50
anos de "vida" no
laboratório
Marcelo Gleiser especial para a Folha, junho de 2003
O ano de 1953 foi notável para a biologia. James
Watson e Francis Crick apresentaram seus resultados sobre a estrutura
da molécula de DNA, revelando a sua forma de dupla hélice.
Essa descoberta, devidamente celebrada neste seu cinquentenário,
abriu as portas para a manipulação direta dos genes, que
hoje começa a dar frutos.
O século 21 promete ser o século da genética,
em particular da engenharia genética. Dos alimentos transgênicos
aos clones animais, estamos presenciando o despertar de uma nova ciência
que, como é de praxe com descobertas revolucionárias,
vem acompanhada de muitas promessas e medos. Ao estendermos a engenharia
genética aos humanos, estamos pondo em xeque não só
a sua capacidade de curar (ou prevenir) várias doenças
como, também, de redefinir o que significa ser humano em um contexto
no qual seres podem, ao menos em princípio, ser fabricados.
Mas a estrutura do DNA não foi a única
grande descoberta em bioquímica realizada em 1953. Os americanos
Harold Urey e Stanley Miller tentaram algo ainda mais ambicioso: fabricar
a vida, ou ao menos alguns de seus ingredientes básicos, no laboratório.
A origem da vida na Terra era (e ainda é) um grande mistério.
E não é para menos. Em sua essência, seres vivos
são conjuntos de macromoléculas orgânicas de grande
complexidade, capazes de realizar uma série de operações
e transformações químicas que levam à sua
subsistência (alimentação) e à sua reprodução.
De alguma forma, moléculas inertes, quando combinadas a um certo
nível de complexidade, se transformam em seres vivos. A questão
é como se dá esta combinação, ou melhor,
como o simples se torna complexo e, eventualmente, vivo.
Urey e Miller partiram do princípio de que a
composição química da Terra primordial era simples.
A sua idéia era reproduzir o ambiente de então no laboratório,
tentando gerar moléculas orgânicas complexas a partir de
moléculas simples. Vem à mente o popular jogo infantil
Lego, no qual pequenos blocos, quando conectados de forma correta, produzem
estruturas arbitrariamente complexas.
Urey e Miller sugeriram que, se os compostos químicos
simples funcionavam como os blocos de Lego, a eletricidade existente
na Terra primordial seria a força que fundiria o simples em complexo
(equivalente, de certa forma, à inteligência da pessoa
que cria as estruturas com Legos, a faísca criadora). Essa eletricidade
primordial era consequência da intensa atividade atmosférica
da época, que gerava um número enorme de relâmpagos.
A questão era quais elementos químicos
deveriam ser usados. Afinal, a receita certa depende do conhecimento
das condições da Terra quando ela tinha em torno de 1
bilhão de anos, algo nada trivial. As pistas deixadas dessa época
são poucas e eram ainda mais escassas em 1953. Urey e Miller
supuseram que a sopa primordial fosse composta de água, metano,
dióxido de carbono e amônia, ou seja, uma mistura de compostos
simples contendo os átomos mais essenciais da bioquímica,
hidrogênio, carbono, oxigênio e nitrogênio.
Os relâmpagos foram simulados por descargas elétricas,
que eram ativadas periodicamente. Após alguns dias, uma análise
da mistura acusou a presença de aminoácidos, compostos
orgânicos complexos encontrados em todos os seres vivos na Terra,
os blocos que compõem as proteínas. Uma década
após o experimento de Urey e Miller, cientistas usando processos
semelhantes sintetizaram as bases nitrogenadas (ou nucleotídeos)
da molécula de DNA.
Esses experimentos, embora tenham provado que é
possível sintetizar moléculas complexas a partir de outras
mais simples, estão longe de sintetizar um ser vivo ou mesmo
uma molécula de DNA. Críticos argumentam que o ambiente
na Terra primordial era muito diferente e talvez impróprio à
geração de moléculas complexas. Recentemente, cientistas
da Nasa mostraram que resultados semelhantes podem ocorrer no espaço,
onde eletricidade é substituída por radiação
ultravioleta, proveniente de estrelas. Nesse caso, as moléculas
que deram origem à vida na Terra seriam provenientes do espaço,
transportadas por asteróides e cometas. O debate continua: no
espaço ou na Terra, o enigma da origem da vida permanece.
Marcelo Gleiser é professor de física
teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"O Fim da Terra e do Céu"