço causam-me espanto: será que não sabiam disto?! No final da primavera de 1995, quando comecei a dar forma ao meu primeiro livro, no qual já vinha trabalhando desde o final da década dos 80, li nos jornais a notícia do lançamento de um livro que “provava” que os animais tinham alguns sentimentos iguais aos nossos. O livro virou “best-seller” na Europa. A pergunta que então me ocorreu foi como podia algo tão óbvio surpreender tanto as pessoas? Será que essas pessoas surpresas nunca foram capazes de observar com atenção pelo menos o comportamento dos animais domésticos com os quais conviviam? Nunca tiveram um cachorro que ficasse alegre ou triste com a sua presença ou ausência? Jamais viram uma vaca mugir quase desesperadamente horas a fio por sua cria desmamada? 

Nestes cerca de 20 anos que me dediquei ao estudo do comportamento humano, notei que a grande dificuldade de nos entendermos é que jogamos para o plano do transcendental os nossos próprios sentimentos. Acreditamos que somos os únicos seres vivos da Terra a ter sentimentos elaborados. Os demais animais no máximo têm instintos. Somos nós bem lá no alto, perto do “Altíssimo”, à sua imagem e semelhança, e cá embaixo o resto dos animais para nos servir de pasto. A descoberta da química do amor, trabalho de cientistas americanos, foi capa da revista TIME em fevereiro de 93, assim como de várias outras revistas do mundo. Cerca de 3 meses antes da publicação dessas pesquisas, eu havia dado uma palestra onde expus minhas teses sobre o comportamento humano para um grupo de cientistas e tecnólogos com quem trabalhava.

Na oportunidade usei, como exemplo central da minha exposição, o que deveria ser a química do amor, então não revelada ao mundo. Citei, inclusive, algumas substâncias que deveriam estar presentes no processo, como a oscitocina, associada à alegria ou felicidade, conclusão que tirei dos poucos artigos sobre a química do comportamento até então publicados. Fui recebido com descrédito, desconfiança e senti ter provocado até uma certa repulsão física dos presentes ao revelar minhas teses, que foram consideradas perigosas para não dizer fascistas. Um comentário especialmente interessante do qual lembro daquele dia foi “Você está querendo dizer que nós somos iguais aos animais?! O Homem raciocina: ele pode sentir com o raciocínio”, afirmação que exatamente não resiste a um mínimo de raciocínio. Assim foi durante todo o tempo em que me bati por minhas teses sobre o fundamento biológico do comportamento humano. 

Quanto mais estudava, refletia e, principalmente, lia sobre conclusões de pesquisas científicas sobre o tema comportamento animal, inclusive o do Homem, mais seguro ficava do modelo que vinha desenvolvendo. As pessoas dos mais variados campos do conhecimento com quem debatia tais teses, no entanto, ou rechaçavam com veemência meus argumentos, ou fugiam do tema por ser ele absolutamente incômodo ou anti-romântico. Não lhes tiro suas razões. Afinal, qual é graça de saber que o amor tem uma base química, principalmente numa época em que as pessoas parecem estar vívidas pelo místico. Ora, falar de química e ciência se o que interessa aos nossos pobres seres carentes de vida interior são os magos e a alquimia! Nunca conheci uma pessoa que fosse verdadeiramente atéia e materialista. Mesmo os que se dizem como tal não resistem a uma leitura do seu horóscopo ou a jogar as cartas do Tarô. Entendo essa postura como motivada pela enorme dificuldade que o Homem tem de lidar com a consciência de que vai morrer um dia e que ele é apenas mais um ser vivo na Terra, tão importante para a Natureza quanto a ameba, com quem partilha alguns genes. Para nós é absolutamente fundamental ser alguém único, com um propósito particular na vida, com um destino só nosso. E, evidentemente, a vida precisa continuar em um plano transcendente, de preferência sem o corpo físico tão animal, mas apenas com a alma “só raciocínio e sentimentos”. Essa visão transcendental da vida humana influenciou toda a forma do Homem estudar a si próprio. Não é por acidente que as ciências que estudam o Homem tenham se dividido em dois grandes grupos: de um lado as ciências biológicas ou médicas e, de outro, as ciências sociais. Unir as duas no caso do Homem é tabu. 

Menos hoje – após o surgimento da psicologia evolucionária que estuda o comportamento de uma forma multidisciplinar – do que no meu tempo de faculdade nos 70, quando a união era considerada puro fascismo. Quando o Homem estuda os animais não há esta dicotomia. Não existe a psicologia das abelhas ou a sociologia das formigas. Tampouco uma ciência política particular dos hipopótamos. Os zoólogos e biólogos especializados em animais os estudam como um todo orgânico-comportamental. Se as abelhas dançam quando voltam com néctar para a colméia, alguma razão biológica há de ter . Se os pássaros cantam é para cativar uma companheira. Já se nós dançamos ou cantamos há de ser apenas para puro conforto de nossa mente cansada - reza a crença geral. De todos os cientistas que estudaram o comportamento humano e que tive a oportunidade de estudar, os zoólogos foram os que mais me impressionaram por sua capacidade de visão integrada do ser humano. Foi, aliás, um livro escrito pelo zoólogo inglês Desmond Morris (“O Macaco Nu”) que me motivou a repensar tudo o que eu achava que sabia sobre o comportamento humano. 

Esse livro, que recomendo a todos os que se interessam pelo assunto, descrevia de forma fascinantemente detalhada os fundamentos biológicos de alguns dos mais importantes sentimentos, como o amor, o ódio e a agressividade, comparando-nos com outros primatas. Eu o li em 1975 (a primeira edição é de 1967). A mensagem que captei foi tudo no comportamento humano deve ter uma base biológica, alguma relação com a preservação da própria vida ou da espécie, já que é assim com os outros seres vivos da Terra e não há razão para sermos diferentes. Desde então não parei mais de pensar no assunto. Minha formação universitária é na área das ciências sociais. 

Graduei-me em 1974 em Administração Pública. Fazia parte do currículo o estudo de antropologia, sociologia, psicologia e ciência política. Na época fiquei impregnado da visão que aqui condeno da transcendência do ser humano. Nossos professores, muitos marxistas, defendiam a tese do Homem nascendo como “um livro em branco”, sobre cujas páginas o local e a época de desenvolvimento da vida escreveriam a sua maneira de ser. Lembro-me que achava absurdo qualquer exemplo em psicologia que utilizasse o comportamento animal para fazer analogias com o comportamento humano. Foi assim até conhecer o livro de Morris. Daí comecei a pensar que a cultura, como nos faziam crer nossos mestres, não poderia ser tão determinante do comportamento. A genética teria que ter mais espaço. Mas não tinha como contrapor. Um livro lido não era suficiente para desafiar mestres e ideologias, principalmente estas últimas. Continuei então com minhas pesquisas. 

Praticamente nada havia para ler sobre o assunto que juntasse biologia e ciências sociais. A psicologia evolucionária ou a sociobiologia não haviam sido ainda criadas, muito menos tinham seus fundamentos sido aceitos pelo pensamento dominante. Restava-me observar e refletir. Usei como método o partir de um modelo e observar para ver se as peças nele se encaixavam. Darwin fez assim. Mas Darwin tinha uma formação técnica que eu não dispunha. Eu precisava de mais “arquivos técnicos” na cabeça para desenvolver e comprovar o modelo. Foi por força do exercício profissional que adquiri mais conhecimentos sobre ciência, genética e vida. Logo ao graduar-me fui trabalhar numa agência governamental de fomento à ciência e tecnologia, tendo passado também por instituições de pesquisa tecnológica.

 No final da década dos 70 tornei-me fazendeiro, lidando com pecuária e agricultura, o que me forçou ao estudo técnico do assunto. Mais tarde, no começo dos 80, comecei a trabalhar em uma empresa de biotecnologia vegetal, onde fui obrigado a aprender mais sobre genética e travei contato mais íntimo com vários cientistas da área. Ali dominei alguns conceitos e terminologia que me facilitaram grandemente a leitura de textos técnicos e a formulação das minhas próprias teorias. Durante muito tempo relutei em colocar essas teorias em livro e publicá-las. As reações contrárias às minhas teses sempre foram muito fortes e eu, tendo vivido tanto no ambiente científico, tinha dúvidas quanto ao meu próprio método científico. Até que me convenci de que formular um modelo e testá-lo via observação é cientificamente válido. Outra fonte de motivação para que escreva é que tudo o que vem sendo publicado sobre o comportamento humano recentemente, com enfoque na biologia e na genética, tal como a descoberta da química do amor e outras, comprova o que concluí ao longo dos anos basicamente por observação e reflexão. E agora temos provas científicas irrefutáveis, o que eu não dispunha tempos atrás. Não adianta mais fingir que não ouviu ou fazer cara de nojo. O amor é químico e se é químico tem que ter fundamento biológico-genético.

Sei que é difícil aceitar esse fato. Veja, por exemplo, parte do texto da reportagem da revista Time sobre a química do amor que mencionei acima: 

(...)"Já que é possível para os humanos andarem juntos e reproduzirem sem amor, todos os suspiros e desfalecimentos e sonetos escritos sobre o assunto têm sido vistos por muitos pesquisadores pragmáticos como um ponto sem importância na história da evolução. Daí, biólogos e antropólogos assumiram que seria inútil, talvez frívolo, estudar as origens da evolução do amor, a maneira como ele se codificou em nossos genes ou ficou impresso em nossos cérebros. Cientistas simplesmente assumiram que o amor - e especialmente o amor romântico - foi apenas uma elaboração da mente, posta lá há cinco ou seis séculos, quando as sociedades civilizadas acharam tempo livre suficiente para se permitir conversas floreadas". "(...) a ciência parece que chegou a um ponto de vista que nunca antes foi tomado como certo: o romance é real. Não é mero conceito: está incrustado em nossa biologia. Colocar este ponto logicamente é mais difícil do que parece. A discussão do amor como uma ilusão cultural foi por muito tempo considerada irrefutável." 

Eu confesso que adoro quando coisas irrefutáveis são refutadas. Mas se já é difícil aceitar que o amor não é mera ilusão cultural, mais difícil ainda é entender que a existência de uma base genética nos sentimentos determinam que eles têm que ter uma função biológica. Os sentimentos são funcionais. Eles não existem à toa. Curiosamente, a maioria das pesquisas que tenho lido sobre o tema param quando identificam a materialidade do sentimento e não se perguntam porque o organismo dotou-nos ou se dotou dessa ou daquela habilidade. Qual a função do amor? Qual a função biológica ou vital do amor? E do ciúme? Da amizade? Do preconceito? Parece que existe um bloqueio cultural ou ideológico que impede que pessoas comuns e mesmo os cientistas se façam essas simples perguntas. Morris, no Macaco Nu, dizia que o amor tem como função conduzir duas pessoas para a formação de um par, o que seria a base do acasalamento. Isso na década dos 60. Mais de 30 anos depois os cientistas do comportamento humano continuam com dificuldades em tratar o tema sentimento. 

Conheci o pessoal que criou o Genismo em listas de discussão da Internet. É um grupo que tem a coragem dos jovens para desafiar as formas de ver a vida impostas pelas culturas de onde nascemos. Nesse mundo tão submetido ao consumismo, o Ser Humano eternamente tão conflituoso precisa encontrar novas formas de viver e conviver. É visível que estamos destruindo o planeta e com ele nós mesmos. Admitir-se como animal que tem seus instintos determinados pelos genes e que isso leva a comportamentos predatórios e destrutivos é fundamental para que controlar este processo autodestrutivo. Aprofundar o conhecimento de como isso tudo pode estar marcado em nossos genes parece ser o objetivo do Genismo. E com eles estou tentando colaborar.

Meus artigos e livros  versam exatamente sobre esse tema: o dos fundamentos biológicos e genéticos dos nossos sentimentos e de nossa maneira de ser. Passei todos esse anos pesquisando o assunto para apresentar minhas conclusões. Muitos não vão gostar delas. É inevitável. Elas contrariam algumas de nossas crenças mais arraigadas. Mas devemos enfrentá-las. Evoluções reais e importantes se dão exatamente quando contrariamos a forma de ser ou de pensar que vige até aquele momento. E o ser humano precisa evoluir. Todos nós sabemos disso. Muito poucos estão satisfeitos com o que somos como indivíduos e como espécie. Mas os caminhos para essa evolução são dificilmente identificáveis. Experiências de modificações mais radicais e coletivas, como o socialismo, fracassam. No tratamento do indivíduo ou da sociedade, as religiões, as ideologias e o pensamento filosófico também não conseguem progressos significativos. O que se passa? 

Creio que o problema está na forma incorreta de se encarar o ser humano, no qual corpo e mente são entes estudados de forma separada. È preciso estudar o Homem de uma forma mais integrada. Peço apenas que o leitor ao ler meus textos tente deixar, tanto quanto possível, suas crenças religiosas ou ideológicas à parte. Elas vão atrapalhar muito o entendimento, pois procuro descrever a realidade como a vejo, sem submeter-me a restrições ideológicas, religiosas ou de preconceitos de qualquer espécie, algo muito comum nos tratados das ciências sociais e que exatamente dificultam terrivelmente o entendimento da nossa realidade como ser. Vamos caminhar no estudo do comportamento humano da forma mais simples possível, utilizando termos de domínio geral e exemplos do dia-a-dia, para que tudo possa ser entendido e internalizado por qualquer pessoa, independentemente de sua formação. 


Compre: "Um Novo homem para um Novo Milênio", livro onde o autor explora e aprofunda os conceitos deste texto.