Idéias egoístas: uma teoria para a evolução cultural
Por: Ricar Ricardo do Waizbor aizbor aizbort
Departamento de Pesquisa, Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz

  Fonte: Revista Ciência Hoje


A evolução humana é determinada não só pelos genes, mas também pelos ‘memes’ (ou idéias), que podem ser vistos como unidades de transmissão cultural. Assim como os genes passam de geração a geração, através da reprodução, as idéias se propagam de cérebro a cérebro pela imitação e pela aprendizagem, e as nossas vidas dependem de ambos. Essa teoria, que dá nova dimensão ao papel das idéias na história humana, vem provocando debates em todo o mundo, mas ainda é pouco conhecida no Brasil.


Cuidado! Se você se dispuser a ler estas linhas corre o risco de se infectar. Caso o leitor não se contamine pelas concepções a seguir é porque já foi colonizado por outras espécies de idéias, esteja consciente disso ou não. Essa é a ‘condição humana’: tão logo nascemos – nus, desprotegidos e sem linguagem – somos jogados em um mundo onde a linguagem e a cultura são preponderantes. Não escolhemos nossos pais, nossa cidade, nossa escola, nossas roupas, pelo menos desde o início da vida. Embora na vida adulta tenhamos liberdade de aprender uma nova língua, de mudar para outro país, de ajudar nossos semelhantes, só podemos alcançar essas realizações porque recebemos uma longa e decidida lição social, justamente antes que sejamos capazes de qualquer escolha.  
Em 1999, a psicóloga norteamericana Susan Blackmore publicou o livro The meme machine (A máquina de memes), não traduzido no Brasil. Seu argumento central é que nossas vidas são guiadas pelas idéias, fragmentos de idéias e complexos de idéias que possuímos e que nos possuem. Blackmore chama tais idéias de ‘memes’. Ela não foi a primeira a tratar do tema. Em 1995, em A perigosa idéia de Darwin, o filósofo Daniel Dennett, também norte-americano, defendeu que nossas vidas dependem dos genes que herdamos de nossos pais e das idéias (os memes) que herdamos do contexto cultural no qual nossa personalidade se forma. Quase 20 anos antes, em 1976, o zoólogo inglês Richard Dawkins, no controvertido livro de divulgação científica O gene egoísta, já havia dito que outra entidade, além dos genes, guiaria a evolução humana: os memes, que ele definiu como unidades de transmissão, repetição ou aprendizagem cultural.  


Segundo Blackmore, Dennett e Dawkins, um meme é uma idéia passível de ser imitada. As idéias, como os genes, seriam replicadores, mas de natureza bem distinta. Enquanto um gene precisa do aparato molecular de uma célula e de seu núcleo para copiar a si mesmo, as idéias se replicam através da aprendizagem social e da imitação. Idéias – como ‘roda’, ‘vingança’, ‘triângulo’, ‘jogo de xadrez’, ‘evolução por seleção natural’, ‘melodias’, estilos de roupa’ ou ‘maneiras de fazer potes’ – se alojam em nossos cérebros e são transmitidas para nossos pares por veículos como a linguagem falada, livros, CDs, rádios, televisões, revistas, internet e outros.   
Genes egoístas 
  
A teoria dos memes está fundamentada em uma analogia entre estes e os genes, trechos do ácido desoxirribonucléico (DNA) que expressam proteínas. Pode-se dizer que, em termos químicos, todas as partes dos corpos de animais e plantas – unhas, bicos, folhas, peles, seivas, sangues, raízes etc. – são compostas essencialmente de proteínas. Como a ‘informação’ para sintetizar todas as proteínas está codificada nos genes, estes são os replicadores que transmitem a mensagem química de geração a geração.   
Os genes dão expressão a proteínas que constituem células, que se associam em tecidos, e estes em órgãos integrantes dos sistemas que compõem o indivíduo. Entre os indivíduos, humanos ou de qualquer outra espécie, observa-se uma acirrada competição por recursos, sobretudo por alimento, proteção e parceiros sexuais. Os indivíduos com ‘receitas’ genéticas mais aptas, que levam à construção de corpos mais bem ajustados às condições vigentes no momento e no ambiente dessa disputa, ‘tendem’ a sobreviver e deixar maior descendência, no processo denominado ‘seleção natural’. A seleção natural, em média, elimina os indivíduos cujo design é relativamente pior em época e lugar específicos. Ela ‘tende’ a preservar os genes (ou genótipos) que exibem melhores ‘desempenhos’. Portanto, pode-se entender o darwinismo genético, e qualquer darwinismo estrito, como uma espécie de jogo entre três elementos, ou três princípios fortes: 1) a hereditariedade; 2) a variação; 3) a seleção natural (reprodução diferencial).   


Em todo o mundo dos seres vivos, os filhos (em média) se parecem mais com os pais do que com outros indivíduos. A base material desse fato, chamado hoje de herança genética, só começou a ser esclarecida em 1900 com a redescoberta dos trabalhos de Gregor Mendel (1822-1884) (ver ‘O renascimento da genética’, em CH nº 165). Pode-se dizer – de forma muito esquemática e um tanto arbitrária – que esse trabalho culminou com a descoberta da estrutura física e química da molécula de DNA por James Watson e Francis Crick, em 1953 (ver ‘História de um sucesso e duas tragédias’, em CH nº 192). A partir de então entramos definitivamente na era da biologia molecular.   
Os genes tendem a se transmitir intactos de uma geração a outra. Apesar dessa tendência conservadora, 
ocorrem mutações (alterações de uma das bases, as unidades básicas do DNA, designadas pelas letras A, T, G e C), que vêm se acumulando durante a longa história da vida. Mutações podem se acumular de modos diferentes em populações isoladas, dando início à geração de novas espécies. Além disso, em organismos 
sexuados, como o Homo sapiens, os genes são ‘embaralhados’ de modo aleatório durante a reprodução. Cada um dos gametas masculinos (espermatozóides) e femininos (óvulos) é geneticamente único e carrega apenas metade do material genético necessário para gerar um indivíduo inteiro (a união dos gametas completa o conjunto dos genes). 
  
Admite-se que o fenômeno da mutação genética está na base de toda variação presente no mundo biológico. Há consenso entre os biólogos de que, sem as mutações, a vida provavelmente teria permanecido em um estado unicelular, se tanto. O código para construir proteínas está cifrado nas bases A-T-G-C do DNA, e a mutação de uma delas pode causar uma mudança benéfica, prejudicial ou neutra (para dado local ou momento). As mutações tendem a ‘desorganizar’ uma estrutura já funcional, o que pode ser vantajoso ou desvantajoso na luta pela vida, e muitas vezes uma mutação desfavorável, mas não fatal, torna-se benéfica quando mudam as circunstâncias (e vice-versa).

Em um mundo rico, mas finito e populoso, os recursos vitais são intensamente disputados. Talvez haja um lugar ao Sol para todos, principalmente quando se fala na espécie humana, mas para maioria dos seres vivos a luta pela vida representa muito sofrimento e morte. Embora a cooperação entre indivíduos e até entre espécies venha ganhando espaço nas publicações científicas, a competição é um importante elemento na evolução de todos os seres vivos. 
  
Charles Darwin (1809-1882) apontou dois tipos de competição: entre espécies diferentes (águias e cordeiros, por exemplo) e dentro da mesma espécie (na escolha de parceiro sexual ou na disputa por alimento, por exemplo). Assim, faz algum sentido dizer que a vida é uma luta de todos contra todos. Entretanto, a intensidade dessa luta varia quando se trata da interação entre, por exemplo, machos da mesma espécie, 
ou entre a presa e o predador. Embora a última possa parecer mais dramática e sangrenta, a primeira ocorre silenciosamente, dia após dia, e é tão fatal quanto a outra, pois condena o indivíduo a não deixar a cópia de seus genes para a posteridade. 
  
Os memes egoístas 
  
Em O gene egoísta, Richard Dawkins afirma que, da mesma forma que os genes se propagam de geração a geração, saltando de corpo a corpo via esperma ou óvulo, os memes se propagam no ambiente cultural, saltando de cérebro a cérebro através de um processo que pode ser chamado de imitação ou aprendizagem. 
Segundo Dawkins, se um cientista da natureza ou da sociedade ouve falar ou lê sobre uma idéia, ele a transmite a seus colegas e alunos e a menciona em artigos e palestras. Se a idéia for bem-sucedida, pode-se dizer que ela se propaga, espalhando-se de cérebro em cérebro. 
  
  
Atualmente, vários estudos a respeito dos memes estão disponíveis na internet, em sites como Journal of Memetics (jomemit. cfpm.org/) ou Memetics papers (http://users.lycaeum.org/~sputnik/Memetics/), e também em livros como Thought contagion (Contágio de idéias), de 1996, do filósofo Aaron Lynch, e The electric meme (O meme elétrico), de 2002, do antropólogo Robert Aunger. Tais estudos ainda são pouco conhecidos. A teoria dos memes também recebeu críticas agudas, como a do filósofo da evolução William Wimsatt na revista Biology and philosophy (v. 14-2, 1999) e a do próprio Aunger, no livro Darwinizing culture: the status of memetics as a science (2001). 
  
Infelizmente, até agora, não há livros ou artigos sobre o assunto no Brasil. O gene egoísta (Dawkins) 
e A perigosa idéia de Darwin (Dennett) têm capítulos dedicados aos memes. Outras traduções fazem referências importantes, embora pontuais, aos memes: O tigre e o jaguar (Murray Gell-Mann, 1996), Como o cérebro pensa (William Calvin, 1998) e A mente seletiva (Geoffrey Miller, 2000). E um capítulo inteiro do livro Destecendo o arco-íris, de Dawkins, lançado aqui em 2000, discute a importância dos replicadores culturais 
na evolução dos cérebros e sociedades humanos. 
  
De forma mais sistemática, Susan Blackmore, em The meme machine, propõe que a origem dos memes ocorreu entre os Homo habilis, há 2,5 milhões de anos, quando aparecem no registro de pedra. Se o homem ancestral pretendia caçar um animal ou matar um adversário, a tecnologia dos artefatos de pedra é muito útil. Nesse sentido, parece que uma idéia se espalha porque confere alguma vantagem àquele que a adota. Mas não nos iludamos: na lógica perversa dos memes, as idéias se replicam porque são boas para... se replicar; e não por causa dos benefícios trazidos a seu possuidor ou por alguma virtude moral. 
  
Embora a idéia de fabricar pontas de lanças com pedras tenha ocorrido a nossos ancestrais há pelo menos 2,5 milhões de anos, eles demoraram quase outro tanto para perceber que dentes, garras e ossos eram materiais mais fáceis de manipular para os mesmos fins. A produção de ferramentas com tais materiais só começou com a chamada ‘revolução do Paleolítico superior’, há apenas 40 mil anos, quando também surgem as primeiras pinturas rupestres. Animado por esses novos memes, esse período é marcado por uma revolução tecnológica e artística sem precedentes.   

Embora Blackmore afirme que os memes só apareceram no gênero Homo, outros autores admitem que outros grupos de animais também são capazes de aprender por mecanismos que até certo ponto independem do código genético, pois são baseados em informações externas, vindas do meio ambiente. É entre os humanos, porém, que as idéias, sobretudo as abstratas (como religião, ciência, política e outras), mais floresceram, e foram e são deixadas em veículos intencionais como livros, jornais, televisão, internet etc. 
  
O advento da agricultura talvez seja o complexo de idéias que mais alterou a civilização. Com a emergência da idéia de ‘plantar o que se vai comer’, o planejamento de curto e médio prazos passa a predominar sobre a prática de ‘coletar o que se encontra no caminho’. A produção deliberada torna a humanidade mais independente das incertezas das estações e de fenômenos naturais. A criação de animais também substitui a caça, ampliando essa liberdade. O biólogo evolucionista Jared Diamond, no livro Armas, germes e aço, publicado no Brasil em 2001, mostra como tais idéias nasceram. É óbvio que elas se fundam, de certo modo, na necessidade animal e humana de comer, se proteger e procurar parceiros e aliados, mas envolvem concepções abstratas de tempo e espaço que só estão disponíveis aos que têm uma linguagem articulada. 
  
O filósofo da ciência Karl Popper (1902-1994) escreveu que o cérebro faz a linguagem, que faz o cérebro, que faz a linguagem e assim por diante. Blackmore talvez gostasse de emendar dizendo que os cérebros inventam idéias e estas fazem os cérebros, e ambos são feitos pela linguagem, por sua vez produzida por cérebros e memes. Nesse intrincado jogo de relações, as idéias são seres com lógica própria, que evoluem, 
criados de maneira não intencional pelos humanos, ‘desenhados’ para se reproduzir usando esses processadores de informação, os cérebros. Compreender a força dessa entidade para o nosso mundo social e mental é o que pretendem muitos dos autores que têm escrito sobre o assunto. 
  
É necessário, porém, não transformar essa nova ciência das idéias em uma fórmula rápida para resolver o que quer que seja. Deve-se considerar o intrincado conflito de interesses entre o universo biológico dos genes, o mundo cultural dos memes, a esfera individual que cremos ser e a institucional que acreditamos participar e até criar. É preciso um movimento bastante contra-intuitivo para aceitar os argumentos mais importantes dessa teoria. Não devemos entretanto nos desencorajar. Isso talvez seja decorrente do fato de que a sociedade está absorvendo apenas lentamente os achados mais críticos da idéia descoberta por Darwin, a mudança permanente modelada pela força da seleção, seja ela natural, social ou cultural, sem que nenhuma força divina a anime.

 

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