O maior dos mistérios
MÁRCIA SOMAN MORAES


Jornal da USP - biologia - O maior dos mistérios

O surgimento do Universo e o início da vida no planeta – nascida com as bactérias, os primeiros habitantes da Terra – são temas de exposição em cartaz no Museu de Zoologia da USP

MÁRCIA SOMAN MORAES

Num túnel negro como o Universo, o visitante do Museu de Zoologia da USP se depara com uma nebulosa, pintada na parede com seus tons de roxo e pontos prateados brilhantes. A obra de Eduardo Kobra traz um toque de arte a uma história de bilhões de anos, encantando os olhos daqueles que se perguntam como tudo começou. Com o desafio de contar a história da formação do Universo e do planeta Terra, o Museu de Zoologia inaugurou no dia 9 passado a exposição “Origem da Vida”, na qual conta, de maneira simplificada e com muito visual, como essas duas histórias estão intimamente ligadas.

O surgimento do Universo ainda instiga a comunidade científica. A tese mais aceita pelos estudiosos é a do fenômeno do big-bang, a “grande explosão”. Segundo essa teoria, o Universo teria surgido de forma repentina, como uma massa densa e quente, há cerca de 15 bilhões de anos, originando, durante sua evolução, tudo o que conhecemos hoje.

Embora essa teoria não esteja completamente comprovada, muitos de seus aspectos foram confirmados nos últimos anos. Um exemplo disso é o estudo sobre radiação de corpo escuro (tipo de radiação emitida no momento do big-bang), que rendeu aos norte-americanos John Mather e George Smoot o Prêmio Nobel de Física deste ano.

A exposição conta como os átomos que formam todas as inúmeras formas de vida na Terra já existiam há bilhões de anos no Universo, unindo assim a nossa história com a história do espaço. “Na exposição, nós usamos uma linguagem simples, fazendo uma correlação com o alfabeto. Assim, o texto se relaciona com palavra e com letra, do mesmo modo que a matéria se relaciona com molécula e átomo”, compara Elisabeth Zolcsak, diretora de Difusão Cultural do museu.

Como explica Elisabeth, foi com a grande explosão que surgiu o primeiro átomo do Universo: o hidrogênio, o mais simples dos átomos, formado por apenas um próton e um elétron. Pela lei de atração do negativo e do positivo, os prótons e elétrons espalhados começaram a se unir, criando novos átomos. Esses átomos, de maior peso, causaram diferenças de densidade no Universo, que, ao longo dos bilhões de anos de expansão e ação da força gravitacional, se tornaram as sementes para o surgimento de estrelas, galáxias e toda a estrutura do Universo que conhecemos atualmente.

Elizabeth Zolcsak, diretora de Difusão Cultural do Museu deZoologia da USP (ao lado) e reprodução de vestígios fósseis de bactérias de milhões de anos (acima):“A ciência tem sempre espaço para o pensamento e para a dúvida”

O centro da criação – As estrelas foram as grandes protagonistas dessa história. Formadas a partir da condensação dos átomos de hidrogênio devido a baixíssimas temperaturas, as primeiras estrelas funcionaram como espécies de reatores químicos, produzindo novos elementos, como carbono, oxigênio, nitrogênio, hélio e lítio – mais tarde essenciais à formação da vida na Terra.

Em um movimento infinito de criação e morte, essas estrelas consumiram todo o seu combustível e, numa espécie de explosão, espalharam essa nova matéria pelo Universo. A poeira e o gás originados dessas explosões formaram grandes borrões no céu, as nebulosas, representadas pelo belo grafite de Kobra. “As nebulosas representam a maior parte da massa do Universo. Elas também funcionam como reatores nucleares e vão se transformando em novas estrelas, as chamadas supernovas, pontos muito brilhantes no céu”, explica Elisabeth. É nessas supernovas que se formam os outros 86 elementos químicos conhecidos hoje.

Essa história, contada de forma breve na exposição, visa a mostrar que a vida na Terra começou muito antes de o planeta ter se formado. “Tudo aquilo que é básico quando falamos da matéria que compõe os seres vivos – proteína, aminoácidos e ácidos nucléicos – é formado por esses elementos primordiais do Universo, o hidrogênio, o carbono, o oxigênio. Isso prova que a história da Terra não é algo isolado, mas está intrinsecamente relacionada à formação do Universo, de suas estrelas e galáxias”, explica Elisabeth.

Planeta azul – Foi de uma dessas nebulosas, 10 bilhões de anos após a explosão que deu origem ao Universo, que surgiu todo o sistema solar, incluindo a Terra. E, assim como o Universo, muitas dúvidas cercam sua criação. A maior parte das teorias modernas sustenta que o nosso planeta foi formado pela agregação de poeira cósmica em rotação, que se aqueceu a temperaturas altíssimas por meio de violentas reações químicas.

Logo após sua criação, o planeta passou por um longo período conhecido como accretion, em que milhares de meteoritos bombardearam sua superfície. “O maior desses bombardeamentos foi quando um bloco muito grande se chocou com a Terra e, por seu tamanho, voltou ao espaço. A ação de gravidade da Terra acabou prendendo o meteorito em sua órbita, dando origem à nossa Lua”, conta Elisabeth.

Esse bombardeamento de meteoritos comprovaria a teoria de que os elementos químicos que hoje compõem o planeta não foram formados aqui, mas sim trazidos do espaço com essas rochas. Alguns cientistas defendem até que não só elementos químicos, mas também os primeiros elementos orgânicos foram trazidos ao planeta naquele período.

Sem a pretensão de resolver um dilema de milênios, o Museu de Zoologia da USP apenas apresenta essa teoria e deixa ao visitante a liberdade de refletir e definir qual aquela que mais lhe parece verossímil. “Existem várias teorias sobre o quanto o núcleo da Terra foi realmente afetado por esses bombardeios, mas o que é consenso é que realmente houve o accretion. Para provar isso, nós temos diversos meteoritos que recebemos do Instituto de Geociências da USP. São rochas de ferro e níquel de altíssima densidade que vieram de distâncias incalculáveis do espaço”, diz Elisabeth.

Na época do accretion, a Terra era muito diferente do que é hoje. O planeta era coberto por vulcões constantemente em erupção. Sem a proteção da camada de ozônio, a Terra recebia radiação direta do Sol, atingindo temperaturas altíssimas, além de não possuir oxigênio nem atmosfera. Foi nesse ambiente inóspito que surgiram as bactérias – os primeiros habitantes da Terra. Elas formaram grandes colônias e criaram as condições para transformar a atmosfera e permitir, milhões de anos depois, a existência dos seres vivos no planeta (leia o texto abaixo).

A exposição “Origem da Vida” fica em cartaz até 30 de junho de 2007 no Museu de Zoologia da USP (avenida Nazaré, 481, Ipiranga, São Paulo), de terça-feira a domingo, das 10h às 17h. Entrada: R$ 2,00. Mais informações: (11) 6165-8100.

E assim surgiu a vida

Do Universo negro ao azul profundo da Terra, o visitante da exposição “Origem da Vida”, em cartaz no Museu de Zoologia da USP, é convidado a penetrar na segunda ala da mostra, onde, mais uma vez, ele se depara com mais incertezas do que afirmações. A origem da vida no planeta instiga a humanidade e há milênios tem sido abordada pelos mais diversos pensadores e cientistas, buscando explicar suas origens remotas. A teoria mais conhecida é aquela que compara a Terra de bilhões de anos atrás com uma enorme sopa, a sopa primordial.

Segundo o russo Aleksandr Ivanovitch Oparin – destaca a exposição –, os oceanos primordiais funcionaram como um imenso laboratório químico, alimentado pela forte radiação solar. Nesse meio aquoso, formaram-se o que os cientistas chamam de coacervados (aglomerações de compostos orgânicos). Esses coacervados teriam sofrido inúmeras reações, até que conseguiram aprisionar proteínas e uma molécula de ácido nucléico, que lhes deram a capacidade de se reproduzir, característica básica do ser vivo.

Uma teoria mais recente aponta que seriam microesferas, e não coacervados, os primeiros organismos vivos. Segundo essa teoria, bilhões de microesferas foram formadas nessa fase inicial do planeta com o aquecimento de aminoácidos, elemento
básico da proteína.

Essas microesferas podiam absorver e concentrar outras moléculas existentes na solução ao seu redor e podiam também fundir-se entre si, formando estruturas maiores. Os defensores dessa teoria apontam, como prova de sua veracidade, o fato de que a partir das microesferas podem se formar brotos. “A exposição mostra as duas teorias, mas não afirma nenhuma delas como verdadeira. Não existe comprovação de nenhuma dessas teorias. Isso é o interessante da ciência: se é afirmação, não é ciência, mas fé. Ciência sempre tem espaço para o pensamento, para a dúvida”, teoriza a professora Elisabeth Zolcsak, diretora de Difusão Cultural do museu.

Debates à parte, Elisabeth aponta o que considera o verdadeiro mistério desta história: o encapsulamento das moléculas por uma membrana de gordura e proteína, que permitiu a formação das células, estrutura básica de todos os seres vivos. “Não se sabe como, dessas moléculas, sejam coacervados ou microesferas, surgiram as células. O misterioso é justamente como essa matéria se transformou numa cápsula, o que fica por conta da metafísica de cada visitante”, diz Elisabeth.

Os primeiros habitantes – Entre tantas dúvidas, a exposição dedica sua parte central à única certeza do meio científico quanto às origens da vida: as bactérias foram os primeiros seres vivos a habitar o planeta. Como prova, o museu exibe uma radiografia de rocha em que se vê o fóssil de uma bactéria de cerca de 3,5 bilhões de anos. “As bactérias foram as primeiras a surgir e estão aqui até hoje. São o registro mais antigo de ser vivo existente”,
destaca Elisabeth.

No ambiente quente e sem atmosfera que caracterizou a Terra logo após sua criação, somente as bactérias conseguiram sobreviver e foi essa difícil batalha pela sobrevivência, de quase 3 bilhões de anos, que permitiu toda a evolução dos seres vivos até o surgimento do homem.

Para resistir às condições desfavoráveis de vida, as bactérias viviam em grandes colônias, os estromatólitos. “Eles são formações como corais, em camadas. São característicos de ambientes marinhos ou de regiões que já foram submersas no mar”, explica Elisabeth.

Muitas dessas bactérias eram fotossintetizantes, ou seja, produziam sua energia através da luz do Sol, extremamente abundante à época. Como resultado da fotossíntese, começaram a expelir oxigênio na atmosfera, elemento químico letal para elas. “Por isso elas tinham que se proteger em diversas camadas. As mais sensíveis ao oxigênio ficavam embaixo e as mais resistentes, em cima”, afirma Elisabeth.

Se o oxigênio era letal a essas bactérias, sua produção foi essencial para transformar a atmosfera da Terra e permitir a existência dos seres vivos no planeta. “Os 20% de oxigênio que hoje temos na atmosfera terrestre foram formados há bilhões de anos por essas bactérias fotossintetizantes”, lembra Elisabeth.
Por cerca de 3 bilhões de anos, toda a evolução da vida na Terra foi resultado dos estromatólitos, única forma de vida existente, aprendendo a sobreviver naquele ambiente. O público pode conferir de perto alguns estromatólitos mais recentes, cedidos pelo Museu de Geociências do Instituto de Geociências da USP. Aparentemente rochas comuns, eles guardam os segredos da vida no planeta. “Os estromatólitos não só resistiram aos bilhões de anos em que a Terra viveu numa grande convulsão, como existem até hoje nos mares e oceanos”, acrescenta Elisabeth.

Com o resfriamento do planeta, todo o processo de convulsão pelo qual passava a Terra diminuiu de intensidade, permitindo melhores condições de vida e a evolução de outros seres, como plantas e animais. “Hoje, as mudanças na Terra acontecem de maneira muito mais sutil, com o afastamento dos continentes
de maneira muito gradual”, explica Elisabeth.

A exposição se encerra com aquele que é a chave do surgimento das inúmeras espécies de seres vivos a partir das bactérias: o DNA. Através de um modelo de aço de um metro de altura, o museu explica os conceitos básicos envoltos na mutação do DNA e no conseqüente surgimento de formas de vida diferentes. “Nós contamos o que é o DNA, o que é o gene e como se dá essa mutação que permitiu criar a variedade de vida que temos hoje. Tudo de uma maneira curtinha, tranqüila, sem grandes sofisticações de informações, para que fique facilmente acessível a todo tipo de público”, afirma Elisabeth.

Após conhecer a história do Universo, da Terra e da vida no planeta, o visitante chega ao fim do túnel com um outro convite: conhecer o resto dessa história através da exposição permanente de dinossauros do Museu de Zoologia. “A exposição ´Origem da Vida` acaba falando do período imediatamente anterior ao surgimento dos primeiros animais, há 600 milhões de anos, pouco antes dos dinossauros, que são tema de outra exposição do museu. As pessoas podem conhecer, em uma única visita, bilhões
de anos de história”, convida Elisabeth.

http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2006/jusp787/pag1011.htm

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