Especiação e seleção natural
Felipe A. P. L. Costa


“Saber como os mecanismos de isolamento evoluem é um pré-requisito para que possamos entender a origem de novas espécies e a manutenção de barreiras entre elas”

Felipe A. P. L. Costa é biólogo (meiterer@...), autor do livro Ecologia, Evolução & O Valor das Pequenas Coisas (2003). Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”:

Um conceito popular entre zoólogos afirma que espécies animais são conjuntos de indivíduos que podem cruzar entre si, gerando descendentes viáveis – isto é, que podem gerar seus próprios descendentes.

Cruzamentos interespecíficos não são comuns e, quando ocorrem, os filhotes em geral não chegam a nascer, morrem precocemente ou são estéreis. Haveria assim uma linha divisória, mantida por um ou outro mecanismo de isolamento reprodutivo, segregando as espécies que vivem em um mesmo hábitat.

Esses mecanismos de algum modo impediriam o cruzamento entre animais de espécies diferentes.

Os mecanismos de isolamento reprodutivo costumam ser classificados em

(i) pré-zigóticos, quando impedem a ocorrência de cruzamentos interespecíficos, ou

(ii) pós-zigóticos, quando não chegam a impedir o cruzamento, mas inibem a formação ou o nascimento de híbridos.

Um mecanismo de isolamento pré-zigótico bastante comum entre os animais são as diferenças observadas no comportamento de corte.

Trata-se de um momento particularmente apropriado para segregar espécies que vivem juntas (simpatria), pois é durante a corte que as fêmeas avaliam e escolhem seus parceiros.

Nessas ocasiões, um milímetro a mais ou a menos ou uma pinta fora do lugar podem fazer toda a diferença entre ser ou não o escolhido pelas fêmeas.

Mas por que deveria haver barreiras segregando as espécies? Por que integrantes de espécies diferentes não cruzam livremente entre si? Afinal, por que os cruzamentos simplesmente não são aleatórios?

Essas e outras questões semelhantes têm sido investigadas pelos estudiosos desde que a biologia evolutiva adquiriu ares de disciplina científica, em meados do século 19.

Saber como os mecanismos de isolamento evoluem é um pré-requisito para que possamos entender a origem de novas espécies e a manutenção de barreiras entre elas.

De gafanhotos imaginários...

Imagine duas linhagens intimamente aparentadas de gafanhotos, os Verdes e os Cinza, que diferem entre si apenas pela coloração geral do corpo (esverdeada ou acinzentada) e pelo tipo de substrato que utilizam quando estão em repouso (folhagem ou tronco de árvores, respectivamente).

Nos hábitats onde vivem, gafanhotos dessas duas linhagens enfrentam muitos problemas, inclusive o risco de serem encontrados e mortos por aves insetívoras, que localizam e escolhem suas presas visualmente. As chances de os gafanhotos serem detectados, no entanto, são bem menores quando eles estão camuflados: Verdes sentados na folhagem e Cinza sobre troncos de árvores.

Ao contrário, quando estão pousados no substrato ‘errado’ (Verdes em troncos e Cinza na folhagem), as aves costumam encontrá-los com facilidade.

Suponha, agora, que um punhado de gafanhotos Verdes e outro tanto de Cinza, que até então viviam em áreas distintas, migrem para um hábitat comum. A partir de então, as coisas podem tomar rumos distintos. Pode ser que os gafanhotos, desde o início, se ignorem mutuamente como parceiros sexuais e então prosperem como duas linhagens independentes.

Mas também pode ocorrer de Verdes e Cinza cruzarem entre si, gerando descendentes híbridos (Verzas ou Cindes). Nesse último caso, o rumo dos acontecimentos futuros dependerá muito da viabilidade dos híbridos – isto é, de suas chances de sobrevivência e reprodução em relação aos descendentes convencionais, gerados por acasalamentos intra-específicos.

Se não houver diferenças na viabilidade dos descendentes, os acasalamentos entre gafanhotos Verdes e Cinza podem continuar a ocorrer livremente, sem restrições.

Nesse caso, a freqüência de híbridos tenderia a aumentar, geração após geração, a ponto de as duas espécies eventualmente virem a se fundir em uma só.

Todavia, se a viabilidade dos híbridos for menor que a dos descendentes normais, os gafanhotos deverão passar a acasalar apenas com integrantes de sua própria espécie – isto é, Verdes com Verdes, Cinza com Cinza.

Os híbridos, nesse caso, deixariam de ser produzidos e as duas espécies continuariam convivendo como duas comunidades reprodutivas mutuamente excludentes.

O nó da questão é, portanto, a viabilidade dos híbridos, que pode ser comparativamente menor por várias razões, dependendo inclusive das circunstâncias ecológicas.

No nosso caso imaginário, pode ser que a coloração do corpo deles, ao invés de ser uniformemente verde ou cinza, como é nos pais, seja uma desastrosa combinação de manchas das duas cores.

Os híbridos, assim, perderiam a camuflagem protetora que os seus pais possuem, pois, tendo o corpo coberto por manchas verdes e cinza, eles seriam mais facilmente detectados pelas aves em ambos os tipos de substratos onde os gafanhotos normalmente permanecem em repouso (folhagem e troncos).

Sob essas circunstâncias, gerar híbridos torna-se um investimento reprodutivo mais arriscado e dispendioso do que gerar descendentes convencionais. Nesse caso, os gafanhotos (Verdes e Cinza) que evitam acasalamentos interespecíficos assumiriam uma posição de vantagem reprodutiva, em relação aos co-específicos que não fazem a mesma discriminação.

Com o passar das gerações, as duas linhagens deveriam então evoluir mecanismos que reforcem o isolamento reprodutivo entre elas. Por exemplo, os gafanhotos podem passar a reconhecer como parceiros em potencial apenas os portadores de certos atributos exclusivos da espécie, envolvendo, digamos, tamanho, forma, cheiro e coloração geral do corpo.

... a borboletas reais

No caso dos gafanhotos imaginários, a seleção natural deveria atuar contra a produção de híbridos. Um dos resultados possíveis dessa pressão seletiva seria a evolução de algum tipo de deslocamento de caracteres reprodutivos, implicando em discriminação contra parceiros interespecíficos e reforçando a segregação entre populações simpátricas.

O nome técnico dado a esse processo é especiação por reforço, em alusão à idéia de que o processo deve gerar mecanismos de isolamento que impeçam a hibridização entre linhagens divergentes, selando assim a especiação. Embora o conceito tenha sido formulado há mais de meio século, até recentemente a especiação por reforço era vista com reservas pelos estudiosos.

Por exemplo, muitos críticos argumentavam que a seleção natural seria incapaz de gerar ou mesmo finalizar a evolução de mecanismos de isolamento, isso porque outros processos biológicos (como fluxo gênico e recombinação) agiriam em sentido contrário. Com isso, deveríamos encontrar com certa freqüência zonas de hibridização estáveis e persistentes entre espécies aparentadas.

Além disso, a escassez ou a virtual ausência de sustentação empírica para o modelo de evolução por reforço também alimentou essas controvérsias. Essa situação, no entanto, começou a mudar nos últimos anos [Nota 1].

Em meados do ano passado, por exemplo, uma equipe de seis pesquisadores (três russos e três americanos) publicou um artigo na revista científica inglesa Nature [Nota 2] dando sustentação à idéia de que a seleção natural pode atuar na segregação de linhagens-irmãs vivendo em simpatria.

O artigo relata um estudo com espécies de borboletas do gênero Agrodiaetus, encontradas em diversos países da Europa e em parte da Ásia. As espécies desse gênero são extremamente uniformes em caracteres comumente utilizados na identificação de borboletas (coloração das asas, morfologia da genitália etc.), a tal ponto que muitas delas simplesmente não podem ser reconhecidas como espécies individuais sem um exame do cariótipo (cromossomos).

Em meio a essa uniformidade, ocorre algo intrigante entre as borboletas que vivem em simpatria: os machos de espécies diferentes exibem particularidades notadamente distintas na coloração das asas, em grau muito maior do que ocorre entre machos de espécies que vivem em locais distantes (alopatria).

Quer dizer, embora as fêmeas de todas as espécies continuem sendo uniformemente amarronzadas, os machos que vivem juntos exibem uma considerável diversidade de coloração, com tons variados de marrom, azul e verde, de acordo com a espécie.

Um detalhe importante é que as fêmeas são extremamente seletivas na escolha do parceiro, aceitando apenas aqueles machos que tenham a coloração ‘certa’, própria de cada espécie. Além disso, como as fêmeas só acasalam uma vez na vida, a pressão seletiva contra acasalamentos errados (interespecíficos) deve ser particularmente intensa.

Os autores do artigo reconstruíram a história filogenética e estabeleceram graus de proximidade para 89 linhagens (espécies e subespécies) de Agrodiaetus. Dados sobre proximidade filogenética e distribuição geográfica foram então combinados entre si, de modo a detectar pares de linhagens intimamente aparentadas e que estivessem vivendo em simpatria.

Ao fim do trabalho de reconstrução filogenética, eles identificaram a ocorrência de 19 mudanças de cor nas linhagens amostradas. Também identificaram 88 pares de linhagens-irmãs, 28 dos quais vivendo em simpatria e 60, em alopatria. Combinando essas informações, eles então concluíram que 15 das 19 mudanças de cor ocorreram entre linhagens-irmãs vivendo em simpatria e apenas quatro ocorreram entre linhagens alopátricas.

Em outras palavras, as mudanças de coloração nas asas dos machos de Agrodiaetus ocorreram predominantemente entre linhagens-irmãs vivendo em simpatria, a um ritmo muito superior do que seria esperado por mero acaso. Entre as linhagens vivendo em alopatria, eles detectaram exatamente o contrário: mudanças de coloração ocorreram a um ritmo bem inferior ao que seria esperado.

O que poderia então explicar esses resultados divergentes? Para os autores, a melhor resposta é fornecida pelo modelo de especiação por reforço, já que a seleção natural teria tido um papel de destaque na evolução dos mecanismos de isolamento reprodutivo. Nesse caso, a seleção natural seria responsável pelo deslocamento de caracteres reprodutivos (divergência na coloração das asas) observado entre essas borboletas.

As conclusões desse artigo lançam um pouco de luz na controversa relação entre especiação e seleção natural.

Além disso, reforçam as dúvidas sobre a generalidade do modelo de especiação alopátrica, segundo o qual a origem de novas espécies animais seria quase que um co-produto acidental da evolução de populações isoladas. Como foi dito antes, as espécies do gênero Agrodiaetus apresentam uma ampla variação no cariótipo, sendo que o número de cromossomos varia de n = 10 a n = 124.

Essa extensa e incomum variação cromossômica, cuja origem seria o acúmulo (fortuito) de diferenças genéticas em linhagens vivendo em alopatria, resultaria em um certo grau de incompatibilidade entre os vários cariótipos. Quando duas ou mais dessas linhagens divergentes entrassem em contato, estariam então dadas as condições para que a seleção natural desencadeasse o processo de especiação por reforço.

Notas

1. Para uma introdução geral ao estudo da especiação, ver Stearns, S. C. & Hoekstra, R. F. 2003. Evolução: uma introdução. SP, Atheneu; e Ridley, M. 2006. Evolução. Porto Alegre, Artmed. Para mais detalhes técnicos, exemplos e discussões recentes sobre a especiação por reforço, ver Turelli, M.; Barton, N. H. & Coyne, J. A. 2001. Theory and speciation. Trends in Ecology and Evolution 16: 330-343; e Servedio, M. R. & Noor, M. A. F. 2003. The role of reinforcement in speciation: theory and data. Annual Review of Ecology, Evolution and Systematics 34: 339-364.

2. Lukhtanov, V. A.; Kandul, N. P.; Plotkin, J. B.; Dantchenko, A. V.; Haig, D. & Pierce, N. E. 2005. Reinforcement of pre-zygotic isolation and karyotype evolution in Agrodiaetus butterflies. Nature 436: 385-389.

 

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