O TEMPO NA FÍSICA
Henrique Fleming

O TEMPO NA FÍSICA

Henrique Fleming

Neste artigo, destinado a leitores não-especialistas, mas afeitos ao
pensamento teórico, pretendemos descrever as contribuições da física, em
especial da física deste século, à elucidação da natureza do tempo e de
suas relações com outros conceitos fundamentais usados na ciência. O
tempo de que vamos falar não é nenhuma construção especial da física
moderna, mas é o tempo mesmo, de domínio público, e sobre o qual se
manifestaram muitos filósofos importantes, dois dos quais, Santo
Agostinho e Kant, exerceram e exercem grande influência sobre os físicos
mais indagadores. Kant, por sua origem, nos está mais próximo, em suas
considerações sobre o tempo (nas Antinomias, por exemplo). Mas mesmo
filósofos deliberadamente distantes da ciência, como Benedetto Croce,
influem sobre a conceituação do tempo na física, ou iluminam a
interpretação daquilo que a estrutura formal das teorias nos propõe ou
impõe. Pois o que é um resultado importante na física? A resposta
esperada, de que importante é o resultado que encontra aplicação na vida
prática, é correta, mas aborda só um lado da questão e nem mesmo o mais
importante. Em 1957, Chen Ning Yang e Tsung Dao Lee receberam o prêmio
Nobel de física pela descoberta de que a natureza permite que se defina
a mão esquerda de maneira absoluta (ou seja, sem ser por comparação com
uma mão direita). Nenhum prêmio Nobel de física foi considerado tão
importante quanto este, desde então. As aplicações práticas (dentro da
física) da descoberta de Yang e Lee foram surgindo com o tempo, na
teoria dos neutrinos, nas modernas teorias de grande unificação, etc.
Mas o seu grande impacto se deve ao fato de que ensinou algo sobre um
problema de antiga tradição na filosofia, tema dos debates
Leibnitz-Clarke, e que ainda não se esgotou até hoje. Vale dizer, um
problema que está na raiz mesma do nosso conhecimento do Universo, ou do
conhecimento tout court. Enfim, um resultado é tanto mais importante na
física quanto mais nobre o pedigree do problema ao qual ele se refere.
Uma ocasião, foi perguntado a Einstein por que, tendo ele estudado em
uma escola mais forte em matemática do que em física, tinha escolhido
esta última como carreira. "Porque, respondeu, na física sou capaz de
discernir os problemas importantes, enquanto que na matemática não." Não
há duvida de que ele se referia ao critério de importância a que nos
referimos acima. Pois bem, a física moderna obteve resultados que nos
parecem importantes sobre o conceito de tempo e suas relações, algumas
totalmente inesperadas, com outros conceitos fundamentais na descrição
da realidade. Apresentaremos uma descrição das relações entre tempo e
espaço (teoria da relatividade restrita) e entre tempo, espaço e massa
(teoria da relatividade geral) que transcendem a província da física e
são do interesse de todos.

Existe um único conceito de tempo, ou uma profusão de homônimos pouco
aparentados espalhados pelas várias áreas do conhecimento teórico e
prático? O tempo que, conquanto idéia clara, não cabia nas palavras de
Santo Agostinho, tem algo a ver com o conceito para cujo estudo Einstein
lançou as bases em 1916? Até que ponto as propostas da física moderna
satisfariam o grande pensador de Tegesta? É difícil dizer. Às vezes o
que para um físico é um grande progresso pode, para um filósofo, parecer
um detalhe irrelevante. Contudo, há descobertas novas sobre temas que já
preocupavam antigos pensadores. Muito do que se fez pode ser pensado
como formalização de idéias desses filósofos proféticos, mas não tudo. O
alto grau de abstração da física teórica moderna permitiu a escalada de
patamares dificilmente concebíveis para mentes desaparelhadas do
instrumental matemático adequado.

Três problemas

O tempo flui em um sentido bem definido, cuja manifestação mais
dramática é o nosso envelhecimento biológico. Surpreendentemente, a
inclusão deste dado da realidade (a "flecha do tempo") no ideário da
física teórica constituiu um dos grandes problemas dos últimos cem anos.
Se deixarmos de lado as ínfimas forças ligadas ao decaimento beta dos
núcleos, as teorias fundamentais da física colocam passado e futuro em
situações simétricas: se uma sucessão de fenômenos ocorre, a sucessão
inversa, como um filme passado ao contrário, também ocorre. De acordo
com as leis da física, um ancião pode, com o passar dos anos, evoluir
para uma criança! Ludwig Boltzmann, numa das maiores realizações da
história da física, mostrou que a flecha do tempo é um fenômeno
estatístico. A probabilidade de o ancião rejuvenescer é essencialmente
zero, enquanto que a de um jovem envelhecer é essencialmente 1. Mas,
levando o reducionismo físico ao extremo, ambos os processos são
permitidos pelas leis. Debates furiosos subsistem até hoje sobre isso,
mas, em minha opinião, há só alguns detalhes a acrescentar à obra de
Boltzmann. O primeiro problema dos três que vou citar consiste em
digerir esse surpreendente resultado, cabendo aos físicos recuperar,
dentro do seu formalismo, a naturalidade das concepções intuitivas de
passado e futuro. É uma tarefa muito técnica e por isso não será tratada
aqui, bastando esta menção: só para sistemas com um grande número de
constituintes existe, nítido (mas probabilístico), o sentido do tempo.
Para sistemas constituídos por um pequeno número de elementos, perde-se
a sua flecha.

O segundo problema diz respeito à individualidade (e objetividade) do
conceito de tempo. Em 1908, após ter estudado a teoria da relatividade,
o grande matemático Hermann Minkowski iniciou sua célebre conferência
dizendo: "As visões do espaço e do tempo que eu desejo expor diante dos
senhores brotaram do solo da física experimental, e aí está a sua forca.
São radicais. De agora em diante o espaço em si mesmo, e o tempo em si
mesmo, estão designados a dissolver-se em meras sombras, e somente em
uma espécie de união dos dois subsistirá uma realidade independente".
Esta união é o espaço-tempo, e aprendemos com a teoria da relatividade
que a sua decomposição em espaço e tempo separados depende do
observador, isto é, é subjetiva. Eis o segundo problema. Mais
surpreendente ainda é o terceiro, fruto da relatividade geral, lançada
por Einstein em 1916. Aqui aprenderemos que é possível agir sobre o
espaço-tempo, e, portanto, sobre o tempo. Deixa o espaço-tempo seu papel
passivo de palco dos acontecimentos para tornar-se, ele mesmo, um
sistema físico, e atinge-se, finalmente, a possibilidade de estudar o
sistema físico por excelência: o Universo como um todo. A história do
Universo é a história do tempo, como bem a designou S. W. Hawking,
grande físico teórico inglês contemporâneo.

A relatividade restrita

Como foi dito acima, o conceito objetivo, independente do observador, é
o de espaço-tempo, e se trata de uma "superfície" quadridimensional.
Como não somos capazes de visualizar um objeto assim, temos que nos
valer, nos nossos trabalhos acadêmicos, dos métodos da matemática, para
a qual essa extensão dimensional é simples e bem conhecida. O leitor
poderá usar a imagem de uma superfície usual, bidimensional,
considerando que uma dessas duas dimensões é o tempo. O espaço-tempo e o
conjunto de todos os pontos e todos os instantes. O movimento de um
corpo puntiforme é nele representado por uma curva chamada de linha de
universo da partícula. Uma propriedade básica dessa curva é que,
conhecido um de seus pontos e a velocidade do móvel naquele ponto, todo
o resto da curva está determinado, ou seja, para um ser hipotético que
vivesse além do espaço e do tempo e contemplasse o espaço-tempo, a linha
de universo de cada partícula estaria completamente desenhada,
representando o movimento em sua totalidade (passado, presente e
futuro). Em imagens simples, a inclusão do tempo na geometria do
movimento transforma o filme do movimento numa fotografia estática de
idêntico conteúdo. O ingrediente revolucionário que injeta física nessa
representação (até aqui) formal é a descoberta de Einstein de que existe
uma distância bem definida nesse espaço-tempo. As conseqüências disso
têm direito ao adjetivo extraordinárias. Cito aqui só duas, as duas de
interesse mais geral. A simultaneidade de dois acontecimentos é
relativa, depende de quem está observando os fenômenos. Diante de mim, e
em repouso em relação a mim, duas luzes piscam "simultaneamente". Por
essa ocasião, passava por mim a grande velocidade outro observador. Ele
as verá como não-simultâneas, e, se não estiver familiarizado com a
teoria da relatividade, se surpreenderá com a minha insistência na
simultaneidade. A diferença só é perceptível quando a velocidade
relativa entre os observadores for enorme, próxima da velocidade da luz,
o que explica que esse fato seja antiintuitivo. Por fim, teremos alguma
novidade sobre a independência da ordenação temporal dos acontecimentos
em relação a quem os observa. Este é um problema caro a Hume. A causa
deve preceder o efeito, e a discriminação do que é causa e do que é
efeito deve ser, se serve para alguma coisa, independente do observador.
Informa a teoria da relatividade o seguinte: suponhamos que, para um
determinado par de acontecimentos, exista um observador para o qual eles
são simultâneos. Então haverá um observador que os verá numa certa ordem
causal, e outro que os verá na ordem inversa. Conseqüentemente,
acontecimentos que são simultâneos para alguém não podem ter qualquer
relação causal um com o outro. Ao contrário, consideremos agora dois
pares de acontecimentos que, para um observador, acontecem em um mesmo
lugar, e um depois do outro. Mostra a teoria da relatividade que a
ordenação temporal determinada por esse observador privilegiado (seu
privilégio está em ver os dois acontecimentos no mesmo ponto espacial)
se mantém para qualquer outro observador. Para essa classe de
acontecimentos, então, existe uma ordenação que pode ser chamada de causal.
Várias outras manifestações da relatividade da simultaneidade, de
caráter mais ou menos circense, existem, como a dilatação do tempo, e o
exemplo associado a ela denominado "paradoxo dos gêmeos". Mas são bem
conhecidos e amplamente tratados.

Relatividade geral

A idéia de espaço-tempo só desenvolve sua potencialidade nos trabalhos
de Einstein de 1916 e 1917, sobre a Relatividade Geral e a aplicação
desta à descrição do Universo como um todo, isto é, à Cosmologia. Já na
relatividade restrita o conceito de tempo sofrera modificações
profundas, advindas da descoberta de seu caráter subjetivo. A
simultaneidade passou a depender do observador; qualquer relógio tem o
seu ritmo modificado, para um observador que se move em relação a ele.
Com o advento da relatividade geral as surpresas serão ainda maiores: o
tempo, amalgamado ao espaço no espaço-tempo, passa a ser um fenômeno.
Não flui mais de maneira uniforme, indiferente aos fenômenos, que se
limitava a ordenar. Passa a ser possível agir sobre ele. A evolução da
matéria do Universo não se limita a exibir a ordem no tempo, mas atua
sobre o tempo e estabelece, dentro de certas condições, que o tempo tem
um começo e pode ter um fim.

A relatividade geral é a teoria do espaço-tempo. Segundo ela, as forças
gravitacionais resultam da curvatura do espaço-tempo. Onde não há forças
gravitacionais o espaço-tempo é plano, e um corpo se move em linha reta.
As forças gravitacionais são conseqüências do encurvamento do
espaço-tempo devido à presença de massas. Os corpos continuam a
percorrer, entre dois pontos desse espaço-tempo curvo, o caminho mais
curto, mas numa superfície curva o caminho mais curto entre dois pontos
não é uma reta, e sim uma curva que depende dos detalhes do
espaço-tempo. Por causa dos nossos hábitos tridimensionais, preferimos
interpretar essa trajetória como causada por forças, no caso gravitacionais.

A relatividade geral abriu o caminho para a cosmologia quantitativa,
pois as equações de Einstein podem ser aplicadas ao Universo como um
todo. O tecido do Universo é o espaço-tempo: onde o espaço-tempo acaba,
acaba o Universo, e acaba o tempo.

As equações de Einstein não possuem uma solução única para o Universo:
apresentam um catálogo de possibilidades, e cabe às observações
experimentais determinar qual delas descreve o Universo que efetivamente
se realizou. No nosso estágio atual de conhecimento a escolha se resume
a três possibilidades, que são os universos de Friedmann aberto, chato e
fechado. O preferido de Einstein, e também o mais fácil de descrever
para não-especialistas, é o fechado. Todos são universos em expansão, no
sentido de que, para a imensa maioria das galáxias, a distância entre
duas galáxias cresce continuamente. Um modelo que descreve bem as
principais propriedades do Universo de Friedmann fechado é o de uma
bexiga de borracha que, inflada, expande-se mantendo a forma esférica. A
superfície da bexiga, que está ela mesma crescendo, seria o espaço em
expansão. O espaço é finito e se fecha sobre si mesmo (forma esférica),
mas é ilimitado, já que nunca se chega ao seu fim, como descobriu, em
outras circunstâncias, Fernão de Magalhães. A descrição dinâmica deste
universo é a seguinte: no estado inicial está concentrado em um ponto, e
expandindo-se vertiginosamente. A taxa de expansão diminui gradualmente
e chega um momento em que o Universo cessa de se expandir para, depois,
começar a se contrair, refazendo, ao contrário, a primeira parte da
evolução, e retornando ao ponto singular inicial. Nesta descrição temos,
então, o início do tempo, quando se inicia a expansão, e o seu fim,
quando se conclui a contração. Fora deste intervalo não existe Universo,
ou espaço, ou tempo. Como disse acima, esta não é a única possibilidade.
As duas outras, os universos de Friedmann aberto e chato, são, neste
nível de descrição, muito semelhantes e podem ser tratados
simultaneamente. Ambos possuem uma singularidade inicial (reduzem-se, no
início, a um ponto), como o modelo descrito anteriormente, ou seja,
possuem um início do tempo. Mas, à diferença dele, não possuem um fim do
tempo. São universos de vida infinita e são infinitos também
espacialmente, ou seja, não são circunavegáveis. Na presente situação
experimental o candidato mais forte é o modelo de Friedmann aberto, mas
não é possível, com segurança, excluir os outros dois.

Resumindo, a aplicação da relatividade geral ao Universo sugere
fortemente a existência de um início para o tempo, e abre a
possibilidade para que também exista um fim para ele. Uma belíssima
crônica da evolução do Universo é apresentada por S.W. Hawking em seu
famoso livro, apropriadamente intitulado Uma breve história do tempo.

Como era de se esperar, não há nenhuma luz lançada sobre a antinomia de
Kant relativa à duração do Universo na Crítica da razão pura. O dilema
ali apontado, alegadamente inerente ao pensamento humano, não pode ser
resolvido "por uma conta". Há sempre uma sensação de perda, quando a
física apresenta um tratamento quantitativo de um problema que
anteriormente era abordado sob outra forma, com ênfase nos "porquês", e
não nos "comos". Mesmo que, inequivocamente, se chegue a saber que o
tempo teve um começo, não se poderá eliminar a pergunta "e antes?". Como
disse Ezra Pound no Guide to Kulchur, "In our time Al Einstein
scandalized the professing philosophists by saying, with truth, that his
theories of relativity had no philosophic bearing".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KANT, I. "Crítica da razão pura' tradução de Valério Rohden", São Paulo,
1981.
HAWKING, S.W. "Uma breve história do tempo", Rio de Janeiro, 1988.
POUND, E. "Guide to Kulchu" 3rd impression, London, 1960.

 

HENRIQUE FLEMING é professor do Instituto de Física da USP, no
departamento de Física Matemática.

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O número 2 da Revista USP é dedicado ao tema em questão: o tempo. Como
não há um link direto, para acessá-lo será necessário clicar no link
abaixo e depois clicar em "números anteriores" no lado esquerdo da tela.
Dentre os artigo expostos na revista (número 2), destaco aquele
intitulado "O Tempo na Física" de Henrique Fleming, professor do
Instituto de Física da USP, no departamento de Física Matemática.

http://www.usp.br/revistausp/
.
Há também um artigo da revista "Ciência e Cultura" intitulado "O Tempo
da Cultura em Nietzsche" escrito por José Carlos Bruni, professor do
programa de pós-graduação em Sociologia da USP e professor do
Departamento de Filosofia da Unesp. O artigo está disponível no link abaixo:

http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252002000200026&script=sci_\
arttext
<http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252002000200026&script=sci\
_arttext>

http://groups.yahoo.com/group/Genismo/message/6264

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