Um começo tão simples
CLAUDIO ANGELO


*Um começo tão simples*

*TEORIA DA EVOLUÇÃO, UMA DAS IDÉIAS MAIS IMPORTANTES DO PENSAMENTO
OCIDENTAL, NASCEU HÁ 150 ANOS, MAS SEU REAL IMPACTO PASSOU DESPERCEBIDO
NA OCASIÃO*

*CLAUDIO ANGELO*
EDITOR DE CIÊNCIA

Quase ninguém notou na hora, mas o mundo mudou no dia 1º de julho de
1858. Há 150 anos, um grupo de naturalistas reunidos na Sociedade
Lineana de Londres ouviu a leitura conjunta de três textos. Seus autores
eram o galês Alfred Russel Wallace e o inglês Charles Robert Darwin. Os
documentos delineavam uma "teoria muito engenhosa" para explicar "o
aparecimento e a perpetuação de variedades e formas específicas no nosso
planeta". Nascia a teoria da evolução pela seleção natural. Depois dela,
o pensamento ocidental e a biologia nunca mais foram os mesmos.
Os membros do clubinho dos naturalistas não se deram conta do tamanho da
revolução que testemunhavam. Estavam assoberbados com cinco outros
trabalhos lidos na mesma ocasião, entre eles uma carta "sobre a
vegetação em Angola" e a descrição de um novo gênero da família das
abobrinhas. Questionado sobre o que havia sido publicado naquele ano,
Thomas Bell, presidente da Sociedade Lineana, respondeu: "Nada de
revolucionário".
Bell se arrependeria de seu julgamento no ano seguinte, quando Darwin
detalhou a teoria evolutiva no livro "A Origem das Espécies". Na
Inglaterra vitoriana, dominada pelo pensamento cristão, a obra caiu como
uma bomba. Nela Darwin sugeria que todos os organismos da Terra, da mais
humilde ameba até os seres humanos, descendiam de um único antepassado.
Homem e macaco, na imagem mais ilustre, partilhavam um ancestral comum
(mais tarde, o bispo de Oxford perguntaria a Thomas Huxley, amigo de
Darwin, se ele descendia de um macaco por parte de avô ou de avó).
Mais importante, no entanto, foi a maneira como Darwin e Wallace
solucionaram o "problema das espécies". A teoria postulava que a
variedade entre os indivíduos numa população surge ao acaso. Indivíduos
possuidores de características que os favoreçam na "luta pela
sobrevivência" na natureza tenderão a deixar mais descendentes,
modificando uma população. O acúmulo dessas modificações ao longo das
eras acaba produzindo novas espécies. Não há, portanto, a necessidade de
invocar a atuação divina na criação de todas as espécies. A teoria
eliminou o sobrenatural da biologia, criando um cisma que se
aprofundaria nas décadas posteriores.
No ano que vem, o mundo comemora o "Ano de Darwin", com os 150 anos da
"Origem" e o bicentenário do nascimento do naturalista (1809-1888). Mas
a revolução darwinista teve seu início de forma acanhada, no
"não-evento" científico de julho de 1858 -no qual o próprio Darwin foi
um mero coadjuvante. Nas próximas páginas, você verá como uma idéia tão
poderosa surgiu de um começo tão simples.

 

*Teoria está mais jovem do que nunca*

*PRECEITOS CENTRAIS DO DARWINISMO TORNARAM-SE O EIXO DE TODA A PESQUISA
BIOMÉDICA MODERNA*

*MARCELO NÓBREGA*
ESPECIAL PARA A FOLHA

Diz-se que, ao ouvir sobre a teoria de Darwin, uma senhora da sociedade
vitoriana resumiu assim seu desconforto: "Vamos torcer para que o Sr.
Darwin esteja errado. Mas, se estiver certo, vamos torcer para que essas
idéias não se espalhem muito".
Darwin, mais do que ninguém, entendia as implicações desalentadoras de
sua teoria para a noção de que os humanos ocupam uma posição especial na
natureza. "É como confessar um crime" dizia.
Foram necessários 70 anos para provar que Darwin estivera certo desde o
início.Vários remendos foram necessários à teoria evolutiva original. O
mais importante deles foi o reconhecimento de outras forças evolutivas
além da seleção natural. No que é conhecido como "deriva genética", é
amplamente aceito que várias características genéticas podem se
disseminar em uma população puramente ao acaso, sem que a seleção
natural precise ficar "escrutinando dia e noite cada variação", como
escreveu Darwin na "Origem das Espécies".
Curiosamente, há um recente clamor, especialmente nas ciências sociais,
de que uma mudança radical nas nossas idéias sobre hereditariedade e
evolução se faz mister, frente a supostas descobertas bombásticas na
biologia molecular que traem os preceitos "genocêntricos" do darwinismo.
Entre estas, a descrição de que certos traços podem ser herdados de uma
geração para outra sem correspondente variação no DNA -fenômeno chamado
de "epigenética"-, ou que modificações ou surgimento de certos traços às
vezes precedem variação genética nessas populações, violando o preceito
de que evolução se dá exclusivamente em variações genéticas
preexistentes, randômicas. Acredita-se, por exemplo, que variações
genéticas que tornaram humanos adultos tolerantes à lactose podem ter
aparecido somente depois de estes terem instituído o consumo de leite,
há cerca de 10 mil anos.
Se esses são os melhores argumentos justificando tal revolução
conceitual, a cruzada é quixotesca, e o exército, maltrapilho. Esses
novos mecanismos e conceitos vêm simplesmente agregar-se a um sem número
de outras descobertas, que se tornaram possíveis nas últimas quatro
décadas com o advento da biologia molecular.
O verdadeiro testemunho da herança de Charles Darwin pode ser aferido ao
andar-se pelos corredores de qualquer departamento de biologia moderno.
Rapidamente se verá que o anseio da senhora inglesa de abafar as idéias
sobre evolução não se concretizou. Os preceitos centrais de teoria
evolutiva tornaram-se o eixo de virtualmente toda a pesquisa biomédica.
Graças às teorias de genética e evolução de populações, uma nova forma
de medicina, chamada farmacogenética ou "medicina individualizada", tem
rapidamente se desenvolvido nos últimos anos. Hoje já é possível
analisar diferenças genéticas entre pessoas e usar essa informação para
escolher que remédios serão mais eficazes e terão menos efeitos
colaterais para cada paciente em uma série de doenças.
Evolução e seleção natural são o motivo pelo qual ainda não existe uma
cura para a Aids e pelo qual estamos perdendo a guerra contra bactérias
resistentes a antibióticos. Mas são também os conceitos que têm nos
permitido procurar novas formas de combater essas doenças -por exemplo,
tentando entender o que na genética faz com que algumas pessoas que são
verdadeiras cartilhas ambulantes de fatores de risco nunca adoecem.
Desvendados esses mecanismos, novas estratégias terapêuticas poderão ser
desenvolvidas.
A procura das causas genéticas de doenças é hoje pesquisada usando os
genomas de múltiplas espécies e procurando trechos de DNA que foram
mantidos intactos durante longos períodos evolutivos.
O entendimento de como as proteínas -os produtos dos genes- interagem em
redes complexas para desenvolver uma função biológica é também
amplamente sustentado pela teoria evolutiva. São novos rearranjos e
interações entre proteínas que promovem o aparecimento de "novidades"
evolutivas em espécies. Assim, uma esponja-do-mar já tem a maioria dos
genes que são responsáveis pela organização do plano corporal humano. Os
genes que são usados para formar dentes em peixes foram recrutados para
funções diferentes quando nossos ancestrais saíram da água. Esses mesmos
genes hoje coordenam a formação de estruturas aparentemente distintas
como pele, glândulas mamárias e penas em aves.
Tentar descrever qualquer fenômeno biológico fora da esfera conceitual
de evolução de Darwin equivale a conceber personagens sem um enredo que
os contextualize e una.

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*MARCELO NÓBREGA* é professor-assistente do Departamento de Genética
Humana da Universidade de Chicago, EUA

 

*Wallace, o herói esquecido da evolução*

*NATURALISTA GALÊS INTUIU A SELEÇÃO NATURAL MAIS RÁPIDO, MAS FOI
RELEGADO AO RODAPÉ DA HISTÓRIA; SEU BIÓGRAFO ACUSA "INDÚSTRIA ACADÊMICA"
SOBRE DARWIN*

*/"Se você olha para as publicações da Sociedade Lineana, é muito claro
que a teoria de Wallace é a afirmação mais lapidada. Muita gente dizia a
Wallace: "Por que você fica falando na teoria de Darwin? A teoria é tão
sua quanto dele!'" /*

*DA REDAÇÃO *

No dia 18 de junho de 1858, Charles Darwin recebeu em sua casa uma carta
vinda da ilha de Ternate, atual Indonésia.
Seu autor era um jovem naturalista galês de 35 anos, Alfred Russel
Wallace. Recuperando-se de uma crise de malária, Wallace mandou a Darwin
o manuscrito intitulado "Sobre a Tendência das Variedades de se
Diferenciarem Indefinidamente do Tipo Original", no qual enunciava o
princípio da "sobrevivência do mais apto".
A esperança de Wallace era que Darwin, famoso já naquela época, gostasse
da teoria e lhe ajudasse a arrumar um emprego quando voltasse à Europa.
Darwin quase caiu para trás ao ler o manuscrito. Ali, em cerca de cinco
páginas, Wallace enunciava os princípios que Darwin vinha ruminando
desde 1844 em seu "grande livro sobre as espécies". Darwin, no entanto,
nunca considerou o livro completo o suficiente para publicação. Além
disso, reza a lenda, temia ferir os brios cristãos de sua mulher, Emma
-e do resto da Inglaterra.
Desesperado diante da perspectiva de perder a prioridade sobre a teoria,
Darwin escreveu a Charles Lyell, pai da geologia moderna (e
correspondente de Wallace), e a seu amigo Joseph Hooker em busca de
orientação. Lyell e Hooker, então, tiveram a idéia de organizar uma
leitura conjunta dos dois trabalhos na Sociedade Lineana. Depois dela,
Darwin correu para preparar um "resumo" de sua obra para publicação, no
ano seguinte: surgia a "Origem".
Wallace (1823-1914) chegou a ser considerado o maior cientista
britânico. Diferentemente de Darwin, era um polímata: seus interesses
iam da história natural ao manejo florestal, passando pela política de
saúde pública (foi opositor das vacinas) e pelo espiritismo -fato que o
distanciou de Darwin. No entanto, esse outro pai da seleção natural
acabou relativamente esquecido. Tanto que as comemorações a Wallace
acontecerão em novembro deste ano, com a publicação do livro "Natural
Selection and Beyond: The Intellectual Legacy of Alfred Russel Wallace",
editado por Charles Smith e George Beccaloni.
"Está saindo deliberadamente neste ano e não no próximo", ri o britânico
Peter Raby. Professor de literatura em Cambridge, Raby é autor da
biografia do naturalista, "Alfred Russel Wallace: A Life" (2002). Em
entrevista à *Folha*, Raby comenta o legado de Wallace e acusa a
existência de uma "indústria acadêmica" de Darwin em sua universidade.
*(CA) *

/*FOLHA - Por que Wallace ficou relegado a uma nota de rodapé, quando
aparentemente ele intuiu a seleção natural mais rápido que Darwin?
RABY */- Tem havido uma enorme indústria acadêmica em torno de Darwin
emanando de Cambridge nos últimos 20 ou 25 anos. O Projeto Darwin, que
publicou toda a correspondência dele, após um enorme esforço de
pesquisa, é um exemplo.
A outra faceta disso é que a "Origem das Espécies" foi publicada quando
Wallace ainda estava no exterior. E Wallace, embora tenha publicado
diversos livros famosos, nunca teve a oportunidade de preencher o
esqueleto da teoria com o mesmo tipo de exposições detalhadas que Darwin
apresentou.
Quando Wallace voltou para casa, a "Origem das Espécies" havia ocupado a
proeminência.
Wallace planejou, sim, um grande livro...

/*FOLHA - ...mas ele estava ocupado demais ganhando a vida.
RABY */- Sim, e estava longe de bibliotecas, vivendo uma vida de
naturalista coletor independente. Ele não teve a oportunidade de se
sentar e escrever e fazer as pesquisas detalhadas que Darwin teve tempo
de fazer. Mas, mesmo assim, é estranho que Wallace tenha se dissipado do
imaginário popular. Se você olha para as publicações da Sociedade
Lineana, é muito claro que a teoria de Wallace é a afirmação mais
lapidada, enquanto os documentos de Darwin não têm a mesma completude.
Muita gente, naquela época, dizia a Wallace: "Por que você fica falando
na teoria de Darwin? A teoria é tão sua quanto dele!" [Charles] Lyell
era uma dessas pessoas; ele dizia a Wallace: "Você é modesto demais"!
Sim, ele era.
A outra razão pela qual ele acabou apartado da doutrina foram suas
reservas posteriores quanto à seleção natural e a origem do homem.
Darwin ficou chocado com aquilo que ele chamou de "apostasia" de
Wallace. Embora Wallace tenha desposado o darwinismo muito
entusiasticamente, ele mesmo fez essa grande ressalva. Acho que essa é
uma razão mais compreensível para Wallace ter sido jogado de escanteio.

/*FOLHA - Nós temos alguma razão para imaginar que Darwin tenha se
aproveitado do artigo de Wallace para escrever seu capítulo sobre
seleção natural?
RABY */- (Pausa) Bem, há versões diferentes dessa história.
Um livro acaba de ser publicado por Roy Davis chamado "Darwin
Conspiracy" ("A Conspiração de Darwin"). Há algumas perguntas sem
resposta sobre como Darwin agiu. Eu diria que foi Hooker o responsável
por assegurar que Darwin tenha obtido o maior crédito possível pela
publicação conjunta. O próprio Darwin ficou ligeiramente surpreso ao ver
que seus documentos acabaram sendo mais do que apêndices ou notas de
rodapé aos de Wallace. Quanto à sugestão de a carta de Wallace ter
chegado antes do que Darwin disse que ela chegou, portanto dando a
Darwin tempo de escrever e pensar a respeito, é um cenário perfeitamente
plausível. Só que eu não acho que haja nenhuma evidência concreta disso.
O argumento de Roy Davis é que o sistema de correios da Holanda [a
Malásia e a Indonésia eram colônias holandesas quando Wallace estava no
Pacífico] eram extremamente eficientes, e se tudo corresse conforme
planejado, a carta deveria ter chegado antes de 1º de junho de 1858. É
uma hipótese interessante, mas, a meu ver, especulativa. A questão
continua em aberto. Fato é que Wallace não recebeu todo o crédito que
deveria ter recebido.

/*FOLHA - O sr. esteve no Brasil durante as pesquisas da biografia de
Wallace?
RABY */- Infelizmente não. Eu tinha pouco tempo e pouco dinheiro na
época. Fui a Cingapura e a Sarawak [Malásia], porque eu queria ver pelo
menos um lugar onde Wallace pesquisou. Espero poder ir ao Brasil, porque
há outras pessoas nas quais eu sou extremamente interessado que viajaram
pela Amazônia. Meu livro anterior, "Bright Paradise", era sobre
viajantes científicos vitorianos.
Eu escrevi sobre Wallace, mas também sobre Richard Spruce e Henry Walter
Bates.

/*FOLHA - O quão importante foi a Amazônia na formatação da mente
científica de Wallace? O sr. escreveu que, quando ele chegou ao Brasil,
ele era um coletor mercenário, e quando foi para as Índias, era um
cientista em formação.
RABY */- Aqueles quatro anos na Amazônia moldaram a mente e a vida de
Wallace. Foi em parte o ambiente da Amazônia e como ele respondia a ele.
Mas também todas as reflexões que aconteceram. Claro que ele não
conseguiu explorar essas reflexões da maneira como ele planejava, por
causa da perda de parte de seu material [num navio que pegou fogo a
caminho da Inglaterra], mas não obstante isso deu a ele a amplitude de
visão e o tempo de reflexão de que ele precisava para ser mais do que um
colecionador. Eu sinto muito fortemente que não a teoria final, mas seu
instinto sobre as espécies, que seria esclarecido no arquipélago malaio,
os alicerces disso foram construídos na Amazônia.
Quando Bates escreve para ele, após ter lido o artigo de Sarawak sobre
variedades de espécies-que você pode chamar de estágio 1 da seleção
natural-, Bates disse mais ou menos assim: "Eu fiquei surpreso ao vê-lo
se posicionando tão assertivamente sobre a teoria. Uma teoria que, como
você sabe, foi minha também". O que me sugere uma ligeira censura, mas
sugere também que Bates e Wallace, e talvez Spruce também, já haviam
discutido essas coisas na Amazônia.

/*FOLHA - Mesmo após a evolução, Wallace passou o resto da vida meio
deslocado depois que voltou para a Europa. É verdade que ele nunca
arrumou um emprego decente?
RABY */- Acho que escrever se tornou o emprego decente dele.
Ele escrevia muito fluentemente, num estilo muito claro.
Ele achava que poderia ganhar dinheiro escrevendo livros, além de
artigos. Ele se candidatou a vários outros trabalhos e não conseguiu
nenhum. Ele se virava para viver. Algumas vezes ele estava bem de vida,
outras vezes ele parecia apertado.
Mas ele vivia muito feliz, e eu acho que essas duas grandes expedições,
à Amazônia e ao arquipélago malaio, tornaram-no irrequieto psicologicamente.
Ele se candidatou ao cargo de secretário-assistente da Royal
Geographical Society, e não conseguiu, embora Bates, quando voltou,
tenha visto no cargo uma oportunidade de se reintegrar ao
"establishment" científico. Acho que Wallace curtia não seu isolamento,
mas sua independência.

/*FOLHA - Sr. vai fazer alguma coisa no dia 1º de julho? RABY */- Vou
erguer um brinde a Wallace.

*Por que Darwin rejeitou o design inteligente*

*BRITÂNICO CHEGOU ÀS GALÁPAGOS IMBUÍDO DA MENTALIDADE CRIACIONISTA, QUE
LHE IMPEDIU DE ENXERGAR EVIDÊNCIAS DA EVOLUÇÃO*

*FRANK J. SULLOWAY*

U m dos sinais de uma teoria científica verdadeiramente revolucionária é
o fato de demorar muito para ser aceita pela maioria das pessoas. Foi
apenas recentemente que o Vaticano admitiu ter errado na infame
condenação a Galileu, em 1633, por sua defesa da teoria de que a Terra
gira em torno do Sol. Do mesmo modo, hoje, 150 anos após primeiro serem
publicadas, as teorias de Charles Darwin continuam a suscitar
hostilidade em muitos países, devido à rejeição por Darwin da idéia de
que a vida manifesta um propósito inteligente.
É irônico o fato de que o próprio Darwin, em certa época, esteve
fascinado pela teoria de que todas as espécies surgem em função de um
design inteligente -a mesma teoria que, mais tarde, ele procurou
eliminar da ciência em seu livro "A Origem das Espécies" (1859).
Popularizada no século 17, essa doutrina buscava unir uma celebração da
obra de Deus com o estudo da ciência. Esses argumentos alcançaram seu
ápice nos escritos do reverendo William Paley, que expôs suas idéias em
"Teologia Natural" (1802). As muitas provas que ele apresentou em favor
do design inteligente fascinaram e convenceram o jovem Darwin.
O que desencadeou a dramática mudança de opinião de Darwin em relação à
origem das espécies foi a viagem de cinco anos que ele fez em volta ao
mundo no navio "HMS Beagle", e, especialmente, sua visita de cinco
semanas às ilhas Galápagos em setembro e outubro de 1835. Reza a lenda
que Darwin converteu-se à teoria da evolução durante essa visita breve,
vivendo algo como um momento "eureca!". A história real da conversão de
Darwin, que só se deu um ano e meio mais tarde, após seu retorno à
Inglaterra, nos diz muito mais sobre como a ciência é feita de fato,
especialmente sobre como a teoria guia a observação e prepara a mente e
como é necessária persistência obstinada para transformar teorias
controversas em fatos aceitos.
Durante a permanência de Darwin nas Galápagos, a teoria criacionista o
preparou para aquilo que ele observou e compreendeu nas ilhas. Essa
teoria também ditou o que ele deixou de observar e compreender. Num
primeiro momento, ele esforçou-se com diligência para conciliar com o
paradigma criacionista as criaturas novas e estranhas que encontrou
naquele arquipélago isolado. Segundo essa teoria, diferentes "centros de
criação" explicavam por que a flora e a fauna da Terra diferiam de uma
região a outra -ou de um continente a outro. Darwin ainda não se dera
conta de que uma parcela do planeta tão minúscula quanto o arquipélago
de Galápagos poderia ser, ela própria, um "centro de criação".
Certos fatos inesperados relativos a Galápagos solaparam a credibilidade
de qualquer explicação criacionista daquilo que Darwin, mais tarde,
descreveria como "o mistério dos mistérios -o primeiro surgimento de
novos seres nesta terra". Em particular, várias espécies distintas
evoluíram ao longo do tempo em cada uma das ilhas do grupo das
Galápagos, de acordo com o povoamento dessas ilhas por colonos
ocasionais que ali conseguiram chegar desde a América Central ou do Sul.
Darwin foi alertado para essa possibilidade pelo vice-governador das
ilhas, Nicholas Lawson, que insistiu que "as tartarugas das diferentes
ilhas diferem entre elas, e que ele poderá perceber com certeza de que
ilha qualquer uma for trazida".
Num primeiro momento, Darwin não deu atenção às observações de Lawson,
ainda tendo a mente dominada pela teoria criacionista. Ela dizia que as
espécies podem modificar-se, e se modificam, reagindo aos ambientes
locais. Como um elástico que resiste ao ser esticado, qualquer
modificação do tipo específico e supostamente imutável que fosse
verificada entre as variedades era vista como desvio temporário.
Devido à sua visão criacionista, durante sua estadia nas Galápagos,
Darwin não coletou um espécime sequer de tartaruga-gigante para
finalidades científicas. Em vez disso, as 48 tartarugas capturadas pelo
Beagle na ilha de San Cristóbal foram mais tarde comidas por Darwin e
seus companheiros de navio, sendo suas carapaças atiradas ao mar.
Essa mesma mentalidade criacionista ajuda a explicar porque, num
primeiro momento, Darwin deixou de compreender o mais célebre exemplo
das Galápagos da evolução em ação: os famosos tentilhões de Darwin.
Quatorze espécies de tentilhões se desenvolveram nas Galápagos a partir
da forma ancestral encontrada nas Américas Central e do Sul. Nos últimos
2 milhões de anos, esse processo de evolução resultou numa radiação
adaptativa tão impressionante em nichos ecológicos diversos que algumas
dessas espécies não se parecem com tentilhões típicos. Num primeiro
momento, Darwin pensou que algumas delas nem sequer fossem tentilhões.
O caso dos tentilhões-das-galápagos confundiu Darwin a tal ponto que, no
momento em que capturou os pássaros, ele não se deu conta de que todas
as espécies eram estreitamente aparentadas ou que o número de espécies
em um grupo de aves poderia resultar do fato de elas terem evoluído em
ilhas diferentes. Por isso, ele não fez qualquer esforço para
classificar suas coleções ornitológicas por ilha -um erro que lamentou
sinceramente mais tarde.
Darwin tampouco teve a oportunidade de observar esses tentilhões de
maneira suficientemente detalhada para aperceber-se de que os tamanhos e
formatos de seus bicos guardavam relação estreita com suas dietas -um
"insight" importante que a lenda equivocadamente lhe atribui.
Apesar de ter estado armado de uma teoria inadequada durante sua estadia
em Galápagos, Darwin era um naturalista bom demais para não observar que
os quatro espécimes de "mockingbirds" que coletou, cada uma de uma ilha
diferente, ou eram variedades ou espécies distintas. Não sendo
ornitólogo, Darwin não sabia ao certo como interpretar essa anomalia. Em
julho de 1836, nove meses após sua visita às Galápagos, ele refletiu
sobre o caso dos "mockingbirds" e recordou o que lhe tinha sido dito
sobre as tartarugas:
"Quando vejo essas ilhas visíveis umas desde as outras e possuindo
apenas uma quantidade escassa de animais, habitadas por essas aves mas
ligeiramente distintas em sua estrutura e ocupando o mesmo lugar na
natureza, devo suspeitar de que são apenas variedades ... Se existe
fundamento para essas observações, então a zoologia dos arquipélagos
valerá a pena ser examinada, pois tais fatos enfraqueceriam a
estabilidade das espécies."
A chave para interpretar esse trecho célebre -que aventa a revolução
darwinista mas em seguida afasta-se dela- está na frase "devo suspeitar
de que são apenas variedades", premissa que Darwin compreendia ser
plenamente coerente com a teoria criacionista.
O que o impedia de dar o passo crucial da ortodoxia científica para a
heterodoxia era a ausência de informações sobre a classificação
ornitológica correta, algo que só lhe estaria disponível após seu
retorno à Inglaterra.
Darwin retornou à Inglaterra em 2 de outubro de 1836. Três meses depois,
deixou suas coleções de aves com John Gould, ornitólogo da Sociedade
Zoológica de Londres. Gould imediatamente se deu conta da natureza
extraordinária dos espécimes colhidos por Darwin nas Galápagos. Em março
de 1837, Gould informou Darwin de que três de seus quatro espécimes de
"mockingbird" eram espécies distintas, até então desconhecidas da
ciência. Gould também informou a Darwin que sua coleção incluía 13 ou
possivelmente 14 espécies de tentilhões muito incomuns. De repente, após
as análises taxonômicas de Gould, as Galápagos se haviam convertido num
"centro de criação" distinto.
As conclusões de Gould parecem ter deixado Darwin estarrecido. Ele
rapidamente se deu conta de que, se Gould estivesse certo, a barreira
entre as espécies distintas tinha sido de alguma maneira rompida por
esses pássaros, isolados nas diferentes ilhas. A evolução gradual graças
ao isolamento geográfico era a única explicação plausível, a não ser que
se pensasse que Deus, como um jardineiro obsessivo-compulsivo, tivesse
ido de uma ilha a outra no arquipélago, caprichosamente criando espécies
separadas mas estreitamente aliadas, com a intenção de ocupar os mesmos
nichos ecológicos.
Reforçado por uma perspectiva evolutiva da natureza, Darwin foi capaz de
enxergar os tentilhões sob uma ótica radicalmente nova. Apenas agora ele
passou a compreender a extensão de seu descuido anterior, quando deixou
de rotular por ilha a maior parte das aves que trouxera das Galápagos.
Felizmente, Darwin sabia que três outros colecionadores que tinham
viajado no Beagle (o capitão FitzRoy entre eles) também tinham coletado
espécimes. E todos esses espécimes tinham sido rotulados segundo a ilha
de sua procedência. É sintomático que tenham sido os não-cientistas do
Beagle, que não eram movidos por uma teoria, como Darwin, que
registraram as evidências científicas que Darwin, partindo de uma
abordagem criacionista, havia visto como sendo supérfluas.
Darwin passou a entender que o isolamento geográfico era uma parte
crucial da resposta quanto a como as espécies se transformam no decorrer
o tempo. Mas o isolamento, por si só, não bastava para explicar as
adaptações das espécies a seus ambientes locais.

*Malthus explica*
Depois de estudar e rejeitar uma série de hipóteses, Darwin, em setembro
de 1838, leu por acaso a edição de 1826 de "Ensaio sobre o Princípio da
População", de Thomas Malthus. Este argumentava que as populações têm a
tendência inata a crescer geometricamente. Na natureza, porém, a oferta
de alimentos é limitada, de modo que a maioria da prole não sobrevive,
sendo morta por predadores, fome e doenças.
Ao ler o livro de Malthus, Darwin se deu conta imediatamente de que, na
eterna luta pela sobrevivência, variações ligeiras benéficas tenderiam a
ser naturalmente selecionadas, levando à sobrevivência maior e, com
isso, a um aumento nas características adaptativas, do mesmo modo em que
o criador de animais domesticados obtém características desejadas
selecionando as qualidades valorizadas nos animais. "Aqui, então,
finalmente encontrei uma teoria com a qual trabalhar", observou Darwin
em sua "Autobiografia". Ali, também, estava uma resposta digna de
crédito a William Paley. Darwin percebeu que a seleção natural não era
outra coisa senão o "projetista" de Paley.
Olhando através da lente poderosa da evolução pela seleção natural,
Darwin então começou a reexaminar as premissas básicas do criacionismo e
a comparar as previsões que se fariam com base nessas duas teorias
radicalmente distintas.
Quanto mais extenso se tornava seu reestudo, mais ele foi compreendendo
que o design inteligente era contradito de maneira avassaladora pelas
evidências disponíveis. A reavaliação feita por Darwin atingiu seu ápice
22 anos mais tarde com "Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção
Natural", livro que o próprio Darwin descreveu, corretamente, perto de
seu final, como "um só longo argumento". Era igualmente um argumento
contra o criacionismo e, especialmente, contra o design inteligente.
As evidências relativas à distribuição geográfica, especialmente das
ilhas oceânicas e suas relações biológicas com os continentes mais
próximos, desempenham papel substancial no argumento de Darwin.
As ilhas Galápagos, por exemplo, abrigam várias espécies de animais e
plantas estreitamente aparentadas com as do vizinho continente
americano; no entanto, as características ambientais dessas ilhas não se
assemelham em nada às das partes mais próximas do continente, que são
tropicais.
Contrastando com isso, o árido ambiente vulcânico das Galápagos se
assemelha estreitamente ao das ilhas de Cabo Verde, a 650 km da África.
No entanto, a flora e a fauna de Cabo Verde guardam mais semelhança com
espécies que vivem no continente africano, não com as das Galápagos. Por
que um possível projetista inteligente, indagou Darwin, colocaria dois
carimbos criativos completamente diferentes -um africano e outro
americano- sobre espécies que vivem em ambientes quase idênticos e
ocupam nichos ecológicos semelhantes? Não fazia sentido.
Como Darwin trabalhou durante 20 anos sobre rascunhos da obra que
acabaria virando "A Origem das Espécies", ele conseguiu explicar o mundo
natural de uma maneira como ninguém nunca fizera antes. Em última
análise, o que sua transformação de criacionista em evolucionista revela
sobre ela -e sobre a ciência, de modo mais geral- é que a melhor ciência
é feita a serviço de uma teoria realmente boa.

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*FRANK J. SULLOWAY* é historiador da ciência, estudioso de Darwin e
professor visitante do Departamento de Psicologia da Universidade da
Califórnia em Berkeley. Em 1968, refez a viagem do Beagle para produzir
um documentário. Este texto foi primeiro publicado, em formato
diferente, pela Vintage Books em "Intelligent Thought", editado por John
Brockman

 

*Século 19 estava prenhe da evolução biológica*

*GEOLOGIA ITALIANA DO SÉCULO 18 LANÇOU BASE DO EVOLUCIONISMO*

*NÉLIO BIZZO*
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao remeter para Darwin seu ensaio sobre as variedades de seres vivos,
Alfred Russel Wallace pedia que o mostrasse a Sir Charles Lyell, o
famoso geólogo, caso nele visse algum valor. O ensaio teve um impacto
avassalador sobre Darwin: trazia sentenças inteiras que poderiam ser
encontradas em um antigo ensaio de Darwin de 1844.
"Seleção natural" e "sobrevivência do mais apto" apareciam tão
articuladas no texto de Wallace quanto estavam na mente de Darwin.
Ao impacto do ensaio de Wallace somou-se um período de muita agitação
emocional e Darwin teve de mudar seus planos inteiramente. O impacto de
sua teoria sobre as raças do homem, idéia que Darwin vinha
desenvolvendo, teria de esperar até 1871.
Malgrado essas mudanças de rota, uma teoria da evolução estava brotando
na mente de pensadores em várias partes do mundo e o rebento teórico
brotaria em algum lugar. O século 19 estava prenhe da evolução biológica.
Essa prenhez estava anunciada no livro que Darwin lera a bordo do
Beagle, "Princípios da Geologia".
Lyell escrevera que as teorizações inglesas tinham sido refutadas, e até
mesmo ridicularizadas, pelos geólogos italianos do Século das Luzes.
Eles tinham estendido as bases de Galileu para o estudo do interior da
Terra e refutado a idéia de um dilúvio universal.
Lyell defendia o completo abandono da antiga idéia de que os fósseis não
são marcas de seres vivos que de fato existiram no passado. Da mesma
forma, dizia Lyell, não era razoável invocar os céus ou qualquer
divindade para explicar fenômenos naturais à custa de milagres.
Nada além da "pura abominação" dessas visões era o que Lyell pedia a
seus colegas iniciados das academias de intelectuais. Para explicar a
ocorrência de fósseis marinhos nas alturas das montanhas não era
necessário solicitar a intervenção de nenhuma força onipotente.
Até aquela data, muitos viam nos degraus da arena romana de Verona as
marcas de Júpiter, cuja imagem os romanos tinham tomado de Amon dos
egípcios. Os "cornu Ammonis" que até hoje ornam o rico mármore das
calçadas de Verona, seriam simples lembranças espirituosas dos chifres
de carneiro de Amon, e não marcas de amonitas (daí a origem do nome),
animais reais extintos.
A geologia italiana acabara com o fundamentalismo anglicano naturalista
e suas pretensões de sacralizar a ciência nascente.
A física e a mecânica dos céus tinham deixado de depender daquilo que
estava nas Escrituras; a química vivia tempos revolucionários.
O estudo da vida seria o próximo campo fértil no qual germinariam as
sementes da evolução orgânica, base de uma verdadeira ciência da vida,
capaz de explicar as extinções, as "grandes revoluções" da crosta
terrestre e o "mistério dos mistérios" -a origem das espécies.
Darwin e Wallace tinham resolvido a questão em 1858.
Darwin já o fizera em 1844 de maneira plenamente aceitável, mas
insisitira em colecionar mais fatos e evidências.
Wallace confessava que, embora quisesse se dedicar ao tema de uma forma
teórica, os afazeres cotidianos de coletor de espécimes lhe roubavam o
tempo necessário.
Com um acesso de malária, ficou preso a uma cama, onde rememorou o que
lera de Malthus e teve o "insight" criativo da seleção natural.
Em 1858, enfim, as duas perspectivas se juntaram e a teoria foi
finalmente apresentada ao mundo. Passados 150 anos, sabemos que nada na
biologia faz sentido sem ela. Há uma única razão para um anfioxo, uma
lampréia, um sapo, uma tartaruga, um galo e um elefante terem um
desenvolvimento embrionário com características comuns. Essa razão se
resume à teoria da evolução, cujas bases foram assentadas pela geologia
dos italianos do século 18, entendida e aplicada pelos britânicos que os
sucederam, capazes de perceber a distinção básica entre ciência e
religião. Ela estava no ar.

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*NÉLIO BIZZO* é professor da Faculdade de Educação da USP. Pesquisou os
manuscritos e a biblioteca pessoal de Charles Darwin

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