Vencendo na Raça
Por Rafael Kenski, Revista SuperInteressante Abril/2003

Novas pesquisas nas ciências humanas e biológicas mudam o conceito de raça e mostram os estragos que o racismo faz na sociedade. Finalmente os cientistas estão prontos para responder algumas das perguntas mais
incômodas a respeito de nós mesmos

Poucas coisas mudaram no mundo nos últimos 100 mil anos. Naquela época, os primeiros seres humanos modernos surgiam na África e começavam a se espalhar por outros continentes. Eles eram praticamente idênticos aos mais de 6 bilhões de pessoas que habitam hoje o planeta. De lá para cá, os únicos retoques que a nossa espécie sofreu foram pequenas adaptações aos diferentes ambientes  mudanças exteriores para lidar melhor com lugares mais frios, secos ou com ventos mais fortes. O lado triste dessa incrível capacidade de adaptação é que as diferenças físicas foram usadas para avaliar pessoas à primeira vista e atribuir-lhes qualidades e defeitos. Milhões foram escravizados, mortos ou discriminados por causa da aparência física. Por que só agora os cientistas começam a entender as diferenças entre os seres humanos? Tanta demora para tratar do assunto tem um motivo: as primeiras tentativas científicas de analisar as raças humanas levaram quase sempre à conclusão de que algumas eram mais inteligentes e criativas  ou seja, superiores  às outras. O resultado foram as tentativas de criar uma raça "pura" e as ideologias que levaram a genocídios. "As tragédias geradas por essas teorias fizeram a ciência aceitar que as raças não tinham nada de biológico e que eram apenas um produto da sociedade. O que vemos agora é a tendência de volta à biologia", diz o antropólogo João Baptista Borges Pereira, da Universidade de São Paulo (USP). Os cientistas estão confiantes que dessa vez o resultado será diferente. "Estudar as diferenças humanas é perigoso porque sempre existirão pessoas que distorcerão os estudos, mas acredito que os cientistas e o público amadureceram o suficiente para seguirmos com as pesquisas", diz a antropóloga Nina Joblonski, da Academia de Ciências da Califórnia, Estados Unidos.

Ao mesmo tempo, as ciências humanas avaliam como o racismo é difundido e prejudicial. Nesse ponto, o Brasil está entre os piores países do mundo. O problema é complexo, mas podemos amenizá-lo. Só que, antes, é preciso saber como tudo começou.

COMO NOS TORNAMOS DIFERENTES?

Ao contrário dos chimpanzés e demais primatas, o homem não possui cabelo por todo o corpo. A adaptação provavelmente surgiu por volta de 1,6 milhão de anos atrás para esfriar o corpo de alguns dos nossos primeiros ancestrais, que começavam a se tornar mais ativos e fazer longas caminhadas. Uma mudança levou a outra: células que produziam melanina, antes restritas a algumas partes descobertas, se espalharam por toda a epiderme. Além de tornar a pele escura, a melanina absorve os raios ultravioleta do Sol e faz com que percam energia. Os cientistas acreditavam que esse traço havia evoluído para evitar cânceres de pele, mas a teoria esbarrava no fato de que esse mal costuma surgir em idade avançada, depois que as pessoas já tiveram filhos, e portanto dificilmente alteraria a evolução. Até que, em 1991, Nina Joblonski encontrou estudos que mostravam que pessoas de pele clara expostas à forte luz solar tinham níveis muito baixos de folato. A deficiência dessa substância em mulheres grávidas pode levar a graves problemas de coluna em seus filhos. Além disso, o folato é essencial em atividades que envolvam a proliferação rápida de células, como a produção de espermatozóides. "Nos ambientes próximos à linha do Equador, a pele negra era uma boa forma de manter o nível de folato no corpo", diz a
antropóloga.

Enquanto os humanos modernos estavam restritos à África, a melanina funcionava bem para todos. Eles eram um grupo bastante homogêneo, porque, por motivos desconhecidos, os primeiros humanos estiveram perto da extinção há cerca de 200 mil anos, com talvez não mais de 20 mil pessoas. Posteriormente, a descoberta de novas ferramentas e o crescimento da população tornou a África pequena demais para eles e, cerca de 100 mil anos atrás, os homens modernos chegaram à Ásia. De lá se espalharam para a Oceania, depois para a Europa e, há pelo menos 15 mil anos, à América.

Nas regiões menos ensolaradas, a pele negra começou a bloquear demais os raios ultravioleta. Esse tipo de radiação é nocivo em quase todos os aspectos, mas tem um papel essencial no organismo: iniciar a formação na pele de vitamina D, necessária para o desenvolvimento do esqueleto e a manutenção do sistema imunológico. A tendência então foi que populações que migraram para regiões menos ensolaradas desenvolvessem pele mais clara para aumentar a absorção de raios ultravioleta. Em regiões intermediárias, o truque evolutivo foi o bronzeamento  uma camada temporária de melanina para proteger o folato em épocas de sol e produzir vitamina D quando ele não fosse tão forte. Ou seja, de acordo com os novos estudos, a cor da pele é apenas uma forma de regular nutrientes.

"Adaptações ao clima afetam primordialmente características superficiais. A interface entre o interior e o exterior têm papel fundamental na troca de calor de dentro para fora, e vice-versa", afirma o geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza, um dos pioneiros no estudo de genética de populações, em seu livro Genes, Povos e Línguas. Ao se espalhar pelo mundo, os seres humanos tiveram que lidar com todo tipo de ambiente e o principal elemento a se adaptar aos extremos de temperatura, umidade, iluminação e ventos do planeta foi a aparência. Um exemplo é o tamanho do corpo: em regiões quentes é vantajoso ser baixo como os pigmeus ou alongado como os quenianos, com a superfície do corpo grande quando comparada ao volume, o que facilita a evaporação do suor. O cabelo encarapinhado ajuda a reter o suor no couro cabeludo e a resfriá-lo. O oposto ocorre em regiões frias como a Sibéria. O corpo e a cabeça dos mongóis, que se desenvolveram por lá, tendem a ser arredondados para guardar calor, o nariz, pequeno para não congelar, com narinas estreitas para aquecer o ar que chega aos pulmões, e os olhos, alongados e protegidos do vento por dobras de pele.

A origem de muitas características, no entanto, permanece desconhecida. Muitas delas podem ter surgido por serem consideradas belas ou simplesmente por acaso. Populações de nativos da América, por exemplo, devem ter passado por momentos em que se reduziram a algumas dezenas de indivíduos, o que eliminaria os traços menos comuns, como alguns tipos sangüíneos. Há também a influência da cultura: algumas mudanças podem não ter ocorrido porque os homens já tinham meios de se proteger do ambiente. "Ainda não sabemos se a maioria dos traços foi fruto da adaptação ou da sorte, mas é provável que os estudos do genoma humano expliquem muitos deles nos próximos dez anos", diz a antropóloga Nina Joblonski.

As modificações, no entanto, não foram muito além da aparência, graças à homogeneidade da população humana em seus primórdios e ao pouco tempo que ela teve para evoluir desde então (cerca de 7 500 gerações). Os poucos traços que mudaram também não estão ligados entre si, o que ermitiu que uma mesma pessoa tenha características de diferentes etnias e criou um contínuo de cores entre as populações. Entretanto, a visão é o sentido mais apurado do ser humano e o fato de essas diferenças estarem na aparência levou muitos a considerá-las profundas.

EXISTEM RAÇAS HUMANAS?

Em 1758, o botânico sueco Carolus Linnaeus  o criador do atual sistema de classificação dos seres vivos  deu à humanidade o nome científico de Homo sapiens e a dividiu em quatro subespécies: os vermelhos americanos, "geniosos, despreocupados e livres"; os amarelos asiáticos, "severos e ambiciosos"; os negros africanos, "ardilosos e irrefletidos", e os brancos europeus, evidentemente, "ativos, inteligentes e engenhosos". Estava aberta a discussão sobre a existência de raças humanas e o valor de cada uma. No entanto, essas características nunca foram comprovadas e a principal conseqüência desse tipo de idéia foram as câmaras de gás nazistas, o que levou os cientistas do século 20 a acreditar que todas as diferenças entre humanos estavam na cultura. A idéia de que as raças humanas não existem biologicamente foi reforçada nos anos 70, quando pesquisas analisaram as diferenças entre as proteínas de diversas populações. Os seres humanos estavam muito longe de apresentar uma diversidade comparável à de espécies que de fato possuem raças, como elefantes ou ursos. Na verdade, a diferença genética entre dois chimpanzés de uma mesma colina na África pode ser maior que o dobro da existente entre os 6 bilhões de humanos do planeta.

Faltava apenas uma medida precisa da grande semelhança existente entre nós, e ela finalmente apareceu em dezembro do ano passado. Uma equipe de sete pesquisadores dos Estados Unidos, França e Rússia comparou 377 partes do DNA de 1 056 pessoas de 52 populações de todos os continentes. O placar final: entre 93% e 95% da diferença genética entre os humanos é encontrada nos indivíduos de um mesmo grupo e a diversidade entre as populações é responsável por 3% a 5%. Ou seja, dependendo do caso, o genoma de um africano pode ter mais semelhanças com o de um norueguês do que com alguém de sua cidade. O estudo também mostrou que não existem genes exclusivos de uma população, nem grupos em que todos os membros tenham a mesma variação genética. "A diversidade entre as populações está nas diferentes freqüências de traços que são encontrados em todo lugar", diz o biólogo Noah Rosemberg, da Universidade do Sul da Califórnia, Estados Unidos, um dos autores do trabalho.

O estudo, entretanto, levantou um aspecto polêmico: há, de fato, uma relação entre o grupo de origem de uma pessoa e seu genoma. Em outras palavras, a ancestralidade declarada por alguém reflete uma diferença genética, mesmo que, como dissemos há pouco, essa diversidade seja de apenas 3% a 5% da que existe entre os humanos. "Existem claramente diferenças entre populações que são visíveis no genoma. Algumas pessoas podem chamar isso de raça, outras não, mas o fato é que a diversidade existe, apesar de representar uma fração bem pequena da nossa constituição genética", diz Rosemberg.

A questão já era muito discutida pelos médicos. Para alguns, mesmo que as raças não existam, a etnia de uma pessoa pode fornecer pistas que facilitem o diagnóstico de doenças. Outros acham que usar raças na medicina não só é inútil como perigoso. A polêmica ganhou força com a publicação no ano passado de uma pesquisa que afirmava que o enalapril, um remédio para problemas cardíacos crônicos, funcionava menos em negros que em brancos.

Existem de fato doenças mais comuns em algumas etnias. Um exemplo é a hemocromatose, uma desordem na metabolização de ferro, que ocorre em 7,5% dos suecos mas é quase inexistente em chineses ou indianos. Os negros americanos também sofrem mais de doenças cardiovasculares, mas o motivo ainda é desconhecido: pode ser um traço hereditário ou o resultado de mais tensões e menos acesso a serviços de saúde. Qualquer que seja a explicação, não podemos generalizar os resultados. "Cada país tem uma composição genética diferente, que varia de acordo com a história e a interação entre os grupos que para lá migraram", afirma o geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Mesmo que a raça seja um recurso útil para prever o risco de doenças, muitos médicos acreditam que seria melhor abandoná-la em prol de uma análise mais rigorosa da ascendência. "Não se sabe ao certo se usar raças na medicina é melhor do que não usar nenhuma informação sobre ancestralidade. Nós preferimos usar classificações mais específicas, que chamamos de populações", diz Rosemberg. A única semelhança, por exemplo, entre os negros do Sri Lanka, da Nigéria e do norte da Austrália é a cor da pele. A categoria ainda teria a vantagem de lidar melhor com sociedades mais miscigenadas. "Se você permitir que as pessoas declarem múltiplas ancestralidades, terá boas chances de determinar as diferenças genéticas", afirma Rosemberg.

As novas técnicas de análise genética, no entanto, abrem a possibilidade de se abandonarem de vez as classificações raciais em prol de critérios mais precisos. "Nós precisamos simplesmente olhar todos os humanos como um enorme conjunto de genes e ver se conseguimos achar alguns grupos, que provavelmente não corresponderão à divisão clássica de raças", diz Nina Joblonski. O geneticista David Goldstein, da University College, em Londres, Inglaterra, estudou a resposta a remédios em seis grupos étnicos clássicos. O resultado foi melhor quando, em vez de considerar as populações, ele reagrupou os indivíduos de acordo com semelhanças genéticas. Como os seres humanos são muito parecidos, um remédio que funcione para uma população sempre encontrará pessoas em outros grupos que também podem se beneficiar dele. No final, para cada característica poderíamos ter um novo agrupamento. Assim como a Terra pode ser descrita por muitos tipos de mapa  do topológico ao econômico  é possível dividir as variações genéticas de infinitas maneiras e ressaltar qualquer similaridade ou diferença desejada. Se sobrepusermos todos os mapas, cada pessoa será única.

Qualquer que seja a conclusão a que os médicos e biólogos cheguem, as raças vão continuar existindo para quem estuda as ciências humanas. "Os brasileiros acreditam em raças e agem de acordo com elas. Então elas existem", afirma o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, da USP. "Elas são uma categoria de exclusão e dominação que traz problemas na realidade. Mesmo que não existam biologicamente, elas criam vítimas", diz o antropólogo Kabengele Munanga, também da USP. Ou seja, ao menos na cabeça das pessoas, as raças são bem reais.

QUAL A ORIGEM DO RACISMO?

Muitos cientistas acreditam que o etnocentrismo seja universal. Os mitos de origem de alguns nativos brasileiros trazem bons exemplos. Os índios urubus, que habitam o vale do Pindaré, no Maranhão, acreditavam que todos os homens vieram da madeira, só que eles vieram das boas, enquanto seus vizinhos se originaram das podres. "Não existe nenhum relato de sociedades tribais que não tenha etnocentrismo", diz João Baptista Borges Pereira, da USP. O motivo é simples: esse tipo de idéia reforça os laços entre os grupos, estabelece fronteiras entre eles e os outros e, de quebra, levanta o moral das pessoas. Na década de 50, por exemplo, um índio kadiweu  tribo famosa por não mostrar admiração por qualquer coisa que não fosse de seu grupo  foi levado ao topo da sede do Banespa, um dos edifícios mais altos de São Paulo e com uma arquitetura ousada para a época. A reação foi: "É apenas uma casa em cima da outra. Quem faz uma, faz 100".

A característica é tão disseminada que levou psicólogos a pensar que as pessoas são programadas para discriminar grupos. Um experimento feito por três psicólogos evolutivos da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, mostrou a alguns participantes fotos de brancos e negros junto com partes de diálogo e frases desconexas. Quando pediu que identificassem o autor das frases, metade dos participantes utilizou a raça para fazer seu julgamento. A idéia é que o racismo seria uma tendência do ser humano de formar grupos de alianças com qualquer pista que ele tiver, como cor da pele, roupa ou sotaque. A boa notícia é que o preconceito pode ser facilmente dissolvido ou substituído por outro. Quando os negros e brancos que apareciam nas fotos recebiam camisetas de cores diferentes, as "cobaias" praticamente deixavam de classificá-los pela raça.

O preconceito é tão antigo quanto a humanidade, mas o racismo parece não ter mais de 500 anos. "Antes disso, a discriminação era feita em relação à cultura e ao diferente", diz o antropólogo Kabengele Munanga. Os gregos chamavam de "bárbaro" qualquer pessoa que não falasse sua língua, mas quem a aprendesse não teria complicações. O problema começa a mudar no final do século 15, quando a Inquisição espanhola obriga os judeus a se converterem ao catolicismo. Muitos desses cristãos-novos continuam a praticar os seus ritos, o que leva os católicos a acreditar que havia algo no sangue judeu que impedia a conversão. A solução era evitar a miscigenação para que esse sangue não se espalhasse pela população. Na mesma época, os europeus chegam à África e à América e encontram um tipo de ser humano completamente diferente do que eles conheciam. "Até então, a humanidade era a Europa. O conceito de branco não existia antes de eles conhecerem o negro", diz Kabengele. O encontro trouxe novos dilemas. Os teólogos da época discutiam se os índios tinham alma com o objetivo de saber, por exemplo, se ter relações sexuais com eles era pecado. Eles também chegaram à conclusão de que escravizar africanos era natural, com base na passagem bíblica em que Canaã, filho de Noé, embriaga-se e é condenado à servidão (Gênesis 9,25).

A partir do século 18 e principalmente no século 19, as explicações bíblicas dão lugar a argumentos científicos. Os pesquisadores associavam os traços físicos de cada raça a atributos morais para tentar eliminar características indesejáveis. Um deles foi o conde francês Joseph Arthur de Gobineau, que em 1855 concluiu que a miscigenação causa a decadência dos povos e que os alemães eram uma raça superior às outras. Um de seus discípulos foi o médico brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, para quem os rituais de candomblé eram uma patologia dos negros.

Apesar de essas teorias terem caído em total descrédito no século 20, o tipo de discriminação que elas pregam permanece vivo em muitas pessoas. "É uma ideologia que se reproduz facilmente e que está sempre ligada à dominação de um grupo sobre o outro", diz Kabengele. Ou seja, além de qualquer aspecto psicológico, o racismo tem motivos bastante práticos. "Ele é um sistema de levar vantagens sobre outras pessoas e manter privilégios", afirma a psicóloga Maria Aparecida Silva Bento, coordenadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades (Ceert).


O BRASIL É RACISTA?

Muito, mas demoramos para perceber. Durante bastante tempo, acreditou-se que o Brasil era uma democracia racial. Cronistas do século 19 chegaram a dizer que a escravidão por aqui era mais branda do que o trabalho assalariado na Inglaterra. Da mesma forma, o índio brasileiro não teria sido conquistado nem derrotado, mas sim "incorporado" à nação. A idéia ganhou força nos anos 30, inspirada pela obra do sociólogo Gilberto Freyre, para quem não havia no Brasil distinções rígidas entre brancos e negros e a discriminação era social, feita aos pobres.

O mito começou a cair a partir do final da década de 60, quando se descobriu que o Brasil não só tinha preconceito em relação aos pobres  o que em si já é terrível  como a discriminação era especialmente dirigida a negros, pardos e índios. Os dados sociais mais recentes mostram a força das diferenças raciais no Brasil (veja tabela). "Mesmo quando se comparam pessoas da mesma região, sexo, idade e educação, os negros têm desvantagens no mercado de trabalho", diz a socióloga Luciana Jaccoud, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). Ela é uma das autoras de um estudo publicado no ano passado que mostra a extensão dessas diferenças. Mesmo quando existem dados favoráveis, como o aumento do nível de ensino na população brasileira, a distância entre negros e brancos permanece constante. Essas pesquisas ajudaram a derrubar um outro mito: o de que a pobreza dos negros é apenas um resquício da época de escravidão. É verdade que o passado de servidão colocou a maioria dos negros em uma classe social baixa, mas desde então já houve tempo para que a diferença diminuísse. Isso não acontece porque os negros não têm as mesmas oportunidades que os brancos.

Se o racismo é tão forte, por que a imagem de que éramos um paraíso racial durou tanto tempo? Existem vários motivos. O primeiro deles é que no Brasil a mestiçagem foi muito intensa. "O colonizador português não era avesso à miscigenação, o que ajudou a criar aqui um grau de mistura gênica inusitado em qualquer população do mundo", afirma o geneticista Sérgio Pena, da UFMG. Em um estudo publicado no ano passado, Sérgio mostrou que, por baixo da pele, as características do brasileiro são muito misturadas. Um branco do Sudeste ou do Nordeste do país, por exemplo, possui em média 30% de genes com origem nos povos da África. Já nos negros, o número de genes africanos é apenas um pouco maior: 55%. Na aparência, entretanto, as pessoas continuaram a parecer brancas e negras, com traços como cabelo encarapinhado, nariz largo e pele escura sempre andando juntos. Enquanto os genes se misturavam, parece ter havido uma seleção para que a aparência permanecesse igual. "Isso significa que as pessoas no Brasil tendem a escolher cônjuges da mesma cor que elas", afirma Sérgio. A discriminação não era feita pela origem familiar, mas sim pela aparência (leia o tópico Negros do Norte e do Sul). Mesmo em uma família negra, os filhos de pele mais branca casaram com brancas e amenizaram a discriminação. Ou seja, os genes africanos e indígenas tiveram ascensão social, mas as pessoas de pele negra
continuaram pobres.

A longevidade do mito da democracia racial também tem a ver com identidade nacional. No início do século 20, o Brasil possuía várias colônias de imigrantes, ligados mais às suas regiões de origem do que ao Brasil. Havia a necessidade de unificar o país em uma mesma cultura e dar a ele uma origem e uma tradição. Foi o que tentaram fazer o modernismo da Semana de 22 e a Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas. "O Brasil começa a pensar em si mesmo como uma civilização híbrida, miscigenada, capaz de absorver e abrasileirar as manifestações
culturais de diferentes povos que para aqui imigraram. A idéia era que os brasileiros constituíam uma só raça, um povo mestiço", afirma Antonio Sérgio, da USP. Na realidade, essa idéia de que somos um caldeirão de raças e culturas em harmonia impediu que negros e índios denunciassem o racismo e requisitassem melhores condições. Ou seja, a imagem do preto e do nativo tiveram aceitação, mas as pessoas de pele negra continuaram pobres.

O resultado da crença de que não temos racismo foi, de acordo com muitos cientistas, um dos piores tipos de racismo que se conhece. "A forma mais eficiente de reforçar o preconceito é achar que ele não existe, que é natural", diz Luciana Jaccoud. O nosso problema não está em lutas sangrentas entre brancos e negros, mas em detalhes do dia-a-dia. "Sempre que vou ao restaurante com uma amiga branca, o garçom entrega a conta para ela", afirma a psicóloga negra Maria Aparecida, do Ceert. Está em todo lugar: o diagrama do corpo humano na aula de anatomia é branco, as modelos nos outdoors, os diretores de empresas e os políticos também são. "Há uma cota implícita para branco em tudo. Até o Tarzan, um herói africano, não é negro", diz Maria Aparecida. Ela afirma que, em pesquisas, as pessoas respondem facilmente o que é ser preto ou pardo, associando-os a termos como "preconceito" e "dificuldades", mas gaguejam ao responder o que é ser branco  é "ser normal" ou "não ter que pensar sobre isso". Para piorar, o racismo muitas vezes se mistura à discriminação por origem ou cultura, como a praticada contra nordestinos em cidades do Sul e Sudeste.

Uma das principais formas de difundir esse preconceito está nos meios de comunicação, que não raro retratam os negros em posições inferiores. Esse quadro recentemente começou a apresentar mudanças, não porque o negro foi mais respeitado, mas pela chegada de programas e filmes estrangeiros em que atores não-brancos são mais comuns. "O negro no Brasil tem espaços sociais bem definidos", afirma o antropólogo João Baptista. Um idéia bastante difundida é de que são bons no futebol e na música. O mesmo espaço, no entanto, não é dado em cargos de diretoria e outras posições de poder.


QUAL É A SOLUÇÃO?

Existem várias propostas. Para o antropólogo negro Paul Gilroy, da Universidade de Yale, Estados Unidos, considerado um dos intelectuais de maior destaque na atualidade, o conceito de "raça" deveria simplesmente ser abolido. Ele afirma que esse termo é uma categoria falsa, criada com fins discriminatórios, que não traz avanços nem faz sentido no mundo de hoje, em que a busca das empresas por novos mercados até valoriza a identidade negra. A idéia causou muita polêmica e talvez não se aplique à realidade brasileira, em que a cor da pele ainda gera preconceito. Muitos acham que, enquanto o racismo não acabar, não é possível abandonar a idéia de raça.

As principais propostas para vencer o preconceito estão agrupadas em uma categoria chamada "ações afirmativas". Essas políticas reconhecem que existem grupos com menos oportunidades e, para que tenham as mesmas chances, oferecem a eles alguns privilégios até que o problema se resolva. Já existem no Brasil algumas leis afirmativas em relação a mulheres e a deficientes, mas as políticas em relação a negros só agora dão seus primeiros passos. "Auxiliar mulheres não fere os interesses de ninguém. Elas são filhas, mães e irmãs de todo mundo. Já os negros são uma competição de verdade", diz o sociólogo Antônio Sérgio. Entre os exemplos de políticas afirmativas estão estabelecer metas para aumentar a presença de negros em empresas ou em cargos de chefia, fixar um número mínimo de atores não-brancos em comerciais e programas de televisão, dar preferência a candidatos pretos e pardos em caso de empate em processos de seleção, privilegiar firmas que tenham mais negros entre seus funcionários ou registrar as terras remanescentes de quilombos.

O ponto mais polêmico está nas cotas em vestibulares. Os defensores afirmam que elas funcionam: nos Estados Unidos, por exemplo, a classe média negra, que era quase inexistente, aumentou consideravelmente por meio dessas políticas. Os críticos, por sua vez, falam que a solução é melhorar o ensino médio e fundamental gratuito e, de quebra, auxiliar a população de baixa renda. Essa estratégia funciona, mas talvez demore. Estudos mostram que se por um milagre as escolas públicas básicas se tornassem hoje tão boas quanto as particulares, seriam precisos mais de 30 anos para resolver as desigualdades entre pretos e brancos. "Além disso, o ensino básico já foi bem melhor e não ajudou a população negra", diz Kabengele. Outra crítica é que a autodefinição é o único critério que existe para definir pretos e pardos, o que em teoria permite a qualquer um se aproveitar dos benefícios. "É possível que ocorram fraudes, mas acredito que elas serão raras. Seria até engraçado ver todos se dizerem negros", diz Maria Aparecida, do Ceert.

As cotas, no entanto, estão longe de ser uma solução definitiva. Elas resolvem apenas a inclusão do aluno na universidade, sem garantir que ele irá para os cursos mais valorizados e que terá condições de se formar neles. Também criam o estigma de que os alunos não-brancos são menos qualificados  um motivo que leva muitos universitários negros a se posicionarem contra as cotas. Por fim, rompe com o princípio de seleção por mérito. Existem alternativas para alguns dos problemas, como doar bolsas para que alunos negros tenham o mesmo preparo dos brancos ou criar cursinhos voltados para eles.

As ações afirmativas, no entanto, são apenas parte da solução. É preciso também punir as manifestações de racismo, garantir que crimes cometidos por negros não sejam julgados mais severamente nem que eles virem alvo de violência policial. Também é importante incluir o negro em propagandas, livros didáticos e manifestações artísticas. Para coordenar essas ações, o governo federal inaugurou no mês passado a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial. Se as medidas derem certo e pudermos ver pessoas de várias origens e cores em todos os espaços do país, então poderemos dizer que vivemos uma democracia racial e, quem sabe, esquecer definitivamente que raças humanas existem.



HISTÓRIA EM BRANCO E PRETO

Acontecimentos de destaque na história do racismo

1492- Novo mundo- As expedições pela América e África levam os europeus a conhecer povos diferentes, que eles não hesitam em escravizar, criando um intenso comércio de negros no Atlântico

1537 - Papa Paulo III - Para os exploradores do Novo Mundo que chegavam ao Brasil, os índios eram seres desalmados, que poderiam ser usados para qualquer fim. Isso só mudou em 1537, quando o papa Paulo III editou uma bula afirmando que os índios descobertos na América tinham alma

1695 - Zumbi- O líder do Quilombo dos Palmares, o principal esconderijo de escravos foragidos, é morto por tropas de bandeirantes. É nomeado herói nacional em 1995

1855 - Arthur Gobineau - Escreve o Ensaio Sobre a Desigualdade da Raça Humana, considerada a bíblia do racismo moderno, onde defende que a miscigenação é a causa da decadência das nações

1866 - Ku Klux Klan - Surge a Ku Klux Klan, um marco da intolerância racial nos EUA, que promovia assassinatos e atos terroristas contra negros. Continua a existir até hoje

1868 - Philip Sheridan- General autor da frase "índio bom é índio morto", que ilustra o genocídio de milhões de índios promovido por desbravadores norte-americanos durante a marcha para o oeste

1888 - Abolição da escravatura - A princesa Isabel assina a Lei Áurea, que põe fim ao regime escravista, já em decadência com o fim do tráfico negreiro, em 1850, e com o retorno dos soldados negros da Guerra do Paraguai (1865-1870), que, vitoriosos, se recusam a voltar à servidão

1899 - Cesare Lombroso - Criminologista italiano famoso por tentar relacionar certos traços físicos a tendências criminosas. Fez discípulos em todo o mundo. No Brasil, seus seguidores estudam os crânios de Lampião e de Antônio Conselheiro para explicar suas atitudes

1934 - Adolph Hitler - O governante nazista comanda a morte de 6 milhões de judeus.O objetivo era eliminá-los da Europa e abrir caminho para a criação de uma raça alemã superior a todas as outras

1948 - Apartheid -A África do Sul cria um regime de segregação entre brancos e negros. Ruas, bancos de praça e até os banheiros eram de uso exclusivo de cada grupo

1964 - Martin Luther King - O líder negro ganha o Prêmio Nobel da Paz e morre dias depois com um tiro no rosto. Entre suas conquistas está a liberação do acesso a lugares públicos aos negros

1965 - Malcom X -Morre assassinado o líder muçulmano americano que acreditava que os negros eram superiores aos brancos e defendia a criação de um estado autônomo para eles

1984 - Desmond Tutu - O primeiro arcebispo negro da história ganha o Prêmio Nobel da Paz. Direcionou a igreja anglicana a tomar posição contra o apartheid na África do Sul

1991 - Rodney King - Motorista negro espancado por policiais em Los Angeles, Estados Unidos. A absolvição dos agressores gera protestos que levam à morte de mais de 50 pessoas

1994 - Nelson Mandela -Depois de 28 anos de prisão, é eleito o primeiro presidente negro da África do Sul. Tornou-se mundialmente conhecido pela luta que travou contra o apartheid

NEGROS DO NORTE E DO SUL

Assim como o nosso país, os Estados Unidos receberam escravos. Entretanto, eles foram mais extremos: não só tiveram a Ku Klux Klan como tiveram Martin Luther King. Afinal, o que há de diferente entre o nosso racismo e o deles?

Os brancos americanos são mais radicais: qualquer pessoa que tenha ao menos um ancestral negro é negro. Mesmo que uma pessoa seja considerada branca, ela pode ser reclassificada se descobrirem que tem um parente negro. "Não existem pardos para os americanos", afirma o antropólogo Kabengele Munanga, da USP. Já no Brasil, o preconceito é baseado mais na cor da pele e em outros traços físicos.

Um clássico das nossas manifestações de racismo é o requisito de "boa aparência" nas ofertas de emprego. Temos também uma enorme quantidade de classificações raciais  em uma pesquisa feita em 1963, os 100 habitantes de uma vila de pescadores do Nordeste usaram 40 termos nas autodeclarações de cor.

Cada estilo tem suas conseqüências.

O racismo americano criou uma solidariedade entre negros e pardos e, por ser mais evidente, exacerbou as lutas raciais. Um negro que ascendesse socialmente assumia o compromisso com os membros de sua etnia. Nas décadas de 50 e 60, esse conflito levou a ações que combatessem a discriminação, em alguns casos com política de cotas. Já no Brasil, a diluição da questão racial dificulta a união entre os não-brancos. "É comum o negro que ascende socialmente romper o contato com os outros de sua classe para se preservar. Ele também se torna rigoroso com a família e com a moral para manter a respeitabilidade", diz João Baptista Pereira, da USP. É um racismo pouco assumido, que pressiona os negros e evita que eles se mobilizem. Martin Luther King teria dificuldades muito maiores por aqui.

PARA SABER MAIS

NA LIVRARIA

Classes, Raças e Democracia
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Ed. 34, 2002

Genes, Povos e Línguas
Luigi Luca Cavalli-Sforza, Companhia das Letras, 2003

Homo Brasilis
Sérgio D.J. Pena (org.), Funpec-RP, 2002

Psicologia Social do Racismo
Maria Aparecida Silva Bento (org.), Vozes, 2002

A História da Humanidade
Steve Olson, Campus, 2002

NA INTERNET

www.ipea.gov.br

www.ceert.org.br

www.palmares.gov.br

www.afirma.inf.br/home.htm

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