Com
quandos "F's" se escreve evolução?
Felipe A. P. L. Costa (*)
Naturalistas e outros observadores do "mundo
selvagem" freqüentemente relatam casos de plantas e animais que
parecem estar muito bem ajustados aos lugares onde vivem: árvores que
atraem polinizadores específicos para suas flores; lagartas que
constroem abrigos nas folhas da planta-hospedeira; peixes que nadam em
águas profundas sem morrer esmagados; morcegos que navegam no escuro
sem trombar nos obstáculos etc. Biólogos evolucionistas procuram
mostrar que esses e muitos outros exemplos não são apenas ilusões ou
simples coincidências, mas resultados de um processo ativo de
ajustamento: a evolução por seleção natural [para mais alguns
exemplos, ver Williams, G. C. 1998. O brilho do peixe-pônei. RJ,
Rocco]. "Evoluir" significa mudar e "evolução
biológica" pode ser entendida como toda e qualquer mudança
hereditária que ocorre em populações naturais, geração após
geração.
Poucos assuntos científicos rivalizam com a
biologia evolutiva em termos do grau de interesse que despertam entre os
leitores e o público em geral [nos últimos anos, inúmeros livros de
divulgação lidando com um ou outro aspecto da biologia evolutiva foram
publicados no Brasil; a literatura técnica, contudo, ainda é muito
escassa; para uma boa introdução ao assunto, ver Futuyma, D. J. 1993. Biologia
evolutiva. Ribeirão Preto, Sociedade Brasileira de Genética].
Editores e repórteres de jornais e revistas sabem disso e costumam
aquecer pautas mornas colocando nelas pitadas de temas evolutivos
"quentes": quem somos, de onde viemos, como chegamos até
aqui? Até mesmo cientistas que trabalham em áreas distantes gostam de
especular e dar os seus palpites, em especial quando o assunto é a
"evolução humana". Infelizmente, reportagens e artigos
publicados na imprensa costumam carregar no tom sensacionalista,
tratando a evolução como assunto meramente especulativo, repleto de
incertezas e sobre o qual nem os próprios biólogos conseguiriam entrar
em acordo... Em suma: uma "torre de Babel", na qual muitos
falam, mas poucos se entendem...
Um exemplo recente desse tom espalhafatoso pode
ser encontrado no número de agosto de 2001 da revista Superinteressante,
da Editora Abril – a revista de "divulgação científica"
mais vendida no Brasil, com tiragem superior a 400 mil exemplares. Com
uma chamada na capa, a revista alardeava: "Darwin estava errado?
– por que tantos cientistas estão colocando a teoria da evolução em
xeque". "Tantos" sugerindo "muitos" é um claro
exagero; mas "colocar em xeque" é nada mais nada menos do que
uma daquelas iscas que editores ardilosamente empurram para a primeira
página tentando atrair a atenção do público e aumentar as vendas.
Nem o próprio Stephen J. Gould, co-autor da
chamada hipótese do "equilíbrio pontuado" e uma das fontes
citadas na referida matéria, parece mais levar a sério a importância
generalizada de algum tipo de evolução "não-darwiniana",
isto é, que alguma outra força, que não a seleção natural, seja o
principal mecanismo responsável pelas mudanças evolutivas [ver
comentários e entrevista com S. J. Gould em Hogan, J. 1998. O fim da
ciência: uma discussão sobre os limites do conhecimento científico.
SP, Companhia das Letras; sobre a hipótese do equilíbrio pontuado, ver
Eldredge, N. & I. Tattersall. 1984. Os mitos da evolução humana.
RJ, Zahar; para uma ampla visão histórica da biologia evolutiva, ver
Mayr, E. 1998. O desenvolvimento do pensamento biológico:
diversidade, evolução e herança. Brasília, Editora da UnB]. No
fim das contas, matérias jornalísticas como essa estão apenas
reproduzindo – por desinformação ou simples má-fé –erros e
mal-entendidos grosseiros, inclusive alguns que poderiam ser facilmente
evitados se os seus autores simplesmente não confundissem o significado
dos três "efes" que existem por trás da palavra
"evolução": fato, filogenias e forças [sobre a distinção
crucial entre fato, filogenias e forças evolutivas, ver Ruse, M. 1995. Levando
Darwin a sério. BH, Itatiaia].
Fato
Tratar a evolução ou qualquer outro fenômeno do
mundo natural como um fato significa tão-somente admitir sua
existência, a despeito do que sabemos ou compreendemos a seu respeito.
Ao contrário do que possa parecer, nenhum debate científico recente
tem posto em dúvida o fato ou a realidade objetiva da evolução
(presente ou passada), embora haja divergências a propósito de sua
reconstituição histórica ("como ocorreu?") ou sobre os
mecanismos causais que a promovem ("por que ocorre?"). No
entanto, por mais acirradas ou acaloradas que sejam, polêmicas
científicas sobre "como" ou "por que" a evolução
ocorreu no passado e continua a ocorrer no presente não a suprimem como
um fato da vida, do mesmo modo como divergências a respeito da
composição química do Sol não interrompem a sucessão dos dias e das
noites...
Filogenias
Cada indivíduo recém-nascido é o elo mais novo
em uma cadeia de gerações que retrocede ininterruptamente até a
aurora dos tempos. Ao longo dessa impressionante jornada, inúmeras
espécies surgiram, dividiram-se em novas linhagens e então
desapareceram, naturalmente. A filogenia de uma linhagem é um resumo de
sua história evolutiva, isto é, uma reconstrução geral das
relações de parentesco entre as várias espécies que ela gerou ao
longo do tempo – a maioria das quais, na maioria dos casos, é bom que
se diga, já foi extinta. Na prática, montar filogenias é um
quebra-cabeça difícil e meticuloso [sobre árvores filogenéticas ver
Amorim, D. S. 1997. Elementos básicos de sistemática filogenética.
Ribeirão Preto, Holos/Sociedade Brasileira de Entomologia; sobre
fósseis e "elos perdidos", ver Carvalho, I. S. (org.). 2000. Paleontologia.
RJ, Interciência], tanto pelas dimensões do empreendimento como
também pela falta de elos ligando todas as espécies envolvidas –
para ter uma idéia, tente, por exemplo, montar sua própria árvore
genealógica e descubra quão poucas gerações de ancestrais você
conseguirá reconstituir! Não é de estranhar, portanto, que a
história evolutiva de tantas linhagens de plantas e animais esteja
repleta de "elos perdidos", dando margem a interpretações e
especulações divergentes.
Forças
Não há uma completa unanimidade entre os
biólogos sobre a identidade e a importância relativa das forças que
promovem a evolução, embora a seleção natural ocupe o primeiro lugar
na lista de preferências. A evolução por seleção natural é uma
teoria essencialmente ecológica, que pode ser resumida em poucas
palavras: (1)
o potencial reprodutivo dos seres vivos é enorme, mas quase nunca é
realizado, pois a maioria dos indivíduos morre antes de gerar seus
próprios descendentes; (2)
filhos diferem entre si e também dos seus pais, e muitas dessas
diferenças são hereditárias; (3)
indivíduos que conseguem sobreviver e se reproduzir em geral são
aqueles que exploram os recursos e/ou evitam os problemas de modo mais
eficiente; e (4)
os pais da próxima geração tendem a ser portadores de
características hereditárias que dão as maiores chances de
sobrevivência e reprodução sob as circunstâncias ecológicas
vigentes.
Contexto ecológico da mudança evolutiva
Nenhuma outra ciência se compara com a biologia
em termos de variedade temática: por si só, o exame das
características (morfológicas, fisiológicas e comportamentais) de
cada uma das 1,5 milhão de espécies nomeadas e descritas formalmente
– para não falar em todas as espécies existentes na Terra (as
estimativas variam de 5 milhões a 50 milhões de espécies) – já se
apresenta como um empreendimento aparentemente interminável e
absurdamente trabalhoso. Frente a tamanha riqueza de detalhes e
espécies, o geneticista Theodosius Dobzhansky (1900-1975) disse certa
vez: "Nada em biologia faz sentido exceto à luz da
evolução" [esta frase serviu como título para um artigo de
Dobzhansky, que pode ser lido em <http://www.elite.net/~hclark/light.htm>
<http://www.elite.net/~hclark/light.htm>;
o único livro técnico desse autor publicado no Brasil infelizmente
está esgotado há muitos anos – Dobzhansky, T. 1973. Genética do
processo evolutivo. SP, Edusp/Polígono]. Em outras palavras, frente
a tantos detalhes e a tantas espécies, o que em última instância dá
coesão e veicula (direta ou indiretamente) cada um a todos os outros
estudos biológicos é a realidade da evolução.
Mas a evolução não ocorre em um "vácuo
ecológico"; ao contrário: se nada em biologia faz sentido exceto
à luz da evolução, "muito pouca coisa em evolução faz sentido
exceto à luz da ecologia". É a ecologia que torna a evolução um
processo inevitável, de tal forma e a tal ponto que mesmo se os
componentes abióticos do ambiente (variáveis climáticas, por exemplo)
fossem "congelados" do jeito que são atualmente, os
componentes bióticos (plantas, animais, fungos e microorganismos)
continuariam a mudar. E mudanças evolutivas em uma determinada
população acabam provocando alterações nas pressões seletivas sobre
as demais espécies com as quais ela interage. Se um novo tipo de defesa
surge em uma população de presas, por exemplo, seus predadores logo
passam a ser pressionados no sentido de evoluir algum tipo de
contra-ataque -- sob pena de passar fome e correndo o risco de
desaparecer. Não existem, contudo, soluções propriamente definitivas
para tais "corridas armamentistas", pois evoluir novos tipos
de defesa ou de ataque produz repercussões que vão e voltam... [sobre
"corridas armamentistas", ver Krebs, J. R. & N. B. Davies.
1996. Introdução à ecologia comportamental. SP, Atheneu]
Populações naturais com pouco ou nenhum
potencial para evoluir (isto é, com pouca ou nenhuma variabilidade
genética) têm chances reduzidas de persistir a longo prazo em um mundo
heterogêneo, no qual as condições de vida e a disponibilidade dos
recursos estão sempre mudando – tanto no espaço ("o que tem
aqui, falta ali") como no tempo ("o que ontem era comum, hoje
é raro"). A capacidade de evoluir é, portanto, indispensável
para a persistência a longo prazo de populações que vivem em
ambientes heterogêneos. Afinal, essa talvez seja uma maneira apropriada
de reescrever o primeiro parágrafo desse artigo: evolução é um
processo permanente de busca por soluções para o "drama
ecológico da vida" – isto é, como sobreviver e se reproduzir em
um mundo finito, heterogêneo e habitado por tantas outras criaturas que
estão tentando fazer exatamente a mesma coisa?
(*) Biólogo; e-mail <meiterer@hotmail.com>
<mailto:meiterer@hotmail.com>;
Caixa Postal 794, Juiz de Fora, MG, 36001-970.
Leituras recomendadas
Para uma leitura introdutória ao estudo da
ecologia, ver Ehrlich, P. R. 1993. O mecanismo da natureza: O mundo
vivo à nossa volta e como funciona. RJ, Campus
Sobre o estudo da evolução em "carne e
osso", ver Weiner, J. 1995. O bico do tentilhão. RJ, Rocco;
para uma visão técnica detalhada, ver Vermeij, G. J. 1987. Evolution
and escalation: an ecological history of life. Princeton, PUP