A
Guerra dos Sexos
Drauzzio Varella
Folha de São Paulo, 6 de outubro de 2001.
Se você pensa que seus genes resultam de uma
combinação idílica entre os genes de seus pais,
está enganado. Pode ter havido amor no ato da concepção,
mas, na formação de seu patrimônio genético,
não. Os genes que vieram de seus pais disputaram acirradamente
para assumir posições de destaque na codificação
dos mais insignificantes detalhes do futuro organismo: do gene que codifica
a proteína castanha da cor dos seus olhos ao que regula as características
da produção de insulina pelo pâncreas, os genes
mais aptos silenciaram a voz do progenitor mais fraco.
A genética clássica imaginava que no
embrião os genes maternos e paternos se dispunham aos pares,
ordenadamente, para bem orquestrar o desenvolvimento do novo organismo.
As características finais dos filhos seriam determinadas pelo
arranjo organizado desses genes: viessem do pai ou da mãe, as
propriedades seriam exatamente as mesmas.
De fato, tanto faz, para o filho, se o pai tem olhos
castanhos e a mãe os tem azuis, ou vice-versa: genes para olhos
castanhos são sempre dominantes. Quando formam um par com os
que codificam cor azul, impõem sua característica -seja
ela de origem paterna ou materna.
Esse dogma da genética clássica foi abalado
nos anos 90. Quando se trata da fecundação, a relação
entre os sexos dos pais pode ser tudo, menos pacífica. Os genes
masculinos e femininos que se juntam no embrião não constituem
simplesmente a semente da vida, eles são a essência dela.
Para ilustrar essa verdade universal, o biólogo inglês
Richard Dawkins disse que uma galinha é a melhor forma que o
ovo encontrou para fazer outro ovo.
Como o espermatozóide e o óvulo carregam
apenas metade dos genes necessários para a criação
do novo ser, cada característica do futuro indivíduo será
controlada por um gene que veio do pai e por outro que veio da mãe.
A dominância que se estabelecerá entre os componentes do
par terá como objetivo último proporcionar ao embrião
a maior chance possível de permanecer vivo até a maturidade
sexual, quando finalmente terá a oportunidade de transmitir às
gerações futuras os genes recebidos de seus ancestrais.
Como regra, genes apáticos, que não souberam se impor
à vontade dos genes do cônjuge, tendem a desaparecer do
repertório genético da espécie. Os genes que chegaram
até nós só o fizeram porque elaboraram estratégias
eficazes para dominar os que foram herdados do sexo oposto.
Como os genes são moléculas de determinada
estrutura química, o embrião em desenvolvimento é
o campo de batalha de uma guerra molecular na disputa de posições
privilegiadas no genoma que está sendo criado.
No calor da luta, os genes maternos tentam silenciar
os paternos e vice-versa por meio de mecanismos ioquímicos
pouco conhecidos, mas muito estudados nos últimos anos. Veja
o caso dos genes que controlam o crescimento fetal: a intenção
dos genes da mãe é manter o crescimento do feto dentro
de determinados limites, para evitar problemas de parto e consumo excessivo
de energia, afinal, quanto maior o filhote, mais energia a mãe
terá de investir na sua gestação. O interesse dos
genes masculinos é oposto: quanto maior o feto ao nascer, maior
a probabilidade de sobrevivência e propagação das
características paternas.
A existência de interesses sexuais conflitantes
em relação ao tamanho do embrião está bem
documentada em animais e plantas. Mas é nos mamíferos
que ela se estabelece de maneira mais nítida, porque neles o
feto parasita o organismo materno por longo período de tempo.
O interesse evolucionista do macho é fecundar o maior número
de fêmeas que puder e conseguir que elas invistam o máximo
de energia na gravidez para garantir filhotes mais fortes. O da fêmea
é controlar o crescimento fetal e poupar energia para futuras
concepções (quem sabe em parceria com outros machos para
gerar prole com maior diversidade genética).
O fenômeno descrito acima, segundo o qual um
gene silencia o do sexo oposto, é chamado de "imprinting".
Em ratos, ele foi demonstrado com elegância por um grupo da Universidade
de Princeton: fêmeas monogâmicas acasaladas com machos poligâmicos
deram à luz recém-nascidos que pesavam mais do que 20
gramas. O acasalamento inverso, fêmeas poligâmicas com machos
monogâmicos, geraram filhotes com dez gramas ao nascer.
Conclusão: quanto maior a oferta de espermatozóides
diferentes geneticamente, mais ferozes se tornam os genes femininos
para silenciar os masculinos no controle do tamanho do feto e garantir
menor investimento energético em cada gravidez.
Charles Darwin foi o primeiro a imaginar que qualquer
comportamento repetido com regularidade por uma espécie
tivesse sua lógica baseada na dinâmica da seleção
natural. O exemplo mais óbvio é a atração
que os animais sentem pelo sexo oposto. Na síntese que fez dos
pensamentos de Darwin, Theodosius Dobzhansky, um dos maiores geneticistas
do século 20, percebeu que qualquer fenômeno biológico,
para ser entendido, precisa ser analisado à luz da seleção
natural -ou não terá sentido algum. O que nenhum dos dois
cientistas imaginou foi que a seleção natural fosse um
acontecimento que se iniciasse tão precocemente na vida de cada
organismo, com a disputa acirrada entre os genes maternos e paternos
egoisticamente empenhados em adquirir posição de destaque
para garantir sobrevivência nas gerações futuras.