O Radical da Genética
Revista VEJA entrevista: James Watson


Revista VEJA - ago/2005
Entrevista: James Watson
O radical da genética

Um dos cientistas que descobriram a estrutura do DNA diz que não deve haver restrição nenhuma à pesquisa com genes

Jerônimo Teixeira

Suzanne Dechilot/The New York Times
"Se um dia pudermos mudar os genes para que as crianças fiquem mais bonitas ou inteligentes, não vejo por que não fazê-lo"

O biólogo americano James Watson, de 77 anos, participou de uma das maiores revoluções científicas de todos os tempos. Testes de paternidade, transgênicos, clonagem – nada disso seria possível sem a descoberta realizada por ele e seu parceiro Francis Crick (que morreu no ano passado) em 1953. A dupla desvendou a estrutura do DNA, a molécula que contém as informações do código genético. Na época, Watson achou que Crick – a quem couberam as principais intuições matemáticas do achado – exagerava ao dizer que eles haviam revelado o "segredo da vida". No livro DNA (Companhia das Letras), que chega nesta semana às livrarias brasileiras, Watson revisa o avanço da ciência e conclui que seu parceiro estava certo: o DNA encerra o segredo da vida, e também de como melhorá-la. À frente do Laboratório de Cold Spring Harbor, em Nova York, o cientista é um defensor do aprimoramento genético da humanidade – com um potencial para a controvérsia que fica claro na entrevista que se segue.

Veja – Em 1953, o senhor e seu parceiro Francis Crick anunciaram ter descoberto a estrutura do DNA, num artigo de uma página. Dada a importância do achado, o texto talvez seja um dos mais contidos da história da ciência. Por que essa modéstia?


Watson – Porque não podíamos prever o futuro. Ao redigir aquele ensaio, Crick e eu acreditávamos estar contribuindo para um melhor entendimento da realidade. Não sabíamos que, na verdade, estávamos contribuindo para transformá-la. Essa transformação começou a ocorrer vinte anos depois, quando os cientistas Herb Boyer e Stanley Cohen inventaram uma técnica que permitiu manipular a molécula de DNA e inauguraram a era da engenharia genética. Eles deram um uso prático à nossa descoberta, e, a partir dali, as coisas se aceleraram.

Veja – Que inovações podemos esperar da genética nos próximos anos?


Watson – Eu diria que em dez anos quase todas as lavouras serão modificadas geneticamente. Na área da pesquisa médica, com a qual trabalho, destacaria progressos em duas direções. No tratamento do câncer, estamos caminhando no sentido de fazer biópsias de DNA, nas quais examinaremos o tumor para verificar que tipos de alteração genética estão ocorrendo. Com isso, teremos tratamentos melhores, com drogas que matam as células cancerosas que sofreram determinada mutação em seus genes. Tenho esperança de que daqui a uns 25 anos o câncer já não será considerado uma doença grave. Saberemos de suas causas, poderemos combatê-lo. Por outro lado, creio que em breve começaremos a encontrar os genes responsáveis por uma série de distúrbios mentais, como a esquizofrenia e o autismo. Em meu livro DNA, quase não discuto esse tema, pois ainda não há muito que dizer sobre isso em um texto de divulgação científica. Mas, como eu digo no próprio livro, ele está destinado a se desatualizar.

Veja – A compreensão genética dos distúrbios mentais é então uma fronteira que a genética ainda precisa cruzar?


Watson – Sim, creio que sim. Nosso laboratório está até construindo uma nova ala que será dedicada à pesquisa da esquizofrenia. Esse é um bom tópico para a ciência hoje.

Veja – O senhor mesmo tem um filho com problemas mentais.


Watson – Sim, mas não quero tecer comentários a respeito. Ele é capaz de ler, e não quero que leia coisa alguma sobre si mesmo.

Veja – A pergunta é sobre o senhor: como a doença de seu filho determinou seu interesse pelas pesquisas nessa área?


Watson – É claro que houve uma influência. Mas meu filho já sofre de sua doença há bastante tempo, e só recentemente me dediquei a pesquisar sobre o tema. Nos últimos quarenta anos, estive mais voltado para a pesquisa do câncer. Ocorre que por muito tempo não tínhamos nenhuma pista na área dos distúrbios mentais. Agora, creio que o problema está ao alcance da genética, embora ainda não tão claramente.

Veja – O senhor causou muita controvérsia ao dizer que a burrice poderia ser tratada como uma doença. Pode explicar sua posição?


Watson – Muitos acreditam que somos todos iguais, que, com boa escola e boas condições sociais, todos aprenderão da mesma forma. Não é assim. A dificuldade de aprendizado nem sempre é resultado do ambiente. Algumas pessoas nascem com impedimentos. Há doenças relacionadas a agentes infecciosos, a traumas durante a gravidez, a genes ruins – pode haver diferentes causas para o mesmo efeito final. Qualquer que seja essa causa, se o seu cérebro não consegue trabalhar, digamos, com matemática, não é um cérebro normal. Se você não consegue juntar dois e dois para fazer quatro, é porque algo não está bem. Chamamos a esquizofrenia de doença mental, e o mesmo pode valer para certos QIs muito baixos, que não são funcionais. Se uma criança não consegue aprender a ler, eu acredito que isso seja uma doença. Ou, se a palavra "doença" é muito forte, diria que essa pessoa precisa de ajuda. Chamar isso ou não de doença não é o principal.

Veja – Que tipo de ajuda a genética pode fornecer a essas pessoas?


Watson – Depende das razões do problema. Pessoas com dislexia moderada, por exemplo, sabem ler, mas quem tem uma forma mais severa desse distúrbio nunca aprenderá. Quando alguém sofre de Alzheimer e sua memória se dissolve, não temos nenhum problema em chamar isso de doença. O mesmo pode valer para quem não é capaz de formar memórias. Essa pode ser a razão da burrice de algumas pessoas: talvez elas não sejam capazes de reter certas lembranças por algum defeito genético. O fato de chamarmos isso de doença não significa que nada possa ser feito a respeito. Pelo contrário, significa que estamos buscando formas de ajudar essas pessoas. E estamos fazendo progressos.

Veja – Uma característica como a inteligência, que envolve um complexo de genes, poderá um dia ser manipulada?


Watson – Não temos idéia. A inteligência envolve, sim, todo um complexo de genes. Mas você pode perdê-la com um defeito em apenas um deles. É o que ocorre, por exemplo, na síndrome do X frágil: por causa da falha em um gene, a pessoa nunca vai progredir além da inteligência de uma criança de 5 anos. No momento, não temos cura para essas condições. Talvez algum dia tenhamos uma terapia genética para resolver o problema – mas creio que será tecnicamente muito difícil inserir um gene sadio no cérebro das vítimas da síndrome. O que a ciência pode oferecer, no momento, é prevenção. Podemos impedir o nascimento de crianças com problemas mentais graves.

Veja – O senhor considera aceitável abortar bebês que poderiam viver, ainda que com deficiências?


Watson – Algumas pessoas pensam que o aborto é irresponsável. Do meu ponto de vista, o que é irresponsável é deixar nascer uma criança que terá uma doença incurável grave. É algo que causará sofrimento desnecessário. Mas isso, é claro, é uma escolha individual que cabe à mulher grávida. Cada um age de acordo com seus valores, e não quero roubar a ninguém o direito de tomar suas decisões. Se, por exemplo, o seu filho ainda não nascido tiver síndrome de Down, você pode perguntar se há alguma chance de curá-lo. Como cientista, responderei que não, que não existe hoje nenhuma chance de que essa criança seja normal. Esse é um fato científico: como as pessoas lidarão com ele é outro problema. Algumas verão a síndrome como sendo a vontade de Deus. Eu a vejo como uma falha biológica: no lugar de ter duas cópias do cromossomo 21, ela tem três, e isso conduz à anormalidade. Não vejo propósito no nascimento de quem vai levar uma vida menor, restrita.

Veja – E se um dia pudermos prever que um feto será, digamos, homossexual? Razões como essa seriam aceitáveis para um aborto?


Watson – As mulheres devem ter a liberdade de fazer o que elas consideram o melhor para sua família. Mulheres de diferentes culturas e circunstâncias terão diferentes concepções. Aquilo que é certo para uma delas pode não ser para outra. Decisões genéticas devem ser tomadas pelas mães, ou em acordo com sua família. O Estado não deveria influir sobre isso de forma alguma.

Veja – Há necessidade de alguma restrição legal à pesquisa genética?


Watson – Eu diria que não. Sou muito libertário. Se alguém um dia descobrir que podemos adicionar algum gene para que as crianças nasçam mais inteligentes, ou mais bonitas, ou mais saudáveis – bem, eu não vejo por que não fazê-lo. Não acredito que o sofrimento faça bem a uma pessoa. Algumas pessoas dizem: "Cristo sofreu, então os homens também precisam sofrer". Eu não compro esse argumento. Hoje, não temos a capacidade de melhorar a humanidade dessa forma. Se um dia pudermos, por que não? Alguns alegam que isso favoreceria os ricos, mas não há novidade aí: os ricos sempre compram a nova tecnologia antes dos demais.

Veja – Não há sempre o perigo de essas tecnologias serem usadas por ideologias racistas?


Watson – Tudo pode ser usado para o mal, mas isso não é motivo para parar o progresso. Será tolo limitar a pesquisa genética porque os racistas podem se apropriar dela. Uma epidemia causada por um vírus ou uma bactéria pode ser uma ameaça bem maior do que o racismo – poderia até dizimar a raça humana. Há pouco tivemos a gripe do frango na Ásia, que felizmente pôde ser controlada. A peste, cerca de 600 anos atrás, devastou a população européia e deixou uma recessão que se arrastou por séculos. E se uma nova infecção dizimasse hoje a metade da população do Brasil? Seria terrível. A genética pode nos proteger desse perigo, se um dia tivermos a capacidade de mudar a constituição das pessoas para que elas se tornem, por exemplo, resistentes ao HIV, que causa a aids.

Veja – O senhor não veria razões nem para proibir a clonagem humana?


Watson – Em 1972, quando pela primeira vez me dei conta de que um dia teríamos a possibilidade de clonar um ser humano, escrevi um artigo a respeito. Foi um texto prematuro: ninguém lhe deu a mínima atenção. Não gosto da idéia de produzir cópias humanas. Acabam de clonar um cachorro, mas ainda é algo difícil de realizar. Se um dia a técnica se tornar mais acessível e a maioria da humanidade for de clones – bem, esse não seria um mundo que eu desejaria ver. Um só clone, porém, não vai mudar o mundo. Não é uma arma nuclear. E não estou mais interessado em projeções futuristas. Clonagem deve preocupar o cientista que está na casa dos 20 anos. Na minha idade, estou mais preocupado com a cura da doença de Alzheimer.

Veja – O senhor é tido como um gerador de controvérsias. É mesmo?


Watson – A genética sempre será uma matéria controvertida. Porque as pessoas não gostam de imaginar que aquilo que elas são é determinado por moléculas de DNA. Nenhuma mulher gosta de pensar que nasceu feia. "Bom", elas dizem, "se eu usar o cabelo desse jeito, ou se vestir roupas melhores..." Ela pode fazer tudo isso, claro. Mas o fato incontestável é que algumas mulheres tiveram mais sorte no jogo de dados genético do que outras. A questão é ainda mais delicada no que concerne ao cérebro – personalidade, inteligência etc. As pessoas gostam de imaginar que o cérebro é totalmente maleável, mas não é.

Veja – Algum dia chegaremos ao fim do debate sobre o que tem mais efeito sobre nossa personalidade – os genes ou o ambiente?


Watson – Não. Essa discussão vai sempre nos acompanhar. Muita gente ainda insiste em que a criação que você recebe em casa tem mais influência sobre o que você é do que sua natureza. Algumas pessoas querem até mesmo negar que existam diferenças inatas entre os indivíduos. Afirmam que, se alguém tem alguma deficiência, é porque foi vítima da pobreza, do capitalismo, da poluição. Não penso que isso seja verdade, mas compreendo a motivação: é natural que, quando algo está errado, tentemos primeiro modificar o ambiente para eliminar o problema. Modificar os genes é muito mais difícil. A genética e a evolução podem ser cruéis, e algumas pessoas têm azar nesse jogo.

Veja – A polêmica entre os adeptos da teoria da evolução e aqueles que acreditam no "desenho inteligente", na idéia de que os seres vivos já foram criados como são, voltou a se aquecer. O que acha dessa controvérsia?


Watson – Mais de um século depois de Darwin, há um impasse entre a ciência e a religião – ou, pelo menos, entre a ciência e certas religiões, que estão obcecadas pelos rumos da biologia. Elas não gostam do conceito de evolução, embora todos os biólogos o apliquem, pois não se trata de uma mera teoria, mas de um fato. A controvérsia atual é sobre a conveniência de ensinar na escola o "desenho inteligente" lado a lado com o evolucionismo. Isso é misturar ciência e crença. É misturar idéias com base experimental com outras que não têm nenhuma. Não acho que deva ocorrer.

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