Argila
pode estar na origem das células
Por Reinaldo José Lopes, free lancer da
Folha
O ingrediente que faltava
para reunir as moléculas orgânicas da Terra primordial numa membrana,
formando um esboço de célula, pode ter sido uma simples fôrma de
argila -um pó ou pasta acinzentada comum em diversos lugares do
planeta.
É isso o que sugerem
experimentos feitos por cientistas norte-americanos, nos quais a mera
adição desse condimento mineral multiplicou em cem vezes a tendência
de ácidos graxos (as moléculas que compõem os lipídios ou gorduras)
de formar uma membrana de camada dupla, parecida com a que todas as células
bacterianas, animais ou vegetais ostentam até hoje.
Esse projeto de célula, no
entanto, vai muito além da mera formação: ele também consegue
"crescer", incorporando mais partículas de ácido graxo
espalhadas nas proximidades, e até se "dividir" -embora
precise de um certo grau de estímulo dos pesquisadores para conseguir
realizar essa última proeza.
"Não estamos querendo
dizer que foi exatamente assim que aconteceu durante a formação da
vida", declarou à Folha o bioquímico Jack Szostak, 50, da
Universidade Harvard (EUA). "O que o nosso experimento faz é
demonstrar que precursores celulares poderiam aparecer sem a necessidade
de mecanismos bioquímicos complexos", afirma o pesquisador, cujo
trabalho sai hoje na revista norte-americana "Science" .
O experimento de Szostak
(pronuncia-se "chôstak") e seus colegas marca mais um ponto
em favor da humilde argila, que já tinha demonstrado outra propriedade
suspeitamente pró-vida. Ela é capaz de induzir a formação de cadeias
de RNA, a molécula-irmã do DNA que também armazena instruções genéticas
e, ao contrário dele, consegue induzir reações químicas sozinha.
Para muitos cientistas, o RNA é o candidato ideal para primeiro
material genético da história da vida.
Do barro à vida
"Nós nos inspiramos
nessa capacidade conhecida da montmorillonita [o tipo de argila mais
utilizado no experimento] para ver se ela conseguia induzir o mesmo
processo com os ácidos graxos", conta Szostak. As membranas
celulares verdadeiras são formadas por moléculas bem mais complicadas,
embora aparentadas: os fosfolipídios, que incluem também átomos do
elemento fósforo.
A tendência desses ácidos
é se juntar em pequenos aglomerados. Os pesquisadores, no entanto,
viram que a adição de um pouco de montmorillonita à mistura aumentou
em cem vezes essa tendência. As vesículas de dupla camada que surgiram
da reação englobavam as partículas de argila.
Como tanto o mineral quanto
as camadas de ácido têm carga elétrica negativa (e portanto deveriam
se repelir), a hipótese dos pesquisadores é que uma camada de partículas
positivas adjacente à argila atraia as vesículas. Os pesquisadores
misturaram ainda RNA, marcado com uma tinta fluorescente vermelha, à
argila. Ele também foi englobado -mais um passo em direção a uma
"célula", com membrana e material genético (veja a foto
abaixo). Na presença de mais matéria-prima, as vesículas cresceram,
absorvendo-a, e os pesquisadores causaram sua "divisão
celular" (que ocorreu sem perda do material interno) fazendo-as
atravessar uma rede de microporos.
"Se pudéssemos fazer
com que o RNA iniciasse algum tipo de síntese dentro dessas vesículas,
seria um grande passo. Mas esse é um grande projeto, ao qual ainda
temos de dar prosseguimento", afirma Szostak. "Temos de ter a
mente aberta e tentar simular um caminho completo, da formação das moléculas
orgânicas à das células." Uma coisa, no entanto, é certa: matéria-prima
não faltava.