DO COLUNISTA DA FOLHA
Por incrível que pareça, biólogos e teóricos da evolução ainda não se cansaram de perguntar: para que, afinal, serve o sexo? Mais intrigante ainda é a resposta geralmente aceita: epistasia negativa. Ou, se preferir: é a própria natureza que sustenta uma opção preferencial pela reprodução sexuada, como insinua mais um trabalho científico, publicado na última edição do periódico científico "Nature". O sexo veio para ficar porque é uma invenção para lá de eficiente no mundo da seleção natural.
Antes de partir para as complexidades do calibre de "epistasia negativa", é preciso fornecer algum contexto. Como explica o biólogo português Ricardo Azevedo em seu artigo na "Nature" de quinta-feira -e também no próprio blog, Newton's Binomium (http://newtonsbinomium.blogspot.com)-, à primeira vista o sexo é contraproducente. Bactérias, provavelmente as primeiras formas de vida a surgir sobre a Terra, passam bem sem ele há mais de 3 bilhões de anos, reproduzindo-se por mera divisão.
A receita não poderia ser mais simples, minimalista mesmo. De uma célula progenitora resultam duas células-filhas, cópias quase idênticas (clones) da original. A não ser, claro, por mutações, defeitos que eventualmente surgem no processo de duplicação das longas cadeias de DNA com as especificações necessárias para esses organismos unicelulares funcionarem. Como a maioria das mutações tem efeitos danosos, a reprodução assexuada tende a acumular defeitos nas gerações seguintes.
Maria e o sexo
Com o sexo, a coisa muda de figura. Em primeiro lugar, ele despende uma quantidade maior de energia que a reprodução assexuada -afinal, é necessário encontrar e reunir dois organismos para gerar a prole.
Antes disso, gastam-se também mais recursos celulares numa rodada extra de divisão celular, a meiose, para produzir as células germinativas (gametas) que, fundidas, darão origem a um novo ser.
Que vantagem Maria leva? Aparentemente, nenhuma. "Como as feministas vêm nos dizendo há algum tempo, os machos são um tanto inúteis", escreveu Azevedo em seu blog. "Uma fêmea mutante humana capaz de se reproduzir assexuadamente e parir mais fêmeas como ela daria origem a uma população com uma taxa reprodutiva per capita duas vezes maior que a da população humana normal." Trata-se de uma impossibilidade biológica para a espécie humana, apressa-se em dizer o pesquisador da Universidade de Houston (Texas, EUA).
E, no entanto, o sexo existe -além de fazer o maior sucesso. Para explicar sua emergência e sua permanência no mundo vivo, biólogos criaram ao menos duas dezenas de explicações e teorias. Grosso modo, boa parte delas resume-se a dizer que a reprodução sexuada é um mecanismo insuperável para gerar diversidade, variação. A cada ciclo, graças a ela, surgem organismos mais diferenciados de seus progenitores do que no caso de a diferença ser produzida unicamente por mutações. Em poucas palavras, carne fresca e abundante para o moedor da seleção natural.
Dano sobre dano
Aqui entra em cena a tal epistasia negativa. A reprodução sexuada, para se manter em cartaz no impiedoso universo darwiniano, teria de implicar um quê extra de eficiência. Alguns pesquisadores, entre eles o pioneiro Alex Kondrashov, passaram a propor que o sexo seria também uma maneira ainda mais eficaz de eliminar mutações deletérias, desde que se pudesse provar que dois ou mais desses defeitos de cópia tivessem um efeito danoso pior que a simples soma do dano que cada um causaria, isoladamente (epistasia negativa).
"Imagine que uma única mutação deletéria rebaixe a aptidão [de um organismo] em 5%, na média", explica Azevedo. "Se as mutações não interagirem umas com as outras, é de esperar que mutações sucessivas conduzam a um declínio progressivo, em degraus de 5%. Epistasia negativa ocorreria se, por exemplo, a segunda mutação diminuísse a aptidão em 10% [e não 5%], a terceira, em 15%, e assim por diante." O problema é que uma teoria, para ser aceita, precisa passar por algum tipo de teste empírico, em geral experimental (sob condições controladas). E pesquisas com vários organismos colheram resultados disparatados sobre a epistasia, desde ausência completa até variantes positivas (caso em que duas ou mais mutações não só não tinham efeito deletério aumentado como, ao contrário, ele se mostrava diminuído). Não dispondo de confirmação inequívoca no mundo real, os biólogos inventaram outros mundos.
Azevedo, por exemplo, simulou com programas de computador a criação de 50 populações de organismos virtuais, cada uma com 500 indivíduos clonais (idênticos), e as pôs para evoluir com e sem reprodução sexuada, para comparação. Com esse artifício digital, pode-se obter em minutos o resultado de 5.000 gerações ou mais, o que mesmo com sistemas experimentais "reais" muito rápidos, como vírus, é impossível de realizar. E os resultados foram duplamente compensadores.
Em primeiro lugar, Azevedo constatou a evolução da epistasia negativa. Além disso, verificou que a reprodução sexuada também aumenta a "robustez" dos genomas hipotéticos, ou seja, eles permanecem capazes de produzir características estáveis nos organismos (fenótipos) mesmo na presença de umas poucas mutações e da potencialização entre elas (epistasia negativa). Embora tenha se manifestado igualmente nas populações virtuais privadas de sexo, tal robustez nunca alcançou com elas o nível das sexuadas.
Sexo puxa sexo
Nos resumos que envia a jornalistas, a "Nature" destacou esse segundo resultado sob a rubrica "sexo gera [mais] sexo" ("sex begets sex"). Questionado sobre a possibilidade de haver aí algum exagero, Azevedo disse concordar com a formulação: "Não, é mesmo parte do nosso resultado. Epistasia negativa confere às populações sexuadas uma vantagem imediata sobre populações assexuadas -faz com que elas sejam capazes de se livrar de mutações deletérias de forma mais eficiente. Ou seja, no nosso modelo, a ação sexuada pode auto-sustentar-se a partir do momento em que aparece. Isso tem de ser testado diretamente, mas os resultado são sugestivos".
Em outras palavras, o sexo continuará dando o que falar e experimentar -para a felicidade de todos, e em dobro para os evolucionistas. (MARCELO LEITE)