A Sopa da Vida
MARCELO GLEISER


Folha de São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

A sopa da vida

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Os primeiros indícios de vida na Terra datam de 3,5 bilhões de anos
atrás, 1 bilhão de anos depois da formação do planeta. Esses organismos
tinham só uma célula, com bioquímica extremamente simples, mesmo se
comparada à de outros organismos unicelulares que apareceram mais tarde.

Reconstruir o surgimento da vida na Terra é um dos grandes desafios da
ciência. Primeiro pelo fato de que, ao entendermos a origem da vida,
estamos entendendo parte da nossa. Depois porque, ao entendermos a sua
origem aqui, poderemos talvez descobrir se ela existe em outras partes
do cosmo.

A química fundamental dos seres vivos não está restrita à Terra

A infância da Terra foi extremamente violenta. Durante o primeiro bilhão
de anos, cometas e asteróides bombardeavam constantemente sua
superfície, aquecendo-a e depositando rochas e compostos químicos em seu
oceano. Os continentes não existiam. A composição química da atmosfera
era muito diferente, com quase nenhum oxigênio. A vida que podia existir
então tinha características muito diferentes das que vemos hoje. A Terra
primitiva era, efetivamente, outro planeta.

Sabemos que compostos orgânicos existem no espaço. Em 1970, a composição
química de um meteorito que ficou conhecido como Meteorito de Murchison
foi analisada. Foram encontradas grandes quantidades de aminoácidos,
componentes fundamentais da química da vida. Ou seja, ela não está
restrita ao nosso planeta. Mas vamos com calma. Isso não significa que a
vida fora da Terra tenha sido confirmada; apenas que seus componentes
estão espalhados pelo Sistema Solar. Mas, então, por que não em outros
sistemas estelares da Via Láctea ou do Universo? E como esses
componentes se transformaram em seres vivos?

Aqui a coisa fica ainda mais complicada. A teoria mais aceita atualmente
diz que uma combinação de compostos orgânicos simples, provenientes do
espaço ou sintetizados em ambientes aquosos ou mesmo na superfície das
rochas, começou a formar compostos cada vez maiores, encadeados como
elos em uma corrente: a sopa pré-biótica. O problema é que a síntese de
moléculas mais complexas a partir de elos menores (monômeros) não é um
processo favorecido energeticamente; é como subir uma escada em vez de
descê-la. Para que a síntese ocorra, é necessário que os compostos
estejam em altas concentrações e que absorvam energia, tornando sua
combinação mais provável. À medida que moléculas cada vez mais complexas
(polímeros) foram formadas, algumas passaram a interagir com outras,
aumentando o número de ingredientes da sopa.

Os primeiros catalisadores (moléculas capazes de acelerar reações
químicas) apareceram. Embora os passos detalhados sejam ainda
desconhecidos, alguns polímeros finalmente tornaram-se capazes de se
replicar, mesmo que imperfeitamente. Estas seriam as primeiras entidades
moleculares capazes de multiplicação e variação, cuja perpetuação
depende de sua habilidade de absorver energia do ambiente à sua volta: a
vida dá seus primeiros passos.

Ainda não foi possível reproduzir em laboratório a seqüência de reações
que leva à geração de entidades orgânicas auto-replicantes. Sabemos que
o experimento deu certo na Terra primitiva e possivelmente em inúmeros
outros planetas espalhados pelo cosmo. De uma coisa podemos estar
certos: em cada lugar a sopa deve ter tido uma receita diferente. O
cardápio da vida tem pratos muitos mais variados do que suspeitamos.

Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em
Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1704200502.htm

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