Acasalamento de lagartos desafia evolução por parentesco
Por: Peter Farley
Da New Scientist

Os hábitos de acasalamento de uma pequena espécie de lagartos estão colocando em dúvida um dos dogmas centrais da teoria evolucionária. Uma das melhores explicações quanto aos motivos para que os animais cooperem é que eles se ajudam uns aos outros porque são estreitamente aparentados, um conceito conhecido como seleção por parentesco. Aparentemente, de acordo com descobertas recentes, isso nem sempre é verdade. Os lagartos de bolhas laterais machos cooperam com outros machos geneticamente semelhantes mas não aparentados a eles.

É uma diferença sutil mas extraordinariamente significativa. Porque o comportamento dos lagartos não pode ser explicado pelo conceito de seleção por parentesco, os biólogos talvez tenham de redefinir radicalmente a teoria, ou invocar uma nova forma de seleção evolucionária para explicar por que os lagartos agem dessa maneira. O comportamento diferenciado chega até a sugerir um novo mecanismo pelo qual os genes "egoístas" se propagam sozinhos.

"Trata-se de um estudo extraordinário", diz o ecologista comportamental Walter Koenig, da Reserva Hastings, administrada pela Universidade da Califórnia, em Berkeley. "O trabalho vai forçar a disciplina a estudar de novo a maneira pela qual a evolução funciona, de maneira que até agora ninguém foi capaz de realizar".

A cooperação entre animais é bastante comum, e ocorre em praticamente todas as espécies, de toupeiras a insetos sociais, passando por suricates. A explicação usual é a de que os animais cooperam com espécies aparentadas, para ajudá-las a transmitir os genes de que ambas as espécies compartilham. Até mesmo as instâncias mais extraordinárias de cooperação, como por exemplo as que envolvem o altruísmo das abelhas estéreis, podem ser explicadas por refinamentos da teoria da seleção por parentesco. A regra de Hamilton, por exemplo, determina que esse comportamento aparentemente generoso surge em meio aos insetos sociais porque a estrutura reprodutiva de uma colônia garante que eles estarão relacionados de mais perto às crias da rainha do que estariam às próprias.

Mas o lagarto de bolhas laterais californiano, ou Uta stansburiana, parece ser uma exceção, dizem os biólogos Barry Sinervo, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, e Jean Clobert, do Laboratório Ecológico Nacional de Paris.

O lagarto de bolhas laterais tem trechos coloridos na pele de sua garganta, azuis, alaranjados ou amarelos. A cor dessa faixa é determinada por um único locus genético conhecido como OBY. Esse locus e uma série de outros genes conferem uma coleção distinta de traços imunológicos, hormonais e comportamentais em cada versão de cor. Esses traços determinam que papel cada alternância de cor desempenha em uma disputa de acasalamento única que Sinervo compara a um jogo infantil de pedra, tesoura ou papel.

Os machos com faixas alaranjadas são agressivos e tentam roubar o território dos machos de faixas azuis para ganhar acesso às fêmeas. Os machos amarelos abrem mão de territórios, mas tentam se acasalar sorrateiramente sem que os machos de faixa alaranjada percebam. Os machos de faixa azulada cooperam entre si para defender suas fêmeas contra os sorrateiros machos de faixa amarela.

No entanto, Sinervo e Clobert confirmaram que os machos de faixa azul não cooperam entre si por serem parentes. Por 10 anos, os pesquisadores registraram os antecedentes genéticos de ninhadas de lagartos nascidos em laboratório. Eles rotularam e devolveram esses lagartos ao ambiente selvagem original, distribuindo-os de maneira aleatória, garantindo que a relação dos lagartos uns com os outros não influenciaria indevidamente o padrão de dispersão.

Os machos de faixa azul procuram localizar e estabelecer territórios adjacentes aos de outros machos de faixa azul. Esses lagartos ajudam a defender seus territórios contra os machos de faixa amarela que se espalham indiscriminadamente. Mas os pesquisadores descobriram que a probabilidade de que esses machos fossem muito semelhantes geneticamente -sem serem aparentados- era muito maior do que se poderia esperar quanto a qualquer par de lagartos de faixa azul tomado ao acaso. E ao se aliarem contra os machos de faixa amarela, a "capacidade" de cada macho de faixa azul triplica, em termos do número de descendente que eles geram ("Science", vol 300, pág 1.949). Usando técnicas semelhantes, eles descobriram também que os agressivos machos de faixa alaranjada empregam a estratégia oposta. Eles aumentam sua capacidade ao manter a distância de rivais que tenham semelhanças genéticas.

Sinervo acredita que os lagartos empreguem alguma pista sensorial para determinar a composição genética dos demais lagartos. Isso faz sentido, porque já se presume que os animais empreguem pistas, como o aroma, para encontrar espécimes a eles aparentados. Ele diz também que os genes no locus OBY que conferem uma faixa azul à garganta de um lagarto estão de alguma maneira ligados a outras partes do genoma que produzem o perfil fisiológico característico do animal e sua estratégia de acasalamento. Já que todo o pacote aumenta a capacidade, os traços são todos herdados juntos por meio de um processo que ele designa como "seleção correlacional com base no genoma completo".

Laurent Keller, especialista em genética evolucionário na Universidade Lausanne, na Suíça, diz que é difícil compreender como algo assim poderia acontecer caso esses diferentes partes do genoma não estejam depositadas no mesmo cromossomo. "Como é possível que exista ligação entre elas se estão amplamente distribuídas pelo genoma?"

Os especialistas contactados pela "New Scientist" dizem não duvidar da qualidade do trabalho de pesquisa de Sinervo. Mas os resultados obtidos por ele são extremamente difíceis de interpretar, e pode demorar algum tempo até que as implicações completas de seu trabalho possam ser avaliadas. "À medida que as pessoas começarem a olhar para esse espécie de coisa e a documentar as bases genéticas dessas questões, haverá mais exemplos dessa situação, não só dentro de uma espécie mas entre diferentes espécies", diz Stephen Shuster, biólogo da Universidade do Norte do Arizona em Flagstaff.

Sinervo acredita que os biólogos provavelmente tenham de refinar suas teorias levando em conta o fenômeno revelado em sua pesquisa. Koenig concorda: "O parentesco não é importante na situação experimental que eles criaram. Alguma outra força seletiva, anteriormente não detectada, está em ação lá".

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