Teoria Instrumental da Razão Prática
Por:
Pedro Madeira
Resumo
Na primeira secção, explica-se que o
estudo da razão prática pode ser dividido em duas grandes áreas: a da
racionalidade na acção e a das razões para agir. Na segunda secção,
expõe-se a teoria da racionalidade na acção mais comum, a teoria
instrumental da racionalidade na acção. Na terceira secção,
argumenta-se que Hume não a defendia.
1. Quais são os assuntos estudados na área da razão prática?
Há uma disciplina filosófica a que é
comum chamar-se, desde Kant, "razão prática". Que é isso da
razão prática? Uma pista inicial é o adjectivo "prática",
que significa, simplesmente, "relativa à acção". Quando nós
falamos em "ética prática", por exemplo, estamos a
referir-nos à ética relativa à acção, isto é, à parte da ética
que nos diz como agir em circunstâncias específicas: dar ou não dar
ajuda, pular ou não pular a cerca, etc. Do mesmo modo, quando falamos
em "razão prática", estamos a referir-nos à razão relativa
à acção. A expressão "razão relativa à acção", porém,
é ambígua de uma maneira que a expressão "ética relativa à acção"
não é. A única pergunta que a ética aplicada fará em relação a
uma acção será: terá essa acção sido eticamente correcta? Poderia
parecer que a única pergunta que a razão prática faria seria: terá
essa acção sido racional? Isto não é verdade. A razão prática
ocupa-se não só dos critérios que fazem de uma acção (ou de um
desejo) racional, mas também de procurar saber o que significa ter uma
razão para agir.
Ao contrário do que à primeira vista
poderia parecer, estas duas áreas não coincidem completamente. À
partida, não parece inconsistente dizer que o facto de uma acção ser
racional não implica que tenhamos uma razão para a realizarmos. Do
mesmo modo, não parece inconsistente dizer que o facto de termos uma
razão para realizar uma acção não implica que essa acção seja
racional. Suponhamos que defendíamos que uma acção é racional se e só
se é o meio mais adequado para realizar os nossos desejos (isto não
anda muito longe da teoria humeana que analisaremos nas secções
seguintes), mas que só temos razão para realizar acções eticamente
correctas. Neste caso, estaríamos a defender que o facto de uma acção
ser racional não nos daria necessariamente uma razão para a
realizarmos e, conversamente, que o facto de termos uma razão para a
realizar não significaria, necessariamente, que essa acção era
racional.
O tópico da racionalidade na acção e o
das razões para agir não estão, portanto, tão ligados como seria de
supor. Isso dá-me alguma margem de manobra (e também alguma justificação)
para me ocupar apenas do tópico da racionalidade da acção neste
ensaio. O das razões para agir terá que ficar para outra altura,
infelizmente, dado que ainda não é uma área em que me sinta à
vontade. Pode ser que em breve tenha oportunidade para me debruçar
sobre isso.
2. O que é a teoria instrumental da razão prática?
No título deste ensaio, fala-se da
"teoria instrumental da razão prática". Que é isso? Bom, a
primeira coisa que é preciso esclarecer é que seria mais correcto
dizer "teoria instrumental da racionalidade na acção", dado
que é uma teoria acerca dos critérios que tornam uma acção racional
ou irracional. Não é uma teoria acerca das razões para agir (embora
costume vir acompanhada de uma teoria acerca das razões para agir - mas
essa já é outra história). No entanto, como é habitual falar-se dela
como "teoria da razão prática" e não como "teoria da
racionalidade na acção", eu seguirei esse costume. Mas não se
deixe enganar: a a teoria instrumental da razão prática não é uma
teoria acerca das razões para agir.
Passemos ao que nos interessa, então. A
teoria instrumental da razão prática é uma teoria minimalista da razão
prática (explicarei mais à frente porque é que lhe chamo
"minimalista"). De acordo com ela, uma dada acção X será
irracional se e só se o agente pensa (correcta ou incorrectamente) que
há uma outra acção, chamemos-lhe Y, que lhe está igualmente disponível,
e que realizar Y realizaria mais eficientemente os seus desejos do que
realizar X e prefere, todavia, realizar X. Pense no seguinte exemplo.
Como reagiria se eu lhe dissesse que trabalhar era o meio mais eficiente
de arranjar dinheiro para realizar os meus desejos, e acrescentasse de
seguida que, ainda assim, não queria trabalhar? Dir-me-ia, certamente,
que eu era irracional. O defensor do modelo instrumental da razão prática
dirá que vários cenários são possíveis: ou estou a mentir quando
digo que acredito que trabalhar é o meio mais eficiente para realizar
os meus desejos; ou afinal a realização desses desejos que requerem
dinheiro não é assim tão importante para mim como dei a entender, de
forma enganadora; ou então estou mesmo a ser irracional.
Antes de prosseguir, gostaria de desfazer
uma possível confusão. Alguém poderá dizer: é estranho pensar que
é irracional termos desejos incompatíveis. Afinal, não sentimos isso
a toda a hora? Queremos ir trabalhar para ganhar dinheiro - mas, se
calhar, preferíamos ficar em casa a ler. Queremos ser honestos - mas não
há quem nunca se tivesse sentido tentado a prevaricar. Queremos ir
visitar o familiar ao hospital - mas era tão mais agradável ir ao
cinema. Exemplos deste tipo de situação abundam. A minha resposta é a
de que é óbvio que há um sentido trivial em que todos temos desejos
incompatíveis sem por isso sermos irracionais. O que não é trivial é
que seja normal ter, ao mesmo tempo, a intenção de realizar uma acção
e a intenção de não a realizar. É mais ou menos consensual que ter a
intenção de realizar uma acção implica estar determinado a realizá-la,
e à partida pareceria que, em circunstâncias normais, uma pessoa não
estaria determinada a realizar duas acções incompatíveis. De acordo
com a teoria instrumental da razão prática, uma pessoa que esteja
determinada a alcançar um fim, mas recuse empregar os meios necessários,
é irracional.
Creio que todos os que acham que há
princípios de razão prática concordam que empregar meios que
consideramos inadequados para a prossecução do nosso fim constitui um
exemplo claro de irracionalidade - é por isso que a teoria instrumental
da razão prática é denominada "minimalista": gera uma base
mínima de consenso. A grande cisão actual no campo da racionalidade na
acção (entre os não-cépticos, bem entendido) dá-se entre os que
dizem que devemos adoptar uma teoria "robusta" da
racionalidade, e os que defendem que não devemos ir além da teoria
minimalista.
Na prática, aquilo que distingue os
proponentes da teoria robusta dos da minimalista é o facto de que os
primeiros defendem que desejos individualmente considerados podem ser
racionais ou irracionais. Kant, por exemplo, defendia que ser imoral era
irracional, independentemente de termos ou não o desejo de agir
moralmente. Os proponentes da teoria minimalista dirão que só seríamos
irracionais caso tivéssemos, ao mesmo tempo, a intenção de agir
moralmente e a intenção de agir imoralmente.
3. Será que Hume defendia a teoria instrumental da razão prática?
É comum dizer-se que, enquanto Kant
defendia uma teoria robusta da racionalidade, Hume, o seu opositor,
defendia a teoria minimalista. Concordo que Kant defendia uma teoria
robusta. Todavia, não me parece correcto dizer que Hume defendia a
teoria minimalista. Para ver porquê, basta pensar nas duas situações
em que, segundo Hume, as paixões podem ser contrárias à razão: se
escolhemos meios insuficientes para o nosso fim; ou se o objecto da
nossa paixão não existe ("paixão" é o termo que ele
emprega com o sentido de "desejo"). Se olharmos com atenção,
veremos que, em ambos os casos, não é a paixão que é contrária à
razão, mas sim a crença. (Na primeira situação, há uma crença
instrumental que é falsa; no segundo, a crença em que se baseia a paixão
é falsa.) Isto significa que, de acordo com Hume, as paixões não são
racionais nem deixam de ser: uma paixão não é o tipo de coisa de que
faça sentido perguntar-se se é racional ou não. Olhemos, então, para
as duas situações em que, segundo Hume, as paixões podem
(supostamente) ser contrárias à razão.
Escolher meios insuficientes para um fim
nunca poderia, em bom rigor, ser praticamente irracional; só faria
sentido dizer isso se nós conscientemente escolhêssemos meios que julgávamos
ser insuficientes para o nosso fim. Todavia, tanto quanto pude perceber,
Hume não impõe essa cláusula. Por isso, concluo que Hume dirige a sua
crítica para a crença instrumental falsa, e não para a paixão.
Detenhamo-nos agora no segundo caso.
Suponha que eu acordei hoje a suar da testa, porque sei que vou ter que
entrar na sala B9, onde creio haver um monstro. Por ter tal crença,
desejo fortemente nunca mais entrar na sala. É óbvio que não há lá
monstro nenhum - eu é que sou paranóico. Creio que Hume diria que este
seria um caso em que o objecto da minha paixão não existia. Poderei eu
ser acusado de irracionalidade prática? Não me parece. Suponha que a
minha crença de que há um monstro na sala é mesmo justificada, embora
não haja qualquer monstro. Neste caso, muito embora o objecto da minha
paixão não existisse, não creio que Hume dissesse que a minha paixão
era contrária à razão. Por isso, concluo, novamente, que Hume está a
criticar a crença em que se baseia a paixão, e não a própria paixão.
(Um aparte: esta segunda crítica de Hume
pode ser generalizada. Em vez de criticar as paixões cujo objecto é
inexistente, faria mais sentido que ele criticasse as paixões fundadas
em crenças falsas. Pense no seguinte exemplo: eu quero oferecer-lhe um
colar de pérolas de modo agradar-lhe. Contudo, embora eu não o saiba,
ela acha que dar jóias denota frivolidade, pelo que agradada é que ela
não ficará quando eu lhe der o colar. Repare: tanto como o colar de pérolas,
como ela, existem. Não se pode dizer que o objecto da minha paixão não
exista; no entanto, Hume não deixaria de me criticar por eu lhe dar o
colar de pérolas. Isto significa que, em vez de dizer que há
irracionalidade caso o objecto da minha paixão não exista, Hume devia
dizer, de modo mais abrangente, que há irracionalidade caso a paixão
esteja fundada numa crença falsa. É a situação presente: eu só
tenho o desejo (a paixão) de lhe dar o colar porque acredito,
falsamente, que ela ficará agradada.)
Portanto, de acordo com Hume, a área da
racionalidade na acção é vazia: não parece haver qualquer caso em
que uma paixão possa ser contrária à razão. Este é o bom velho Hume
- sempre um céptico.
Bibliografia
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Darwall - www.la.utexas.edu/~pdl/histeth/histeth.lec14.html
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Madeira, Pedro - "O que é o modelo crença-desejo?",
Intelectu nº 9, em www.intelectu.com
Madeira, Pedro - "A objecção de Nagel ao modelo crença-desejo e
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Fonte: www.intelectu.com