Altruísmo ativa região de prazer do cérebro
Giovana Girardi escreve para “O Estado de SP”


 

 
Pesquisa mostra que boas ações atuam no sistema de recompensa e traz nova explicação evolutiva para comportamento altruísta

Giovana Girardi escreve para “O Estado de SP”:

As religiões pregam que amor com amor se paga e que as pessoas façam o bem sem olhar a quem.

No entanto, não são poucos os que seguem a lição à risca sem nem necessariamente serem religiosas - casos como o do analista Adriano Levandoski de Miranda, que em dezembro pulou no Rio Pinheiros para salvar uma criança que tinha caído no rio junto com sua mãe.

Mas o que incentiva o ser humano ao altruísmo é uma questão que há tempos mobiliza a ciência.

Uma tese controversa, que completou 30 anos agora em 2006, é de que somos guiados por “genes egoístas” que só estão preocupados em serem passados para a frente.

Um estudo liderado pelo neurocientista brasileiro Jorge Moll Neto, pesquisador dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, traz agora uma nova explicação.

Ao fazermos uma boa ação, segundo ele, acionamos no cérebro o sistema de recompensa. O mesmo que se acende em situações de prazer, como comer chocolate, fazer sexo, ganhar dinheiro ou consumir drogas.

A pesquisa, publicada na revista PNAS, foi feita com 19 voluntários submetidos à ressonância magnética funcional enquanto tinham de decidir o que fazer com os US$ 128 que haviam acabado de receber: se guardavam para si ou doavam para alguma instituição filantrópica.

Em média, os participantes toparam dar metade do que tinham recebido - as doações variaram entre US$ 21 e US$ 80.

A ressonância mostrou que a simples doação ativava tanto o sistema de recompensa como uma outra parte do cérebro conhecida como córtex subgenual, relacionado às ligações de longo prazo entre as pessoas.

Quem mantinha o dinheiro para si ativava apenas a primeira área. Moll explicou ao Estado, por telefone, os impactos da descoberta.

- Muito já se falou que por trás de boas ações há sempre um interesse particular. Seu estudo mostra o contrário. Quer dizer então que doamos porque faz bem?

Moll - (Risos) Bom, não exatamente. Falar assim fica parecendo hedonismo. A filosofia interpreta que devemos fazer o que é certo independentemente do benefício que possamos ter em troca. A biologia, no sentido mais estrito, diz que isso não faz sentido, porque somos moldados para a sobrevivência da espécie. Nos últimos anos a ciência resolveu alguns paradoxos principalmente em relação a animais sociais. Se viu que nestes casos normalmente a cooperação é proporcional ao parentesco genético. Mas há pessoas que se sacrificam por ideais e por pessoas que lhe são estranhas. Nosso estudo sugere uma explicação neural. Quando fazemos uma doação, nosso sistema de recompensa (mesolímbico dopaminérgico) é ativado, assim como o córtex subgenual, região envolvida com o apego social, com a formação de laços afetivos de longo prazo, como o que ocorre entre mãe e filho, entre casais e entre amigos.

- Mas se a área é ligada aos relacionamentos, como explicar as boas ações em relação aos estranhos?

Moll - Aí vem uma possível explicação evolutiva que aventamos com este trabalho. Se pensarmos nas primeiras sociedades tribais, em que as pessoas começavam a respeitar rituais, princípios religiosos, fenômenos culturais, etc., e que tinham de se voluntariar para fazer alguma coisa - construir um monumento, por exemplo -, podemos deduzir que o sistema de apego foi remodelado de modo a nos envolvermos com causas abstratas. Acredito que isso foi fundamental para a estabilização da espécie humana. Do ponto de vista energético, participar de algo assim podia ser custoso, às vezes não levava a nenhum benefício imediato para a pessoa, mas provavelmente servia para o benefício geral do grupo e para a coesão social.

- Uma vez que é prazeroso e é interessante em termos evolutivos fazermos o bem, por que as boas ações não são a regra?

Moll - Descobrimos que temos em nossa biologia uma predisposição a valorizarmos a doação. Mas é claro que existem diferenças entre as pessoas que só podem ser explicadas pela variabilidade genética: uns são mais capazes de sentir empatia que outros. Em um extremo temos os psicopatas, incapazes de se ligar tanto a pessoas quanto a normas sociais. Do outro lado temos os exemplares morais, como aquelas pessoas que enfrentavam riscos enormes para salvar os judeus na Segunda Guerra. Mas se olharmos uma sociedade como um todo, é claro que a cultura faz diferença. O sistema de valores de um povo é capaz de encorajar as pessoas a terem atos mais altruístas ou mais agressivos. Dependendo da cultura, ela vai estimular representações cerebrais que podem promover comportamentos socialmente mais louváveis. Quando o contrário ocorre e há muita injustiça, as pessoas se voltam para princípios muito mais elementares de sobrevivência individual.

- Considerando os extremos do egoísmo, a neurociência já encontrou alguma área no cérebro que provoque satisfação no indivíduo que só age em causa própria?

Moll - Com certeza. Existem os mecanismos cerebrais de autodefesa e autopromoção. Um dos princípios fundamentais no ser humano é o da sensação de controle, de poder. Você pode controlar seu entorno se engajando em um programa social, por exemplo, ou dirigindo uma companhia ilegal que explora o trabalho infantil. Então a mesma motivação individual de poder pode ser acoplada a uma causa altruísta ou a uma causa egoísta.

- Então não podemos descartar o altruísmo em causa própria?

Moll - Pois é. A gente sabe que as pessoas podem se sacrificar por uma causa mesmo em condições de anonimato, como foi o nosso experimento. Mas sabemos que se a boa ação ocorrer junto com algum tipo de aumento da reputação, a pessoa será muito mais altruísta. No entanto, o importante desse estudo é que ele mostra um princípio: que temos mecanismos cerebrais que explicam emocionalmente porque uma pessoa faz coisas altruístas mesmo sem nenhum ganho pessoal, nem mesmo de visibilidade social. O problema é quando a estrutura social não oferece nem oportunidade de a pessoa tentar fazer alguma coisa. E aí não importa que o cérebro diga que fazer o bem é bom porque não vai adiantar.

- Nesse caso, quem segue uma religião teria mais a tendência altruísta por causa do ambiente?

Moll - De fato quem está dentro de grupos religiosos costuma se voluntariar mais. Mas aí fica a questão: será que é por causa de fé? Eu acredito que não. Acho que essa maior generosidade ocorre porque essas pessoas estão colocadas em uma ambiente mais estruturado que estimula o engajamento social. Não é simplesmente porque Deus manda. Com o devido estímulo é possível resgatar essa motivação natural.

- Mas isso não é um pouco o senso comum de “corrente do bem”?

Moll - Antigamente eu achava que esse papo era balela, mas estou vendo que os exemplos motivam mesmo. E a pesquisa neurológica embasa isso. Só de pensar em fazer o bem nossos voluntários já ativavam o sistema de recompensa e liberavam uma carga de dopamina (neurotransmissor envolvido na sensação de bem-estar). Uma vez que a neurociência compreende os mecanismos por trás disso, percebemos que é fato, que temos um sistema cerebral que estimula o altruísmo. Então passa a ser uma verdade biológica.

- Não é meio determinista falar isso?

Moll - Pode ser. Mas em vários momentos na ciência as pessoas advogaram o contrário, que o ser humano é egoísta por natureza. Se a gente tem esse modelo na cabeça, montamos uma sociedade que não consegue antever qualquer comportamento altruísta, com a idéia de que o cérebro não o permite. Mas sabemos que o cérebro tem esse mecanismo e podemos pensar em formas de estimular esse comportamento.

- Em vez de falarmos que a humanidade tem uma natureza ruim, você está dizendo que somos bons?

Moll - Em linhas bem gerais, a gente pode, como sociedade, tanto ser um demônio quanto um anjo. O nosso cérebro nos permite fazer coisas maravilhosas e horrorosas. Os sistemas estão lá, só dependem do estímulo.

- Sua pesquisa derruba então a idéia do gene egoísta?

Moll - Acho que o gene egoísta continua existindo, mas da forma como evoluímos, é possível que ele, ironicamente, tenha se transformado em um gene altruísta, porque nossa sobrevivência individual dependeu de a gente cooperar em grandes grupos.
(O Estado de SP, 3/1)

 

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