Vencendo
na Raça
Por Rafael Kenski, Revista SuperInteressante Abril/2003
Novas pesquisas nas ciências humanas e biológicas
mudam o conceito de raça e mostram os estragos que o racismo
faz na sociedade. Finalmente os cientistas estão prontos para
responder algumas das perguntas mais
incômodas a respeito de nós mesmos
Poucas coisas mudaram no mundo nos últimos 100
mil anos. Naquela época, os primeiros seres humanos modernos
surgiam na África e começavam a se espalhar por outros
continentes. Eles eram praticamente idênticos aos mais de 6 bilhões
de pessoas que habitam hoje o planeta. De lá para cá,
os únicos retoques que a nossa espécie sofreu foram pequenas
adaptações aos diferentes ambientes mudanças
exteriores para lidar melhor com lugares mais frios, secos ou com ventos
mais fortes. O lado triste dessa incrível capacidade de adaptação
é que as diferenças físicas foram usadas para avaliar
pessoas à primeira vista e atribuir-lhes qualidades e defeitos.
Milhões foram escravizados, mortos ou discriminados por causa
da aparência física. Por que só agora os cientistas
começam a entender as diferenças entre os seres humanos?
Tanta demora para tratar do assunto tem um motivo: as primeiras tentativas
científicas de analisar as raças humanas levaram quase
sempre à conclusão de que algumas eram mais inteligentes
e criativas ou seja, superiores às outras. O resultado foram
as tentativas de criar uma raça "pura" e as ideologias
que levaram a genocídios. "As tragédias geradas por
essas teorias fizeram a ciência aceitar que as raças não
tinham nada de biológico e que eram apenas um produto da sociedade.
O que vemos agora é a tendência de volta à biologia",
diz o antropólogo João Baptista Borges Pereira, da Universidade
de São Paulo (USP). Os cientistas estão confiantes que
dessa vez o resultado será diferente. "Estudar as diferenças
humanas é perigoso porque sempre existirão pessoas que
distorcerão os estudos, mas acredito que os cientistas e o público
amadureceram o suficiente para seguirmos com as pesquisas", diz
a antropóloga Nina Joblonski, da Academia de Ciências da
Califórnia, Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, as ciências humanas avaliam como
o racismo é difundido e prejudicial. Nesse ponto, o Brasil está
entre os piores países do mundo. O problema é complexo,
mas podemos amenizá-lo. Só que, antes, é preciso
saber como tudo começou.
COMO NOS TORNAMOS DIFERENTES?
Ao contrário dos chimpanzés e demais
primatas, o homem não possui cabelo por todo o corpo. A adaptação
provavelmente surgiu por volta de 1,6 milhão de anos atrás
para esfriar o corpo de alguns dos nossos primeiros ancestrais, que
começavam a se tornar mais ativos e fazer longas caminhadas.
Uma mudança levou a outra: células que produziam melanina,
antes restritas a algumas partes descobertas, se espalharam por toda
a epiderme. Além de tornar a pele escura, a melanina absorve
os raios ultravioleta do Sol e faz com que percam energia. Os cientistas
acreditavam que esse traço havia evoluído para evitar
cânceres de pele, mas a teoria esbarrava no fato de que esse mal
costuma surgir em idade avançada, depois que as pessoas já
tiveram filhos, e portanto dificilmente alteraria a evolução.
Até que, em 1991, Nina Joblonski encontrou estudos que mostravam
que pessoas de pele clara expostas à forte luz solar tinham níveis
muito baixos de folato. A deficiência dessa substância em
mulheres grávidas pode levar a graves problemas de coluna em
seus filhos. Além disso, o folato é essencial em atividades
que envolvam a proliferação rápida de células,
como a produção de espermatozóides. "Nos ambientes
próximos à linha do Equador, a pele negra era uma boa
forma de manter o nível de folato no corpo", diz a
antropóloga.
Enquanto os humanos modernos estavam restritos à
África, a melanina funcionava bem para todos. Eles eram um grupo
bastante homogêneo, porque, por motivos desconhecidos, os primeiros
humanos estiveram perto da extinção há cerca de
200 mil anos, com talvez não mais de 20 mil pessoas. Posteriormente,
a descoberta de novas ferramentas e o crescimento da população
tornou a África pequena demais para eles e, cerca de 100 mil
anos atrás, os homens modernos chegaram à Ásia.
De lá se espalharam para a Oceania, depois para a Europa e, há
pelo menos 15 mil anos, à América.
Nas regiões menos ensolaradas, a pele negra
começou a bloquear demais os raios ultravioleta. Esse tipo de
radiação é nocivo em quase todos os aspectos, mas
tem um papel essencial no organismo: iniciar a formação
na pele de vitamina D, necessária para o desenvolvimento do esqueleto
e a manutenção do sistema imunológico. A tendência
então foi que populações que migraram para regiões
menos ensolaradas desenvolvessem pele mais clara para aumentar a absorção
de raios ultravioleta. Em regiões intermediárias, o truque
evolutivo foi o bronzeamento uma camada temporária de melanina
para proteger o folato em épocas de sol e produzir vitamina D
quando ele não fosse tão forte. Ou seja, de acordo com
os novos estudos, a cor da pele é apenas uma forma de regular
nutrientes.
"Adaptações ao clima afetam primordialmente
características superficiais. A interface entre o interior e
o exterior têm papel fundamental na troca de calor de dentro para
fora, e vice-versa", afirma o geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza,
um dos pioneiros no estudo de genética de populações,
em seu livro Genes, Povos e Línguas. Ao se espalhar pelo mundo,
os seres humanos tiveram que lidar com todo tipo de ambiente e o principal
elemento a se adaptar aos extremos de temperatura, umidade, iluminação
e ventos do planeta foi a aparência. Um exemplo é o tamanho
do corpo: em regiões quentes é vantajoso ser baixo como
os pigmeus ou alongado como os quenianos, com a superfície do
corpo grande quando comparada ao volume, o que facilita a evaporação
do suor. O cabelo encarapinhado ajuda a reter o suor no couro cabeludo
e a resfriá-lo. O oposto ocorre em regiões frias como
a Sibéria. O corpo e a cabeça dos mongóis, que
se desenvolveram por lá, tendem a ser arredondados para guardar
calor, o nariz, pequeno para não congelar, com narinas estreitas
para aquecer o ar que chega aos pulmões, e os olhos, alongados
e protegidos do vento por dobras de pele.
A origem de muitas características, no entanto,
permanece desconhecida. Muitas delas podem ter surgido por serem consideradas
belas ou simplesmente por acaso. Populações de nativos
da América, por exemplo, devem ter passado por momentos em que
se reduziram a algumas dezenas de indivíduos, o que eliminaria
os traços menos comuns, como alguns tipos sangüíneos.
Há também a influência da cultura: algumas mudanças
podem não ter ocorrido porque os homens já tinham meios
de se proteger do ambiente. "Ainda não sabemos se a maioria
dos traços foi fruto da adaptação ou da sorte,
mas é provável que os estudos do genoma humano expliquem
muitos deles nos próximos dez anos", diz a antropóloga
Nina Joblonski.
As modificações, no entanto, não
foram muito além da aparência, graças à homogeneidade
da população humana em seus primórdios e ao pouco
tempo que ela teve para evoluir desde então (cerca de 7 500 gerações).
Os poucos traços que mudaram também não estão
ligados entre si, o que ermitiu que uma mesma pessoa tenha características
de diferentes etnias e criou um contínuo de cores entre as populações.
Entretanto, a visão é o sentido mais apurado do ser humano
e o fato de essas diferenças estarem na aparência levou
muitos a considerá-las profundas.
EXISTEM RAÇAS HUMANAS?
Em 1758, o botânico sueco Carolus Linnaeus
o criador do atual sistema de classificação dos seres
vivos deu à humanidade o nome científico de Homo sapiens
e a dividiu em quatro subespécies: os vermelhos americanos, "geniosos,
despreocupados e livres"; os amarelos asiáticos, "severos
e ambiciosos"; os negros africanos, "ardilosos e irrefletidos",
e os brancos europeus, evidentemente, "ativos, inteligentes e engenhosos".
Estava aberta a discussão sobre a existência de raças
humanas e o valor de cada uma. No entanto, essas características
nunca foram comprovadas e a principal conseqüência desse
tipo de idéia foram as câmaras de gás nazistas,
o que levou os cientistas do século 20 a acreditar que todas
as diferenças entre humanos estavam na cultura. A idéia
de que as raças humanas não existem biologicamente foi
reforçada nos anos 70, quando pesquisas analisaram as diferenças
entre as proteínas de diversas populações. Os seres
humanos estavam muito longe de apresentar uma diversidade comparável
à de espécies que de fato possuem raças, como elefantes
ou ursos. Na verdade, a diferença genética entre dois
chimpanzés de uma mesma colina na África pode ser maior
que o dobro da existente entre os 6 bilhões de humanos do planeta.
Faltava apenas uma medida precisa da grande semelhança
existente entre nós, e ela finalmente apareceu em dezembro do
ano passado. Uma equipe de sete pesquisadores dos Estados Unidos, França
e Rússia comparou 377 partes do DNA de 1 056 pessoas de 52 populações
de todos os continentes. O placar final: entre 93% e 95% da diferença
genética entre os humanos é encontrada nos indivíduos
de um mesmo grupo e a diversidade entre as populações
é responsável por 3% a 5%. Ou seja, dependendo do caso,
o genoma de um africano pode ter mais semelhanças com o de um
norueguês do que com alguém de sua cidade. O estudo também
mostrou que não existem genes exclusivos de uma população,
nem grupos em que todos os membros tenham a mesma variação
genética. "A diversidade entre as populações
está nas diferentes freqüências de traços que
são encontrados em todo lugar", diz o biólogo Noah
Rosemberg, da Universidade do Sul da Califórnia, Estados Unidos,
um dos autores do trabalho.
O estudo, entretanto, levantou um aspecto polêmico:
há, de fato, uma relação entre o grupo de origem
de uma pessoa e seu genoma. Em outras palavras, a ancestralidade declarada
por alguém reflete uma diferença genética, mesmo
que, como dissemos há pouco, essa diversidade seja de apenas
3% a 5% da que existe entre os humanos. "Existem claramente diferenças
entre populações que são visíveis no genoma.
Algumas pessoas podem chamar isso de raça, outras não,
mas o fato é que a diversidade existe, apesar de representar
uma fração bem pequena da nossa constituição
genética", diz Rosemberg.
A questão já era muito discutida pelos
médicos. Para alguns, mesmo que as raças não existam,
a etnia de uma pessoa pode fornecer pistas que facilitem o diagnóstico
de doenças. Outros acham que usar raças na medicina não
só é inútil como perigoso. A polêmica ganhou
força com a publicação no ano passado de uma pesquisa
que afirmava que o enalapril, um remédio para problemas cardíacos
crônicos, funcionava menos em negros que em brancos.
Existem de fato doenças mais comuns em algumas
etnias. Um exemplo é a hemocromatose, uma desordem na metabolização
de ferro, que ocorre em 7,5% dos suecos mas é quase inexistente
em chineses ou indianos. Os negros americanos também sofrem mais
de doenças cardiovasculares, mas o motivo ainda é desconhecido:
pode ser um traço hereditário ou o resultado de mais tensões
e menos acesso a serviços de saúde. Qualquer que seja
a explicação, não podemos generalizar os resultados.
"Cada país tem uma composição genética
diferente, que varia de acordo com a história e a interação
entre os grupos que para lá migraram", afirma o geneticista
Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mesmo que a raça seja um recurso útil
para prever o risco de doenças, muitos médicos acreditam
que seria melhor abandoná-la em prol de uma análise mais
rigorosa da ascendência. "Não se sabe ao certo se
usar raças na medicina é melhor do que não usar
nenhuma informação sobre ancestralidade. Nós preferimos
usar classificações mais específicas, que chamamos
de populações", diz Rosemberg. A única semelhança,
por exemplo, entre os negros do Sri Lanka, da Nigéria e do norte
da Austrália é a cor da pele. A categoria ainda teria
a vantagem de lidar melhor com sociedades mais miscigenadas. "Se
você permitir que as pessoas declarem múltiplas ancestralidades,
terá boas chances de determinar as diferenças genéticas",
afirma Rosemberg.
As novas técnicas de análise genética,
no entanto, abrem a possibilidade de se abandonarem de vez as classificações
raciais em prol de critérios mais precisos. "Nós
precisamos simplesmente olhar todos os humanos como um enorme conjunto
de genes e ver se conseguimos achar alguns grupos, que provavelmente
não corresponderão à divisão clássica
de raças", diz Nina Joblonski. O geneticista David Goldstein,
da University College, em Londres, Inglaterra, estudou a resposta a
remédios em seis grupos étnicos clássicos. O resultado
foi melhor quando, em vez de considerar as populações,
ele reagrupou os indivíduos de acordo com semelhanças
genéticas. Como os seres humanos são muito parecidos,
um remédio que funcione para uma população sempre
encontrará pessoas em outros grupos que também podem se
beneficiar dele. No final, para cada característica poderíamos
ter um novo agrupamento. Assim como a Terra pode ser descrita por muitos
tipos de mapa do topológico ao econômico é possível
dividir as variações genéticas de infinitas maneiras
e ressaltar qualquer similaridade ou diferença desejada. Se sobrepusermos
todos os mapas, cada pessoa será única.
Qualquer que seja a conclusão a que os médicos
e biólogos cheguem, as raças vão continuar existindo
para quem estuda as ciências humanas. "Os brasileiros acreditam
em raças e agem de acordo com elas. Então elas existem",
afirma o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães,
da USP. "Elas são uma categoria de exclusão e dominação
que traz problemas na realidade. Mesmo que não existam biologicamente,
elas criam vítimas", diz o antropólogo Kabengele
Munanga, também da USP. Ou seja, ao menos na cabeça das
pessoas, as raças são bem reais.
QUAL A ORIGEM DO RACISMO?
Muitos cientistas acreditam que o etnocentrismo seja
universal. Os mitos de origem de alguns nativos brasileiros trazem bons
exemplos. Os índios urubus, que habitam o vale do Pindaré,
no Maranhão, acreditavam que todos os homens vieram da madeira,
só que eles vieram das boas, enquanto seus vizinhos se originaram
das podres. "Não existe nenhum relato de sociedades tribais
que não tenha etnocentrismo", diz João Baptista Borges
Pereira, da USP. O motivo é simples: esse tipo de idéia
reforça os laços entre os grupos, estabelece fronteiras
entre eles e os outros e, de quebra, levanta o moral das pessoas. Na
década de 50, por exemplo, um índio kadiweu tribo famosa
por não mostrar admiração por qualquer coisa que
não fosse de seu grupo foi levado ao topo da sede do Banespa,
um dos edifícios mais altos de São Paulo e com uma arquitetura
ousada para a época. A reação foi: "É
apenas uma casa em cima da outra. Quem faz uma, faz 100".
A característica é tão disseminada
que levou psicólogos a pensar que as pessoas são programadas
para discriminar grupos. Um experimento feito por três psicólogos
evolutivos da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, mostrou
a alguns participantes fotos de brancos e negros junto com partes de
diálogo e frases desconexas. Quando pediu que identificassem
o autor das frases, metade dos participantes utilizou a raça
para fazer seu julgamento. A idéia é que o racismo seria
uma tendência do ser humano de formar grupos de alianças
com qualquer pista que ele tiver, como cor da pele, roupa ou sotaque.
A boa notícia é que o preconceito pode ser facilmente
dissolvido ou substituído por outro. Quando os negros e brancos
que apareciam nas fotos recebiam camisetas de cores diferentes, as "cobaias"
praticamente deixavam de classificá-los pela raça.
O preconceito é tão antigo quanto a humanidade,
mas o racismo parece não ter mais de 500 anos. "Antes disso,
a discriminação era feita em relação à
cultura e ao diferente", diz o antropólogo Kabengele Munanga.
Os gregos chamavam de "bárbaro" qualquer pessoa que
não falasse sua língua, mas quem a aprendesse não
teria complicações. O problema começa a mudar no
final do século 15, quando a Inquisição espanhola
obriga os judeus a se converterem ao catolicismo. Muitos desses cristãos-novos
continuam a praticar os seus ritos, o que leva os católicos a
acreditar que havia algo no sangue judeu que impedia a conversão.
A solução era evitar a miscigenação para
que esse sangue não se espalhasse pela população.
Na mesma época, os europeus chegam à África e à
América e encontram um tipo de ser humano completamente diferente
do que eles conheciam. "Até então, a humanidade era
a Europa. O conceito de branco não existia antes de eles conhecerem
o negro", diz Kabengele. O encontro trouxe novos dilemas. Os teólogos
da época discutiam se os índios tinham alma com o objetivo
de saber, por exemplo, se ter relações sexuais com eles
era pecado. Eles também chegaram à conclusão de
que escravizar africanos era natural, com base na passagem bíblica
em que Canaã, filho de Noé, embriaga-se e é condenado
à servidão (Gênesis 9,25).
A partir do século 18 e principalmente no século
19, as explicações bíblicas dão lugar a
argumentos científicos. Os pesquisadores associavam os traços
físicos de cada raça a atributos morais para tentar eliminar
características indesejáveis. Um deles foi o conde francês
Joseph Arthur de Gobineau, que em 1855 concluiu que a miscigenação
causa a decadência dos povos e que os alemães eram uma
raça superior às outras. Um de seus discípulos
foi o médico brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, para quem os
rituais de candomblé eram uma patologia dos negros.
Apesar de essas teorias terem caído em total
descrédito no século 20, o tipo de discriminação
que elas pregam permanece vivo em muitas pessoas. "É uma
ideologia que se reproduz facilmente e que está sempre ligada
à dominação de um grupo sobre o outro", diz
Kabengele. Ou seja, além de qualquer aspecto psicológico,
o racismo tem motivos bastante práticos. "Ele é um
sistema de levar vantagens sobre outras pessoas e manter privilégios",
afirma a psicóloga Maria Aparecida Silva Bento, coordenadora
do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades (Ceert).
O BRASIL É RACISTA?
Muito, mas demoramos para perceber. Durante bastante
tempo, acreditou-se que o Brasil era uma democracia racial. Cronistas
do século 19 chegaram a dizer que a escravidão por aqui
era mais branda do que o trabalho assalariado na Inglaterra. Da mesma
forma, o índio brasileiro não teria sido conquistado nem
derrotado, mas sim "incorporado" à nação.
A idéia ganhou força nos anos 30, inspirada pela obra
do sociólogo Gilberto Freyre, para quem não havia no Brasil
distinções rígidas entre brancos e negros e a discriminação
era social, feita aos pobres.
O mito começou a cair a partir do final da década
de 60, quando se descobriu que o Brasil não só tinha preconceito
em relação aos pobres o que em si já é
terrível como a discriminação era especialmente
dirigida a negros, pardos e índios. Os dados sociais mais recentes
mostram a força das diferenças raciais no Brasil (veja
tabela). "Mesmo quando se comparam pessoas da mesma região,
sexo, idade e educação, os negros têm desvantagens
no mercado de trabalho", diz a socióloga Luciana Jaccoud,
do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). Ela é
uma das autoras de um estudo publicado no ano passado que mostra a extensão
dessas diferenças. Mesmo quando existem dados favoráveis,
como o aumento do nível de ensino na população
brasileira, a distância entre negros e brancos permanece constante.
Essas pesquisas ajudaram a derrubar um outro mito: o de que a pobreza
dos negros é apenas um resquício da época de escravidão.
É verdade que o passado de servidão colocou a maioria
dos negros em uma classe social baixa, mas desde então já
houve tempo para que a diferença diminuísse. Isso não
acontece porque os negros não têm as mesmas oportunidades
que os brancos.
Se o racismo é tão forte, por que a imagem
de que éramos um paraíso racial durou tanto tempo? Existem
vários motivos. O primeiro deles é que no Brasil a mestiçagem
foi muito intensa. "O colonizador português não era
avesso à miscigenação, o que ajudou a criar aqui
um grau de mistura gênica inusitado em qualquer população
do mundo", afirma o geneticista Sérgio Pena, da UFMG. Em
um estudo publicado no ano passado, Sérgio mostrou que, por baixo
da pele, as características do brasileiro são muito misturadas.
Um branco do Sudeste ou do Nordeste do país, por exemplo, possui
em média 30% de genes com origem nos povos da África.
Já nos negros, o número de genes africanos é apenas
um pouco maior: 55%. Na aparência, entretanto, as pessoas continuaram
a parecer brancas e negras, com traços como cabelo encarapinhado,
nariz largo e pele escura sempre andando juntos. Enquanto os genes se
misturavam, parece ter havido uma seleção para que a aparência
permanecesse igual. "Isso significa que as pessoas no Brasil tendem
a escolher cônjuges da mesma cor que elas", afirma Sérgio.
A discriminação não era feita pela origem familiar,
mas sim pela aparência (leia o tópico Negros do Norte e
do Sul). Mesmo em uma família negra, os filhos de pele mais branca
casaram com brancas e amenizaram a discriminação. Ou seja,
os genes africanos e indígenas tiveram ascensão social,
mas as pessoas de pele negra
continuaram pobres.
A longevidade do mito da democracia racial também
tem a ver com identidade nacional. No início do século
20, o Brasil possuía várias colônias de imigrantes,
ligados mais às suas regiões de origem do que ao Brasil.
Havia a necessidade de unificar o país em uma mesma cultura e
dar a ele uma origem e uma tradição. Foi o que tentaram
fazer o modernismo da Semana de 22 e a Revolução de 30,
liderada por Getúlio Vargas. "O Brasil começa a pensar
em si mesmo como uma civilização híbrida, miscigenada,
capaz de absorver e abrasileirar as manifestações
culturais de diferentes povos que para aqui imigraram. A idéia
era que os brasileiros constituíam uma só raça,
um povo mestiço", afirma Antonio Sérgio, da USP.
Na realidade, essa idéia de que somos um caldeirão de
raças e culturas em harmonia impediu que negros e índios
denunciassem o racismo e requisitassem melhores condições.
Ou seja, a imagem do preto e do nativo tiveram aceitação,
mas as pessoas de pele negra continuaram pobres.
O resultado da crença de que não temos
racismo foi, de acordo com muitos cientistas, um dos piores tipos de
racismo que se conhece. "A forma mais eficiente de reforçar
o preconceito é achar que ele não existe, que é
natural", diz Luciana Jaccoud. O nosso problema não está
em lutas sangrentas entre brancos e negros, mas em detalhes do dia-a-dia.
"Sempre que vou ao restaurante com uma amiga branca, o garçom
entrega a conta para ela", afirma a psicóloga negra Maria
Aparecida, do Ceert. Está em todo lugar: o diagrama do corpo
humano na aula de anatomia é branco, as modelos nos outdoors,
os diretores de empresas e os políticos também são.
"Há uma cota implícita para branco em tudo. Até
o Tarzan, um herói africano, não é negro",
diz Maria Aparecida. Ela afirma que, em pesquisas, as pessoas respondem
facilmente o que é ser preto ou pardo, associando-os a termos
como "preconceito" e "dificuldades", mas gaguejam
ao responder o que é ser branco é "ser normal"
ou "não ter que pensar sobre isso". Para piorar, o
racismo muitas vezes se mistura à discriminação
por origem ou cultura, como a praticada contra nordestinos em cidades
do Sul e Sudeste.
Uma das principais formas de difundir esse preconceito
está nos meios de comunicação, que não raro
retratam os negros em posições inferiores. Esse quadro
recentemente começou a apresentar mudanças, não
porque o negro foi mais respeitado, mas pela chegada de programas e
filmes estrangeiros em que atores não-brancos são mais
comuns. "O negro no Brasil tem espaços sociais bem definidos",
afirma o antropólogo João Baptista. Um idéia bastante
difundida é de que são bons no futebol e na música.
O mesmo espaço, no entanto, não é dado em cargos
de diretoria e outras posições de poder.
QUAL É A SOLUÇÃO?
Existem várias propostas. Para o antropólogo
negro Paul Gilroy, da Universidade de Yale, Estados Unidos, considerado
um dos intelectuais de maior destaque na atualidade, o conceito de "raça"
deveria simplesmente ser abolido. Ele afirma que esse termo é
uma categoria falsa, criada com fins discriminatórios, que não
traz avanços nem faz sentido no mundo de hoje, em que a busca
das empresas por novos mercados até valoriza a identidade negra.
A idéia causou muita polêmica e talvez não se aplique
à realidade brasileira, em que a cor da pele ainda gera preconceito.
Muitos acham que, enquanto o racismo não acabar, não é
possível abandonar a idéia de raça.
As principais propostas para vencer o preconceito estão
agrupadas em uma categoria chamada "ações afirmativas".
Essas políticas reconhecem que existem grupos com menos oportunidades
e, para que tenham as mesmas chances, oferecem a eles alguns privilégios
até que o problema se resolva. Já existem no Brasil algumas
leis afirmativas em relação a mulheres e a deficientes,
mas as políticas em relação a negros só
agora dão seus primeiros passos. "Auxiliar mulheres não
fere os interesses de ninguém. Elas são filhas, mães
e irmãs de todo mundo. Já os negros são uma competição
de verdade", diz o sociólogo Antônio Sérgio.
Entre os exemplos de políticas afirmativas estão estabelecer
metas para aumentar a presença de negros em empresas ou em cargos
de chefia, fixar um número mínimo de atores não-brancos
em comerciais e programas de televisão, dar preferência
a candidatos pretos e pardos em caso de empate em processos de seleção,
privilegiar firmas que tenham mais negros entre seus funcionários
ou registrar as terras remanescentes de quilombos.
O ponto mais polêmico está nas cotas em
vestibulares. Os defensores afirmam que elas funcionam: nos Estados
Unidos, por exemplo, a classe média negra, que era quase inexistente,
aumentou consideravelmente por meio dessas políticas. Os críticos,
por sua vez, falam que a solução é melhorar o ensino
médio e fundamental gratuito e, de quebra, auxiliar a população
de baixa renda. Essa estratégia funciona, mas talvez demore.
Estudos mostram que se por um milagre as escolas públicas básicas
se tornassem hoje tão boas quanto as particulares, seriam precisos
mais de 30 anos para resolver as desigualdades entre pretos e brancos.
"Além disso, o ensino básico já foi bem melhor
e não ajudou a população negra", diz Kabengele.
Outra crítica é que a autodefinição é
o único critério que existe para definir pretos e pardos,
o que em teoria permite a qualquer um se aproveitar dos benefícios.
"É possível que ocorram fraudes, mas acredito que
elas serão raras. Seria até engraçado ver todos
se dizerem negros", diz Maria Aparecida, do Ceert.
As cotas, no entanto, estão longe de ser uma
solução definitiva. Elas resolvem apenas a inclusão
do aluno na universidade, sem garantir que ele irá para os cursos
mais valorizados e que terá condições de se formar
neles. Também criam o estigma de que os alunos não-brancos
são menos qualificados um motivo que leva muitos universitários
negros a se posicionarem contra as cotas. Por fim, rompe com o princípio
de seleção por mérito. Existem alternativas para
alguns dos problemas, como doar bolsas para que alunos negros tenham
o mesmo preparo dos brancos ou criar cursinhos voltados para eles.
As ações afirmativas, no entanto, são
apenas parte da solução. É preciso também
punir as manifestações de racismo, garantir que crimes
cometidos por negros não sejam julgados mais severamente nem
que eles virem alvo de violência policial. Também é
importante incluir o negro em propagandas, livros didáticos e
manifestações artísticas. Para coordenar essas
ações, o governo federal inaugurou no mês passado
a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial.
Se as medidas derem certo e pudermos ver pessoas de várias origens
e cores em todos os espaços do país, então poderemos
dizer que vivemos uma democracia racial e, quem sabe, esquecer definitivamente
que raças humanas existem.
HISTÓRIA EM BRANCO E PRETO
Acontecimentos de destaque na história do racismo
1492- Novo mundo- As expedições pela
América e África levam os europeus a conhecer povos diferentes,
que eles não hesitam em escravizar, criando um intenso comércio
de negros no Atlântico
1537 - Papa Paulo III - Para os exploradores do Novo
Mundo que chegavam ao Brasil, os índios eram seres desalmados,
que poderiam ser usados para qualquer fim. Isso só mudou em 1537,
quando o papa Paulo III editou uma bula afirmando que os índios
descobertos na América tinham alma
1695 - Zumbi- O líder do Quilombo dos Palmares,
o principal esconderijo de escravos foragidos, é morto por tropas
de bandeirantes. É nomeado herói nacional em 1995
1855 - Arthur Gobineau - Escreve o Ensaio Sobre a Desigualdade
da Raça Humana, considerada a bíblia do racismo moderno,
onde defende que a miscigenação é a causa da decadência
das nações
1866 - Ku Klux Klan - Surge a Ku Klux Klan, um marco
da intolerância racial nos EUA, que promovia assassinatos e atos
terroristas contra negros. Continua a existir até hoje
1868 - Philip Sheridan- General autor da frase "índio
bom é índio morto", que ilustra o genocídio
de milhões de índios promovido por desbravadores norte-americanos
durante a marcha para o oeste
1888 - Abolição da escravatura - A princesa
Isabel assina a Lei Áurea, que põe fim ao regime escravista,
já em decadência com o fim do tráfico negreiro,
em 1850, e com o retorno dos soldados negros da Guerra do Paraguai (1865-1870),
que, vitoriosos, se recusam a voltar à servidão
1899 - Cesare Lombroso - Criminologista italiano famoso
por tentar relacionar certos traços físicos a tendências
criminosas. Fez discípulos em todo o mundo. No Brasil, seus seguidores
estudam os crânios de Lampião e de Antônio Conselheiro
para explicar suas atitudes
1934 - Adolph Hitler - O governante nazista comanda
a morte de 6 milhões de judeus.O objetivo era eliminá-los
da Europa e abrir caminho para a criação de uma raça
alemã superior a todas as outras
1948 - Apartheid -A África do Sul cria um regime
de segregação entre brancos e negros. Ruas, bancos de
praça e até os banheiros eram de uso exclusivo de cada
grupo
1964 - Martin Luther King - O líder negro ganha
o Prêmio Nobel da Paz e morre dias depois com um tiro no rosto.
Entre suas conquistas está a liberação do acesso
a lugares públicos aos negros
1965 - Malcom X -Morre assassinado o líder muçulmano
americano que acreditava que os negros eram superiores aos brancos e
defendia a criação de um estado autônomo para eles
1984 - Desmond Tutu - O primeiro arcebispo negro da
história ganha o Prêmio Nobel da Paz. Direcionou a igreja
anglicana a tomar posição contra o apartheid na África
do Sul
1991 - Rodney King - Motorista negro espancado por
policiais em Los Angeles, Estados Unidos. A absolvição
dos agressores gera protestos que levam à morte de mais de 50
pessoas
1994 - Nelson Mandela -Depois de 28 anos de prisão,
é eleito o primeiro presidente negro da África do Sul.
Tornou-se mundialmente conhecido pela luta que travou contra o apartheid
NEGROS DO NORTE E DO SUL
Assim como o nosso país, os Estados Unidos receberam
escravos. Entretanto, eles foram mais extremos: não só
tiveram a Ku Klux Klan como tiveram Martin Luther King. Afinal, o que
há de diferente entre o nosso racismo e o deles?
Os brancos americanos são mais radicais: qualquer
pessoa que tenha ao menos um ancestral negro é negro. Mesmo que
uma pessoa seja considerada branca, ela pode ser reclassificada se descobrirem
que tem um parente negro. "Não existem pardos para os americanos",
afirma o antropólogo Kabengele Munanga, da USP. Já no
Brasil, o preconceito é baseado mais na cor da pele e em outros
traços físicos.
Um clássico das nossas manifestações
de racismo é o requisito de "boa aparência" nas
ofertas de emprego. Temos também uma enorme quantidade de classificações
raciais em uma pesquisa feita em 1963, os 100 habitantes de uma vila
de pescadores do Nordeste usaram 40 termos nas autodeclarações
de cor.
Cada estilo tem suas conseqüências.
O racismo americano criou uma solidariedade entre negros
e pardos e, por ser mais evidente, exacerbou as lutas raciais. Um negro
que ascendesse socialmente assumia o compromisso com os membros de sua
etnia. Nas décadas de 50 e 60, esse conflito levou a ações
que combatessem a discriminação, em alguns casos com política
de cotas. Já no Brasil, a diluição da questão
racial dificulta a união entre os não-brancos. "É
comum o negro que ascende socialmente romper o contato com os outros
de sua classe para se preservar. Ele também se torna rigoroso
com a família e com a moral para manter a respeitabilidade",
diz João Baptista Pereira, da USP. É um racismo pouco
assumido, que pressiona os negros e evita que eles se mobilizem. Martin
Luther King teria dificuldades muito maiores por aqui.
PARA SABER MAIS
NA LIVRARIA
Classes, Raças e Democracia
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Ed. 34, 2002
Genes, Povos e Línguas
Luigi Luca Cavalli-Sforza, Companhia das Letras, 2003
Homo Brasilis
Sérgio D.J. Pena (org.), Funpec-RP, 2002
Psicologia Social do Racismo
Maria Aparecida Silva Bento (org.), Vozes, 2002
A História da Humanidade
Steve Olson, Campus, 2002
NA INTERNET
www.ipea.gov.br
www.ceert.org.br
www.palmares.gov.br
www.afirma.inf.br/home.htm