O Hedonismo Fraturado
Associated Press,GILLES LIPOVETSKY ,Folha de São Paulo

Folha de São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

O hedonismo fraturado
Associated Press

Sociólogo diz que o indivíduo vive sob a ameaça da "colonização da existência", ataca Naomi Klein e aponta a pobreza e a educação como os grandes problemas hoje

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Depois da surgimento do capitalismo de massa, no fim do século 19, e da "sociedade de abundância", no pós-guerra, o mundo vive hoje uma nova forma de consumo, iniciada nas duas últimas décadas e marcada pela oferta incessante de produtos em escala e intensidade jamais vistas. Nesta nova "era do hiperconsumo", o apelo ao consumismo entranhou-se no cotidiano de toda a pirâmide social -ricos, pobres e classe média- e moldou uma forma inédita de relacionamento do indivíduo consigo mesmo e com o outro -para o bem e para o mal. Essa é a tese defendida pelo sociólogo francês Gilles Lipovetsky, 61, em seu recém-lançado "Le Bonheur Paradoxal" [A Felicidade Paradoxal, ed. Gallimard, 378 págs., 21 euros, R$ 60], ainda sem previsão de publicação no Brasil. Em seu estilo verborrágico e coalhado de exemplos, o sociólogo faz a defesa do consumo como forma de terapia contra as frustrações cotidianas -"a superficialidade é necessária"-, mas alerta que, no século 21, ele está se aproximando perigosamente de uma forma de totalitarismo, que "coloniza as existências" dos indivíduos. De um lado, uma poderosa terapia que ajuda a afastar as frustrações diárias; de outro, um mecanismo de produção de ansiedade em um mercado cuja razão de ser é a contínua oferta de "novidades" -de que são exemplo as novas e polêmicas chuteiras do atacante brasileiro Ronaldo, recauchutadas pelo fabricante a partir do modelo anterior, mas cujo preço mais que dobrou. Caminhando o tempo todo no fio da navalha em suas argumentações, Lipovetsky diz que o hiperconsumo encurtou as diferenças entre as classes sociais, mas, ao mesmo tempo, passou a se nutrir delas. Pois, afirma, ao estimular a compulsão pela compra como objeto de desejo, a sociedade de hiperconsumo leva as pessoas com menos renda a se tornarem, na ausência de meios materiais, consumidoras apenas potenciais -só "na imaginação". A conseqüência dessa impossibilidade é "a delinqüência, a violência, a criminalidade", diz o sociólogo -curiosamente aproximando-se da opinião do governador de São Paulo, Cláudio Lembo, para quem "o consumismo estragou o Brasil" (Folha, 31/5). Lipovetsky bate de frente com as teses de uma obra emblemática da crítica à fetichização do consumo, lançada em 2000: trata-se de "Sem Logo" (Record, da canadense Naomi Klein. Ao enfatizar a "tirania" das marcas na sociedade, ela não leva em conta que as pessoas "dispõem de liberdade" para escolher; consumo não é o equivalente do facismo", diz o professor da Universidade de Grenoble. Na entrevista abaixo, concedida por telefone de Paris, o autor de "A Terceira Mulher" (Cia. das Letras) e a "A Sociedade Hipermoderna" (ed. Barcarolla) começou falando da "medicalização" do consumo, como "terapia cotidiana".

FOLHA - Por que o hiperconsumidor é alguém que vive uma relação ambígua e quase esquizofrênica com o prazer, como diz em seu livro?

GILLES LIPOVETSKY - Porque o consumo se tornou uma terapia cotidiana, funcionando como uma espécie de droga psicológica: faz esquecer, faz mudar de ares. Assim, ele é ao mesmo tempo uma busca de prazer -viajamos nas férias, decoramos a casa, vamos aos restaurantes- e uma forma de expulsar a angústia e a ansiedade.

FOLHA - Esse é o lado positivo do consumo?

LIPOVETSKY - Sim, mas há outros aspectos, que são negativos. Vivemos em um universo em que as referências se evaporaram ou ficaram desreguladas.

A própria obesidade é uma conseqüência do hiperconsumo, porque ela destrói estruturas, referências e tradições sociais e culturais. Outrora, comia-se em horário fixo; hoje, em uma cidade como São Paulo, por exemplo, pode-se comer qualquer coisa a qualquer hora. Segundo pesquisas realizadas na Califórnia, um em cada dois norte-americanos não sabe o que é uma refeição equilibrada. Sabe-se também que uma porcentagem significativa da população da França e dos Estados Unidos não faz nenhum exercício físico. Em uma vida que é completamente hedonística, tudo leva à facilidade. As pessoas assistem ao futebol na TV, mas não o praticam, assistem ao Carnaval na TV, mas não vão às ruas "pular". Então, temos modos de vidas que são completamente desregulados, em que há excesso de todos os lados. Há excesso de comida, excesso de gordura, excesso de ócio.

FOLHA - Essa desregulação é conseqüência direta da falência dos grandes sistemas -sociais, religiosos, políticos?

LIPOVETSKY - Sim, mas foi o hiperconsumo que exacerbou tal desregulação. Porque existe uma oferta permanente, uma estimulação contínua. Mas há um segundo aspecto muito importante -e negativo. O sistema de hiperconsumo hedonístico desregulou totalmente o sistema de educação. Cada vez mais você tem jovens e mesmo crianças agitadas, que não conseguem se controlar.

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Os mais desfavorecidos também são hiperconsumidores, embora apenas na cabeça
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Mas por quê? Porque os pais hoje não são mais capazes de lhes definir o sentido de limite, incapazes de estruturar seu comportamento. Há crianças que passam, diariamente, cinco horas diante da TV simplesmente porque os pais não conseguem lhes dizer "não". Os pais hoje têm medo de frustrar os filhos. Essa é uma conseqüência do hiperconsumo.

FOLHA - E por que os pais não conseguem dizer "não"?

LIPOVETSKY - Porque os valores hedonistas, o culto da felicidade, se tornaram centrais. Então, teme-se que a criança se frustre, que não seja feliz.

FOLHA - Os pais são hoje uma exacerbação do Maio de 68?

LIPOVETSKY - Exatamente, mesmo sem sabê-los, eles são "soixante-huitards" [referência aos manifestantes de Maio de 68]. Os pais se tornaram fracos. Assistimos hoje a uma falência do sistema de educação, e acredito que esse é um enorme problema e um dos grandes desafios para o século 21. Esse aspecto também se pode detectar entre as pessoas mais pobres, que são completamente obcecadas pelo consumo. O consumo em si não é negativo, não é em si um drama, mas assim se torna quando invade completamente a existência. Quando pessoas pobres não têm como pagar a eletricidade, mas compram um aparelho de TV, quando as pessoas não conseguem comer bem, mas gastam dinheiro para comprar produtos de marca -um tênis Nike, por exemplo-, vive-se uma situação louca. Nesse sentido, o consumo colonizou as existências. Não sou contra o prazer do consumo. O consumo é bom, a superficialidade é boa, temos necessidade deles. Não é preciso ser moralista, como o são os marxistas. Mas sou contra o totalitarismo do consumo, que impede o desenvolvimento dos outros aspectos necessários à existência. Porque o homem é alguém quem pensa, que crê, que deve se superar. Ele não pode ser simplesmente um "homo consumericus".

FOLHA - Pode-se dizer, então, que existe uma dialética entre autonomia e dependência na sociedade do século 21?

LIPOVETSKY - Não sei se dialética, mas certamente uma coexistência. Porque hoje temos consumidores que são mais livres do que antigamente, mais autônomos porque mais bem informados; os códigos sociais de antigamente são menos fortes e, de modo geral, pode-se, viver de acordo com os seus desejos. Tem-se à disposição uma oferta de consumo muito diversa, e isso é bom. Mas, ao mesmo tempo, há também uma dependência dos indivíduos em relação ao consumo. E dependência e autonomia andam juntas hoje. Há 50 anos, o consumo era algo relativamente pequeno na vida das pessoas. Vivia-se com muito pouca coisa; já, hoje, há carros, telefones, computadores, viagens para toda parte, o que leva as pessoas a tornarem-se escravas do consumo. É por isso que falo de "felicidade paradoxal", porque, ao mesmo tempo, há mais autonomia e menos autonomia.

FOLHA - Mas esse hiperconsumo não é para todos. Em um país como o Brasil, por exemplo, parcelas expressivas da população estão alijadas do acesso a vários produtos...

LIPOVETSKY - Mas o problema é que a sociedade de consumo cresce par a par com o crescimento das desigualdades. E aí reside um verdadeiro drama porque, se é um fato que a pobreza sempre existiu, hoje as pessoas mais desfavorecidas também são hiperconsumidoras, embora apenas na cabeça.

FOLHA - Apenas na imaginação?

LIPOVETSKY - Sim. Assim como todos os demais, as pessoas com menos renda também querem marcas, a moda, a televisão, o iPod... Elas também querem a vida hedonística, e isso torna as coisas mais complicadas, pois nem sempre conseguem o que desejam.

FOLHA - E quais as conseqüências sociais dessa impossibilidade de hiperconsumir?

LIPOVETSKY - A delinqüência, a violência, a criminalidade. As pessoas não querem viver mal, elas também querem participar da sociedade de hiperconsumo. E, como isso é difícil, podem lançar mão de formas imediatas para conseguir dinheiro -como tráfico de drogas e roubo- e pagar pelas marcas. Porque, se você não tem os produto de consumo, você está excluído da sociedade.

FOLHA - O hiperconsumidor é alguém que vive para um futuro que nunca se cumpre?

LIPOVETSKY - É preciso ter cuidado para não diabolizar o tema, porque os intelectuais que se debruçaram sobre o fenômeno nos últimos 50 anos foram terríveis, apocalípticos.

FOLHA - Como Naomi Klein?

LIPOVETSKY - Exatamente. Não concordo com suas análises, que acho pouco exatas. Naturalmente, elas têm algo de verdadeiro -o excesso de marcas e a invasão do espaço privado pelo excesso de publicidade. Mas essa invasão não é o equivalente do facismo, pois os indivíduos também dispõem de muita liberdade. O consumo não é o totalitarismo; o universo do hiperconsumo é também aquele em que as pessoas vivem bem e por muito tempo. Há também o consumo médico, e isso é bom. Certamente que há um lado criticável no consumo, mas não é aquele que Naomi Klein aponta. Ela vê apenas o lado superficial da questão, que são as marcas. De fato, as marcas são importantes, mas sobretudo para os muito, muito pobres. Para os outros, o consumo se dá de modo bem pouco fiel... Eles mudam de marca, e isso não é um grande problema. O verdadeiro problema hoje é a educação, a pobreza e o desemprego, a depressão, a ansiedade -e não as marcas.

FOLHA - Pode-se dizer que o hiperconsumidor é alguém em busca de si mesmo?

LIPOVETSKY - Sem dúvida. Mas, lendo o livro de Naomi Klein ["Sem Logo"; leia texto na pág. ao lado], temos a impressão de que os indivíduos não existem -só existem as marcas e os negócios. Para ela, os indivíduos recebem as marcas sem conseguir reagir, como se fossem escravos. Mas você pode assistir a anúncios de uísque 24 horas por dia e jamais beber uísque. Você não vai a um restaurante porque viu alguma publicidade sobre ele, mas porque algum amigo o indicou, por meio do boca-a-boca.

Na verdade, considero que, quanto mais marcas há, mais os gostos se individualizam.

O universo do hiperconsumo desenvolve a multiplicidade de gostos individuais.

FOLHA - O surgimento da sociedade de hiperconsumo está ligado à ascensão de uma "lógica igualitária" -como o sr. diz em seu livro-, criada pela democracia?

LIPOVETSKY - Sim, mas lógica igualitária não significa uniformização, mas, em seu sentido mais profundo, o direito de cada um à felicidade e ao consumo. Isso significa que, mesmo que não se seja rico, pode-se viver bem. Hoje pode-se viajar de avião ao lado de quem tem um nível de vida diferente do seu, que pode ter muito mais dinheiro que você. O que não significa afirmar que as diferenças desapareceram -isso seria ridículo. Mas também não significa dizer que o mundo de pobres e ricos seja estanque. Hoje mesmo as classes desfavorecidas têm acesso ao consumo -e isso muda tudo. A sociedade de hiperconsumo ajudou a encurtar as diferenças entre as classes sociais.

FOLHA - Por que o sr. diz que a sociedade de hiperconsumo é marcada por uma "feminização"?

LIPOVETSKY - Práticas que outrora eram privilégio das mulheres -como a moda e a cosmética- hoje cada vez mais se integram ao universo masculino. Em um sentido mais amplo, assistimos a uma feminização do design. As formas agora são mais doces, mais maternais e menos agressivas. Isso talvez seja a expressão de uma sociedade mais ansiosa, que acredita menos na modernidade e que deseja um bem-estar imediato. Pois as formas antigas eram uma espécie de profissão de fé na modernidade. Havia um esforço em destruir a tradição, enquanto hoje não se deseja destruir nada, mas, antes, conservar tudo. Hoje as formas pretendem transmitir paz, serenidade, razão pela qual o modelo dessa sociedade não é Dionisos, mas o zen.

FOLHA - Mas um zen com ansiedade. Isso não é contraditório?

LIPOVETSKY - Sem dúvida.

FOLHA - Esse é o pós-hedonismo?

LIPOVETSKY - Exatamente. Um hedonismo ansioso.

FOLHA - O sr. fala de uma "cultura preventiva" do consumidor. Isso é uma relação um pouco paradoxal com o prazer da compra, não? O que é exatamente isso?

LIPOVETSKY - Esse é um grande problema, que tem se desenvolvido, digamos, há cerca de 20 anos. É o que chamo, para me divertir, de "Dr. Knock", referência a uma peça de teatro em que os personagens estão perfeitamente bem, gozam de boa saúde, mas vão a um médico que lhes diz: "Você estão com problemas, as coisas não vão bem". E eles saem dali "doentes", desestabilizados. É o que vivemos hoje. Por exemplo, você não pode se expor ao sol, porque causa problemas, você não pode beber Coca-Cola, porque tem muito açúcar, você não pode comer muita carne, porque tem gordura, você tem que fazer exames médicos, você não pode fazer sexo sem camisinha, porque pode pegar Aids...

FOLHA - Mas essa preocupação não é boa?

LIPOVETSKY - Certamente. Mas isso paralisa o hedonismo, porque você instala a dúvida, a desconfiança, o medo, que se torna algo permanente nas existências dos indivíduos. Nos anos 50, as pessoas comiam e tomavam banho de mar tranqüilamente; hoje, você precisa verificar se a água não está poluída, se a comida tem produtos geneticamente modificados, que podem provocar câncer. Não é uma crítica o que faço, mas o fato é que, simplesmente, vivemos em uma civilização da prevenção, que é o contrário do dionisíaco.

FOLHA - É um exemplo de hedonismo fraturado?

LIPOVETSKY - Sim. Eu diria que não vivemos o dionisíaco; apenas consumimos o dionisíaco.

 

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As 3 fases do consumo de massa
1. O nascimento dos mercados de massa
Iniciada nos anos 1880, se consolida na primeira metade do século 20. No lugar de pequenos mercados locais se constituem mercados nacionais, possibilitados pela modernização da infra-estrutura de transporte e comunicação. As fábricas adotam princípios "científicos" de produção. Surgem grandes lojas de departamento, como Printemps (França) e Bloomingdale's (EUA), e se consolidam as grandes marcas, como Coca-Cola, Quaker e Kodak. É uma fase de construção cultural, que requer a "educação" dos consumidores. Ir às compras se torna passatempo e estilo de vida das classes médias.

2. A "sociedade de abundância"
Construída ao longo das três décadas do pós-guerra, dá continuidade aos processos inventados no estágio anterior.
Multiplica-se por quatro o poder de compra dos salários, o crédito se expande, e uma parcela crescente da sociedade passa a ter acesso a produtos até então restritos às classes abastadas: carro, TV, eletrodomésticos etc. Supermercados e hipermercados se expandem velozmente. Diminui o tempo de vida das mercadorias, que se diversificam, se renovam e criam o "complô da moda".

3. O hiperconsumo
Fase iniciada nas duas últimas décadas do século 20, em que o consumo se associa de forma cada vez mais forte a critérios individuais. A satisfação corporal e estética de cada um se sobrepõe à busca pela aparência de classes sociais mais altas. A curiosidade se torna uma paixão, e cria-se uma nova relação emocional entre indivíduos e mercadorias.
As marcas se fortalecem de forma independente dos produtos, como a Benetton, num processo chamado "branding". O produto deixa de ser vendido e dá lugar a um conceito, um estilo de vida associado à marca, que são representadas por slogans em marcas de alcance mundial: "Just do it" (Nike) ou "Think different" (Apple).
A ansiedade pelo consumo cresce, juntamente com a necessidade de consumir. O hiperconsumismo passa a ser visto como uma forma de lutar contra a fatalidade natural da vida, como um antidestino.

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Klein visou a "tirania da marca"
A jornalista canadense Naomi Klein é autora de um dos ataques mais virulentos e polêmicos já lançados contra o consumo no capitalismo avançado.
Seu alvo foi o "branding", que, segundo Klein, se cristalizou na campanha da fábrica de equipamentos esportivos americana Nike, que se projetou com o patrocínio ao jogador de basquete Michael Jordan, o principal na história da modalidade. Então veio a guinada: por que apenas associar-se a um produto de alto prestígio (Jordan) para agregar valor à marca, quando a própria marca pode tornar-se o próprio objeto a cobiçar e, logo, consumir?
Marxista, Klein foi criticada por não levar em conta o indivíduo -que pode lançar mão de seu arbítrio e recusar-se a ser enredado na estratégia do "branding". Ela rebateu afirmando que o alvo das campanhas são sobretudo crianças e jovens, com menor capacidade de discernimento. (MFP)

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Morte a crédito
Cineasta retrata de forma trágica a compulsão dos norte-americanos por cartões de crédito

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

Transformar um assunto como cartões de crédito em uma comédia pode parecer algo esdrúxulo. Numa comédia de humor negro, então, nem se fala. Mas é mais ou menos o que o jovem diretor norte-americano James Scurlock, 34, conseguiu fazer em "Maxed Out" (Chegar ao Extremo), um documentário sobre como as dívidas têm dado sustentação ao estilo de vida da família norte-americana comum. O filme (sem previsão de lançamento no Brasil) fez sucesso de crítica e público no South by Southwest Film Festival, em Austin (Texas), em março, e levantou uma séria discussão sobre o modo como a economia americana tem se alimentado.

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Quanto mais inteligente a pessoa é, mais vergonha sente por não entender como caiu em tal situação
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Intrigado com a maneira como os norte-americanos, principalmente os mais jovens, têm sido cada vez mais enredados em dívidas de cartões de crédito, Scurlock resolveu investigar as razões pelas quais esse pequeno pedaço de plástico se tornou algo tão sedutor e indispensável para tanta gente, num país em que a média de endividamento familiar com cartão de crédito chegou, em 2005, a cerca de US$ 9.300 (R$ 21 mil). Conta também como "falidos" e "quebrados" são motivo de lucro para essas empresas. Rodado em vários pontos dos EUA, o filme vai virar também um livro com as melhores entrevistas, a ser publicado em 2007 pela Simon & Schuster.

FOLHA - Por que decidiu fazer esse documentário? Está mais preocupado com a economia ou com o comportamento da sociedade?

JAMES SCURLOCK - Estou preocupado com os dois. Nos anos 1970, começamos a partir de uma economia produtiva -em que as pessoas economizam e investem em companhias que produzem coisas, e é daí que vem o crescimento- para uma economia consumista, em que o crescimento vem do nosso consumo de coisas que são feitas em outros lugares. Por isso não precisamos mais de tudo aquilo que economizávamos para financiar a produção. Viramos uma economia em que companhias fazem dinheiro financiando produtos, e não vendendo-os. Somos todos culpados, em diferentes níveis, por pensar que esse comportamento pode continuar indefinidamente.

FOLHA - Os americanos estão sendo estimulados a criar dívidas?

SCURLOCK - Sem dúvida. Os bancos e as empresas de cartão de crédito estão vendendo dívidas. Virou um produto como qualquer outro, exceto pelo fato de que, no caso da dívida, o abastecimento cria mais demanda. Em outras palavras, quanto mais dívida você vende, mais pessoas precisarão dela. Se você tem um cartão de crédito, vai precisar de outro para pagar o primeiro, aí terá de pendurar a casa para pagar os dois e assim por diante. É um ciclo vicioso criado por essas companhias, que criaram um produto para cada parte dele. Dívidas com juros altos tornaram-se um negócio muito rentável, especialmente quando se adicionam taxas e multas.

FOLHA - Como foi a pesquisa para o filme?

SCURLOCK - Li muito a respeito e freqüentei o curso de finanças da Wharton School, na Universidade da Pensilvânia. Para encontrar os personagens, procuramos na internet e nos jornais histórias reais. A filmagem durou cerca de nove meses e foi muito difícil porque muitas pessoas não querem falar sobre falência. Há muita vergonha e muita culpa envolvidos no tema. Ironicamente, quanto mais inteligente a pessoa for, mais culpa e vergonha sente por não entender como foi possível cair em tal situação. Filmamos em todo o país, e a pesquisa provou que o assunto afeta a todos. Não interessa de onde você é, se rico ou pobre, negro ou branco, gay ou heterossexual, conservador ou liberal.

FOLHA - Você acha que suas conclusões podem ser exportadas a outros países?

SCURLOCK - Sim, porque esse é um fenômeno global. O verdadeiro tema é a disparidade de riqueza no mundo. Alguns estão ficando muito, muito ricos e outros, muito, muito pobres. Então a maioria das pessoas está usando cartões de crédito para preencher esse buraco -inclusive para pagar coisas essenciais, como planos de saúde, educação, comida etc. Trata-se uma economia global muito instável e muito desigual, e o crédito é aquilo a que as pessoas se agarram quando estão se afogando. Acabo de ler que o número de japoneses que não têm poupança quase dobrou em dez anos. Essa é uma grande mudança numa sociedade que costumava se orgulhar de dizer que todos eram de classe média.

FOLHA - A criação de dívidas particulares faz a economia de um país crescer de alguma maneira?

SCURLOCK - Com certeza. Se as pessoas estão fazendo mais e mais dívidas, elas continuam a gastar, e isso mantém a economia em movimento. Mantém os construtores construindo, fábricas produzindo e assim por diante. É por isso que, em princípio, parece uma panacéia, mas acaba construindo uma engrenagem que funciona muito bem. As pessoas ficam felizes porque ainda podem aparentar pertencer à classe média ou ter um certo nível de vida. E os bancos ficam felizes porque estão enriquecendo. Mas, em algum ponto, começam a sufocar sob os crescentes níveis da dívida a cada vez mais alto custo, e surgem os problemas.

FOLHA - Você diz que a dívida virou um vício. Nesse sentido, pode compará-la a outros, como álcool, cigarro, drogas legais ou ilegais?

SCURLOCK - No ano passado as empresas de cartão de crédito enviaram cerca de 6 bilhões de ofertas de cartão de crédito para as casas dos norte-americanos. Isso corresponde, mais ou menos, a 60 para cada uma.
E todos anunciam algo por nada. Zero de juros, pague depois ou o que seja. O que você acha que pode acontecer se enviarmos 60 maços de cigarro ou 60 garrafas de vinho por ano para cada uma dessas casas? É claro que isso vai desenvolver algum tipo de apetite por essas ofertas sedutoras, ou não?

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O mito resistente
"O Sagrado Selvagem" reúne 14 ensaios do antropólogo francês Roger Bastide, que substituiu Lévi-Strauss na USP no fim dos anos 30

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Declínio das religiões, predominância do raciocínio científico, do poder laico, das formas autônomas e individuais da expressão artística: com a célebre fórmula do "desencantamento do mundo", o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) propunha uma descrição até hoje decisiva para o entendimento do mundo moderno. Na visão pessimista de Weber, o processo de burocratização e racionalização universal terminaria produzindo não "a floração do estio, mas uma noite polar, glacial, severa e rude". O prognóstico, que consta das páginas finais de "A Política como Vocação", encontra ao longo da vasta obra de Roger Bastide (1898-1974) um constante, mas ameno -e, diríamos, quase que "encantado"- desmentido. "O Sagrado Selvagem" reúne 14 ensaios do antropólogo francês, desde considerações algo insípidas, datadas de 1931, sobre "o misticismo sem deuses" na obra de pensadores como Rousseau e Maine de Biran, até um minucioso, embora breve, estudo etnográfico da década de 70, a respeito das "escravas dos deuses" (equedes ou aiabás) no candomblé brasileiro. Há um longo percurso entre o mundo literário e filosófico europeu dos anos 30 e os cultos afro-brasileiros que terminaram se tornando a especialidade de Bastide. Nos seus textos de juventude -que esta coletânea intitula algo pomposamente de "Prima Scripta"- temos um jovem intelectual de origem protestante que busca, com a ajuda das filosofias de Bergson e Renouvier e alguma imitação do estilo de Proust, uma conciliação entre o cristianismo conservador de seu tempo e as pressões de renovação social exercidas pelo marxismo. Como no caso de seu amigo Pierre Verger, a "descoberta do Brasil" teve um efeito catártico sobre Roger Bastide. Escolhido para substituir Claude Lévi-Strauss na recém-criada Universidade de São Paulo, Bastide transferiu-se para o Brasil em 1938 e só voltou para a França em 1954, para lecionar na Sorbonne (em Paris). Relacionando-se com os intelectuais, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Sérgio Milliet, que trataram eles próprios de "descobrir o Brasil", Roger Bastide empreendeu uma viagem ao Nordeste em 1944, da qual resultou seu duradouro interesse pelo sincretismo religioso. Mais do que isso: pela presença do sagrado, do informe, do sonho, do transe e do êxtase nas brechas de um sistema social em busca da modernização. "O homem, essa máquina de fazer deuses": a frase de Bergson serve de título a um dos mais líricos ensaios deste volume, originalmente publicado no "Diário de S. Paulo" em 1943. "Criam-se novos cultos debaixo dos nossos olhos", diz Bastide. "Nessas mechas de cabelos preciosamente conservadas, e atadas com fita colorida, do filho querido que morreu, nessas cartas de namorada guardadas no fundo de uma gaveta está inteiramente contido o culto das relíquias. (...) A datilógrafa se sente virar fada, sereia, e quando vai dançar em Santo Amaro, entre os eucaliptos, uma alma de ninfa por um momento a habita. (...) A cozinheira que mata uma galinha para a refeição da noite revive, sem querer, a sombria beleza das sacerdotisas bárbaras."

Pendor literário
Mesmo nos textos em que a exigência de rigor etnográfico predomina, o pendor literário de Bastide -autor, na década de 1940, de um pioneiro estudo sobre poetas modernistas brasileiros, reeditado recentemente pela Edusp- aparece nos interstícios da narrativa. É assim que, descrevendo a iniciação das mulheres no candomblé, Bastide fala de quartinhos escuros "onde os corpos estendidos das candidatas pareciam larvas brancas, de onde deveriam sair, uma vez concluída a metamorfose, as borboletas multicolores das filhas dos deuses". Metáfora, talvez, de um renascimento do sagrado a partir das sociedades modernas? Atento à voga do misticismo hippie e dos lemas da "imaginação no poder", correntes nas revoltas estudantis de 1968, Roger Bastide guarda suas distâncias. Nas religiões tradicionais, o transe é cuidadosamente administrado, inscrevendo-se nas regras de um ritual estabelecido.

Livre do ritual
"Selvagem", na verdade, seria a procura contemporânea de um sagrado que se libertasse da ordenação ritual arcaica. Nossa propensão ao mito, à "grande extensão subterrânea dos sonhos da humanidade", persiste. "A ciência não destruiu esses mitos, destruiu apenas a sua ordenação; logrou apenas (...) cumprir o papel das Bacantes, dispersando mundo afora os membros arrancados de Dioniso, Orfeu ou Osíris. Pedaços sangrentos, sem dúvida, porém, ainda vivos." Destruída, entretanto, a ordenação ritual, é duvidoso que o êxtase possa persistir livremente e criar uma forma livre e revolucionária de "sagrado coletivo". "Nas comunidades hippies, ou outras, mesmo quando se busca o transe coletivo, mesmo quando os corpos estendidos se misturam uns com os outros na inconsciência dos gestos, cada um permanece só." Vitória do protestantismo, talvez, sobre o politeísmo comunitário? O debate vai muito além do diálogo que possamos imaginar entre Weber e Bastide; desenvolve-se -com todo seu potencial de hibridismos e paradoxos- no cotidiano de qualquer periferia brasileira hoje em dia.

 

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O SAGRADO SELVAGEM
Autor: Roger Bastide
Tradução: Dorothée de Bruchard
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 42 (280 págs.)

 

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