A Lógica e os Problemas da Vida Sentimental
Por: Eduardo Chaves




 “A lógica, como a anatomia, sempre exercerá atração sobre muitas mentes simplesmente porque, em um universo onde tanta coisa é incerta, ela produz certeza de que algumas formas de raciocínio são tão inadmissíveis quanto alguns usos do corpo”   - Ralph Harper, "Significance of Existence and Recognition for Education"

Muitas pessoas têm receio da lógica, da mesma forma que têm medo da
matemática. A lógica não tem uma boa reputação, exceto, talvez, entre
filósofos (mesmo assim apenas entre alguns), e, certamente, entre lógicos
profissionais.

Contudo, todos nós usamos a lógica. O tempo todo. Usamos a lógica quando argumentamos, e argumentamos quando tentamos convencer os outros de algo ou quando tentamos nos defender de alguma acusação que nos é feita. Por isso, argumentos são coisa que aparece principalmente na vida sentimental.

[Argumento A1]

1. "Você não me ama", diz ela.
2. "Por quê?", pergunta ele, surpreso.
3. "Porque, se você me amasse, você não teria me deixado aqui sozinha ontem à noite", explica ela.

Situação comum, essa ou alguma parecida. O argumento usado é, no tocante à sua forma, tão comum, que ela certamente ficaria surpreendida se ele – um filósofo de boa estirpe -- lhe disse, para encerrar a discussão: -- "Ah, não me venha com um 'modus tollens' desses!” ·
Argumentos como o apresentado por ela é tão comum que "modus tollens" é o nome latino dado a argumentos que têm essa forma:

[Forma do Argumento Válido Modus Tollens - Negação do Conseqüente]

Se p, então q (premissa maior)
não-q        (premissa menor)
Logo, não-p (conclusão)

Colocando "recheio" na forma do argumento, temos:


[Argumento A2]

4. Se você me amasse (p), você não teria me deixada aqui sozinha ontem à noite (q)
5. Você me deixou aqui sozinha ontem à noite (não-q)
6. Logo, você não me ama (não-p).

Esse argumento, e todos os que possuem a mesma forma, é um argumento válido.
O raciocínio dela é correto. Resta saber se as premissas que ela usa,
especialmente a maior (a primeira), são verdadeiras. Se forem, a conclusão é, necessariamente, verdadeira. Se não forem, ou se pelo menos uma delas não for, a conclusão não precisa ser verdadeira, mesmo que o argumento seja válido, como este.

Mas imaginemos uma outra situação. Ela está feliz -- e o diálogo é
diferente.

[Argumento B1]

7. "Ah, que bom que você me ama", diz ela.
8. "Por que você está dizendo isso?", pergunta ele, interessado.
9. "Porque eu lhe disse ontem que, se você me amasse, você não iria àquela festa, e você não foi", explica ela.

Ele -- o mesmo filósofo de boa estirpe -- fica quieto. Por que estragar o
bom humor dela apontando uma falácia em seu raciocínio?

Neste segundo caso, o argumento, parecido com o primeiro, é inválido. O
argumento, reconstruído, é o seguinte:

[Argumento B2]

10. Se você me ama (p), você não vai à festa (q)
11. Você não foi à festa (q)
12. Logo, você me ama (p).

A forma desse argumento é a seguinte:

[Forma do Argumento Inválido (Falácia) de Afirmação do Conseqüente]

Se p, então q (premissa maior)
q                 (premissa menor)
Logo, p        (conclusão)

Todos os argumentos que têm essa forma são inválidos. Mesmo que as premissas sejam verdadeiras, a conclusão pode ser falsa. Vejamos rapidamente porquê, usando um argumento semelhante em que as premissas são claramente verdadeiras e a conclusão não é necessariamente verdadeira. "Quem ama, não trai", diz o slogan.

 

Construamos um argumento.
[Argumento B3]

13. Se você me ama (p), você não me trai (q)
14. Você não me trai (q)
15. Logo, você me ama (p).

Este argumento, que tem a mesma forma do anterior, não convence muita gente.
As duas premissas podem ser claramente verdadeiras, e, contudo, a conclusão ser falsa. Você pode aceitar a premissa que "quem ama, não trai" ("Se você me ama, você não me trai"), e admitir que você não traiu, sem aceitar a conclusão. Isso porque, por exemplo, você pode não ter traído porque não acredita que deva trair ninguém, nem mesmo as pessoas que você detesta. Ou porque você, mesmo não amando, não tem coragem suficiente para trair, ou a oportunidade de trair.

Para que o argumento anterior se torne válido, é necessário que a premissa maior seja alterada de "Quem ama, não trai" para "Quem não trai, ama" premissa altamente questionável, para dizer o mínimo. Contudo, mesmo com uma premissa altamente duvidosa, este argumento é formalmente válido, porque, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão, agora, tem que ser verdadeira:

[Argumento C]
16. Se você não me trai (p), você me ama (q)
17. Você não me trai (p)
18. Logo, você me ama (q).

Este argumento, válido, tem a seguinte forma, chamada em latim de "modus ponens”:
[Forma do Argumento Válido Modus Ponens - Afirmação do Antecendente]

Se p, então q (premissa maior)
p                 (premissa menor)
Logo, q        (conclusão)

Consideremos, agora, este argumento:

[Argumento D]

19. Se você me trai (p), então você não me ama (q)
20. Você não me trai (não-p)
21. Logo, você me ama (não-q)

Este argumento, invalidérrimo, provavelmente não convence ninguém. Sua forma é a seguinte:

[Forma do Argumento Inválido (Falácia) de Negação do Antecedente]

Se p, então q (premissa maior)
não-p        (premissa menor)
Logo, não-q (conclusão)

Por fim, considere estes dois argumentos:

[Argumento E1]

22. Ou você faz o que eu quero (p), ou você não me ama (q)
23. Você não faz o que eu quero (não-p)
24. Logo, você não me ama (q)

[Argumento F1]

25. Ou você faz o que eu quero (p), ou você não me ama (q)
26. Você faz o que eu quero (p)
27. Logo, você me ama (não-q)

O primeiro desses argumentos é válido, o segundo inválido. A forma deles é, respectivamente:

[Forma do Argumento Disjuntivo - Válido: Negação de um Disjunto]

Ou p, ou q    (premissa maior)
Não-p    (premissa menor)
Logo, q    (conclusão)

[Forma de um Argumento Inválido (Falácia) Parecido com o Disjuntivo:
Afirmação de um Disjunto]

Ou p, ou q    (premissa maior)
p             (premissa menor)
Logo, não-q (conclusão)

O primeiro desses dois argumentos é válido, o segundo inválido.

É fácil ver porquê.

[Argumento E2]

22. Ou este ar condicionado está quebrado (p), ou está fazendo muito calor lá fora (q)
23. Este ar condicionado não está quebrado (não-p)
24. Logo, está fazendo muito calor lá fora(q)

Neste caso, se as duas premissas são verdadeiras, não há como a conclusão possa ser falsa.

[Argumento F2]

25. Ou este ar condicionado está quebrado (p), ou está fazendo muito calor lá fora (q)
26. Este ar condicionado está quebrado (p)
27. Logo, não está fazendo muito calor lá fora (não-q)

Neste caso, mesmo que as duas premissas sejam verdadeiras, a conclusão pode ser falsa. A premissa maior pode ser verdadeira, o ar condicionado pode estar quebrado, e pode estar fazendo muito calor lá fora.
 
Bastam esses exemplos para mostrar que todos argumentam, ou que todos têm que lidar com argumentos quase o tempo todo. Lidam-se com argumentos, lidam com a lógica, quer queiram, quer não. É melhor que o façam de maneira consciente e com conhecimento de causa. Caso contrário, podem usar, ou (o que pode ser pior) ser persuadidos a aceitar, argumentos inválidos,  vendendo, ou comprando, gato por lebre.

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