-um pequeno ensaio sobre a
origem e a cura dos devaneios espirituais-
A ORIGEM DA METAFISICA
É preciso entender as razões que fazem com que pessoas aparentemente
saudáveis e normais acreditem tão fielmente em tantas coisas para as
quais simplesmente não há qualquer evidência concreta. Mundos
Transcendentais, Leis metafísicas, escatologias teológicas, explicações
sobrenaturais... Como pode haver algo sobrenatural, se por definição
a Natureza a tudo abarca? Porque o ser humano foge do aqui e do
momento para viver e conjecturar sobre os mundos do além?
Para entender a origem deste problema que é no fundo essencialmente
cultural temos que entender a origem da metafísica e para entendermos
o desenvolvimento da metafísica devemos retomar Platão, o primeiro
porta voz dos metafísicos, que descontente com o mundo lançou-se a
imaginar o que poderia haver além dele.
A vida de Platão era sua maior evidência sobre a corruptividade
deste mundo. O governo de Atenas que se orgulhava de ser justo,
integro e livre degenerava em injustiças, corrupção e interesses
velados. A morte de Sócrates foi talvez para ele o estandarte máximo
desta hipocrisia. "A legislação e moralidade estavam a tal
ponto corrompidas que eu, antes cheio de ardor para trabalhar para o
bem público, considerava esta situação, e vendo que tudo rumava a
deriva, acabei por ficar aturdido.", teria dito o pensador.
Platão desiludiu-se com o mundo e com os homens e voltou-se portanto
ao último reduto onde poderia encontrar a justiça e verdade.
Abandonou a política ateniense e voltou-se para a própria mente
Inconformado com o mundo passou a buscar um outro que lhe valesse a
pena. Em outras palavras, por não conseguir mudar a realidade, buscou
justificar a mesma. Em larga escala é exatamente sobre este
comportamento que Karl Marx se refere em sua onzena de Feurbach:
"Até hoje os filósofos só se ocuparam de tentar explicar o
mundo. Mas o problema consiste em mudá-lo". De certa forma, não
tolerando mais o mundo Platão fez o caminho oposto ao de Marx. Não
podia mais mudar o mundo, tentou então explica-lo.
Assim sem forças contra o mundo, Platão rompeu com a Imanência dos
pensadores Pré-Socraticos sem qualquer outra base senão a sua própria
perplexidade com mundo e seus próprios devaneios. E esta fuga ilusória
do aqui e do agora não começou em outro lugar senão no estupro do
tempo presente.
Explico, antes de Platão a compreensão do tempo e do mundo era
imanentista com o é ainda para todo o homem natural, e para os recém
nascidos. Não se considerava nada além do Eterno Presente exatamente
como podemos ainda ver nos fragmentos de Heráclito. Tudo o que havia
era o Devir, aquilo que dá-se somente no Presente. Passado e futuro
eram conceitos medíocres usados somente para justificar o homem
perante o que lhe foi trágico ou inevitável.
O que Platão fez foi exaltar o passado e a esperança do futuro
frente à um presente que lhe era insuportável. Assim agora tudo
estaria destinado a outras estâncias e se originaria em "algum
outro lugar.". O Momento e o instante aos poucos se tornariam estéreis
frente às preocupações destes
mundos imaginários.
Platão ocupou-se então em criar toda uma nova ciência, uma
"Teoria das Idéias" com a qual fosse capaz de escapar da
tragédia do presente, mas sendo um homem sábio, sabia que não
poderia simplesmente negar o Devir e a Imanência do Aqui e Agora. Por
mais que sustentasse outras dimensões da realidade a humanidade vive
sempre no presente e no mundo imanente. Sua solução foi a da divisão
conceitual do Mundo em dois. O Mundo das Essencias e o Mundo das Opniões.
Com sua astúcia, Platão argumentou que o Devir, o eterno presente é
na verdade o mundo das opinões, um mundo de projeções daquilo que só
é real no mundo das Formas Originais, também chamadas de essências.
A partir de então o Mundo aonde vivíamos passou a ser considerado
somente uma reles sombra de um outro mundo perfeito e universal. Com
essa visão de mundo, os sentidos passam então a não mais serem
confiáveis e tudo passa a ser ilusão de uma verdade que jaz em
"algum outro lugar."
SIMULAÇÃO E SIMULACRO
Surge então o primeiro problema de Platão: Se estivermos sempre
vivendo em um mundo de projeções, sombras e silhuetas, como poderíamos
atingir o mundo das formas? Sua resposta é a de que esse processo
aconteceria por meio de uma distinção consciente daquilo que é cópia
perfeita e do que é deturpação do original aqui em nosso mundo.
Uma cópia seria a projeção direta do Mundo das Idéias que seriam
então deturpadas pelo Mundo das Opniões tornando-se simples e
malfeitas imitações das formas perfeitas. Portanto, somente aquilo
que é eterno e constante seria uma cópia enquanto que aquilo que é
mutável e impermanente seria um simulacro. Para um metafísico a idéia
deve ser abraçada para que se chegue a forma enquanto que o simulacro
deve ser repudiado como deturpação.
A verdade passou então a ser acessível somente pela imaginação e
pela mente humana, mas nunca manifesta no mundo. Segundo o pensamento
platônico, se tudo o que os sentidos experimentam é passageiro então
nada neste mundo é real. A Arvore à sua frente passou a ser
considerada falsa em prol da essência comum a todas as árvores,
mesmo se um uma sequóia caísse sobre sua cabeça. O mundo todo
passou a ser um mundo imperfeito projetado do mundo das formas. O
repudio por tudo o que era passageiro deu inicio ao que no futuro
expressar-se-ia como um desprezo pelo próprio mundo em que vivemos,
pelo nosso próprio corpo, e conseqüentemente contra a própria vida.
Este pensamento teve graves conseqüências. Se nada neste mundo é a
verdade final, então mesmo o homem é irreal. O homem passou então a
sonhar com este mundo além do mundo, principalmente com um Homem
Metafísico e Ideal do qual seria a Projeção. Se o ser humano nasce
e morre, este deveria ser eterno e sempre ter existido. Se o ser
humano é limitado e tem que aprender, este deveria ser ilimitado e
onisciente. Se o ser humano compete e sofre e tem prazer, este deveria
ser Todo Poderoso além de toda a corruptividade deste mundo. O homem
da imaginação traduzia-se em um Deus transcendente.
É claro que das idéias de Platão até o conceito atual de
divindade, muitas águas rolaram. E muitas foram às hipóteses sobre
qual era a natureza deste Deus inacessível. Gerações e gerações
de metafísicos debateram e teorizaram em cima das idéias de Platão.
Nelas, especialmente a tradição judaico cristã encontrou confortável
refugio para supor suas próprias verdades sobre este mundo imaginário
e destilar o seu veneno.
Deus passou a ser usado não somente para explicar o homem, como
passou também a ser criador e sustentador da natureza e para reger o
comportamento dos homens de carne e osso. A fuga da vida uniu-se ao
medo do desconhecido e os teóricos do impossível passaram a ser
porta voz da divindade. A metafísica passou a ser usada para
confortar os covardes das dores e prazeres do corpo e do mundo e criou
lugares como o Campos Elísios e o Céu onde tudo que é considerado
trágico é inexistente e onde a vida é como gostariam que fosse.
Mas agora, que evidências temos sobre a existência deste mundo de idéias
e de essências? A multiplicidade de formas não é de forma alguma
uma conseqüência de um modelo original. A única coisa que nos leva
a investigar um mundo além deste mundo e a nossa própria necessidade
de que este mundo exista. E como quem quer que já tenha passado fome
sabe; a realidade não
está nem ai para o como achamos que as coisas deveriam ser.
Peguemos um
pequeno exemplo. Você, um gato e um morcego contemplam uma mesma árvore.
Cada um dos organismos experimentará a arvore de uma maneira distinta
segundo suas próprias experiências previas e limitações de seus
sistemas perceptivos. Você enxergará em belas cores as folhas, o
tronco e os galhos da arvore. O gato enxergara a arvore em branco e
preto, mas sentirá
toda uma gama de aromas inexistentes para você. O morcego por fim
praticamente não verá a arvore, mas a tocará distância com seu
radar natural. Agora, qual a verdadeira árvore, a sua a do gato ou a
do morcego?
Cada organismo experimentará árvore de acordo com sua própria
natureza, e segundo Platão criando uma deturpação da arvore
original conseqüência da limitação de seus sentidos. Além disso,
mesmo a forma como a árvore sente a si mesma estará limitada à própria
capacidade de recepção e organização da informação da qual ela
dispõe. Inclusive, mesmo indivíduos idênticos como gêmeos siameses
acabarão experimentando a mesma árvore de formas diferentes.
A CURA DA METAFISICA
Tendo em vista a situação exposta anteriormente, será que o fato de
existirem várias percepções de uma árvore necessariamente implica
na existência de uma árvore original como gostariam os metafísicos
platonicos? E ainda, porque a essência desta árvore teria as informações
universais e
verdadeiras comuns a todas as outras árvores? A única coisa que o
exemplo acima revela é que a árvore é experimentada diferentemente
por organismo diferentes. Isso não quer dizer que necessariamente
exista uma essência comum a toda a coletividade de árvores.
A essência da árvore é única sendo somente a forma como é
experimentada que muda de organismo para organismo. A problemática é
semelhante à história do cego que cuida de um Rouxinol. Tudo o que o
ele pode saber é que o pássaro é mais do que o lindo cantar que ele
sempre ouve. Nossos sentidos, e mesmo a nossa razão no máximo nos
dirá que determinada coisa "não é só isso", mas nunca
nos revelará por completo o que de fato esta coisa é. Sábios os místicos
que se referem à realidade como "Nem isso, Nem Isso."
Qualquer afirmação seria uma pretensão.
Mas a problemática
é ainda mais profunda, pois é muito mais importante entender que a
árvore essencial ou ideal no fundo não existe como algo separado do
todo. A arvore não existe. Somente quando a experimentamos com nossos
sentidos ou com nossa memória é que a "recortamos" a árvore
do universo e a definimos, rotulamos e classificamos como um verbete
de enciclopédia destacado de todo o resto do universo. Antes dos
sentidos captarem e a mente recortar, a arvore sequer existia como
algo isolado do todo, sendo inclusive pertencente ao mesmo todo onde
estão imersos todos os seres que a observa.
A "Arvore verdadeira" não é, portanto uma arvore essencial
ou ideal, como propuséramos metafísicos, pois mesmo esta arvore
ideal é uma visão humana idealizada por nós. A "Arvore
verdadeira" seria algo como uma onda de informações sem forma e
completamente integrante à grande mistura que compõe toda a existência.
Talvez um exemplo facilita a exposição do dilema. Considere que
quando mirarmos uma multidão numa paisagem, recortamos esta multidão
do resto do mundo e quando paramos para observar uma pessoa, isolamos
esta pessoa da multidão. Seguindo em frente se repararmos no rosto de
uma pessoa fazemos então surgir "o rosto" como algo
separado do corpo. Olhamos no fundo do seu olho e o olho passa a ser
uma unidade separada. Concentre-se na íris e sua mente isolará ela
do próprio globo ocular. Mas a verdade permanece inalterada, pois o
olho nunca esteve separado do rosto, o rosto nunca esteve separado do
corpo, o corpo nunca esteve separado da multidão e a multidão nunca
esteve separada da paisagem senão na nossa mente. Mesmo o observador
não é por trás de seus limitados sentidos algo isolado daquilo que
observa.
São os observadores que tencionam a realidade e dela extraem suas
arvores, seus rostos e seus rouxinóis. As ondas no ar só se
convertem em som ao serem processada por algum sistema auditivo e as
imagens só são imagens de fato na mente. Formas e Modelos são
portanto abstrações de observadores,. Como pode haver uma arvore
ideal num suposto mundo das formas se a árvore só existirá quando
alguém a olhar, ver tocar, cheira, a experimentar e a destacar com
isso do resto da Existência? Além disso, a arvore só existirá na
mente daquele que a experimentou, pois sua real natureza permanece
intocada. Inexistente como arvore, mas existente como o Secreto Logos
que a tudo abarca.
O homem sensato então não se preocupa em como as coisas são no
mundo ideal, ou por trás dos véus da realidade, pois sabe que este
mundo das idéias só existe em sua mente e que a realidade é na
verdade una. Todos os refúgios metafísicos podem ser encarados como
fugas ilusórias criadas por seu próprio cérebro.
Abandonando estes conceitos desnecessários vivemos então no nosso próprio
mundo tal como este se revela a nós e passaremos a viver a vida em
toda sua plenitude, dor, gozo, tragédia e felicidade. Poderemos
inclusive começar a tentar moldar este mundo conforme os desígnios
humanos, mas sem mais apelar a fugas metafísicas; Os antigos enganos
não mais preocuparão o homem superior, pois este terá então
retornado a sua Imanência e virtude originais, como neste sábio adágio
Zen que encerra este nosso ensaio:
"Antes da iluminação, as montanhas são montanhas e as águas,
águas. Quando se obtém a visão interior da iluminação, as
montanhas não são mais montanhas, nem as águas, águas. Mas depois
disso, quando alcança realmente a iluminação, de novo as montanhas
são montanhas e as águas são águas como sempre foram."