Este bicho que pensa...

FERREIRA GULLAR,  Folha de São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005


FERREIRA GULLAR

Este bicho que pensa...

Heshu Yones, uma menina de 16 anos, nascida em Londres de família curda muçulmana, por ter se apaixonado por um jovem libanês contra a vontade da família, foi assassinada com 11 facadas pelo pai, que ainda lhe cortou a garganta. Esse crime brutal foi praticado em defesa da honra, conforme li num jornal. E li também que Rukhsana Naz, de 19 anos, grávida de sete meses de seu namorado de infância, foi morta pelo irmão -estrangulada com um fio de náilon- enquanto a mãe lhe segurava as pernas para que ela não se debatesse. Em defesa da honra. A mãe, enquanto ajudava o filho na sua macabra tarefa, chorava desesperadamente, mas nem por isso desistiu da decisão homicida. Gostaria de não ter que fazer aquilo, mas não podia deixar de fazê-lo. Um poder maior que seu amor de mãe a obrigava. Que poder é esse? O poder das idéias, dos valores culturais -sejam eles, religiosos, morais ou ideológicos- que regem a vida das pessoas. Por isso, creio não haver exagero em dizer que o homem, filho da natureza, é de fato um ser cultural que vive num mundo por ele inventado.

Fatos como esses deixam-nos chocados e perplexos, a nos perguntarmos como pode pai ou mãe trucidarem uma filha que foi por eles criada com amor e cuidados. Se já nos é difícil aceitar que uma pessoa mate a qualquer outra, mesmo não tendo com ela nenhum laço afetivo, como então entender que pais e mães pratiquem tais horrores? A razão desses homicídios é meramente intelectual; no caso, moral. A convicção de que o respeito à família, tal como eles o concebem, é intocável leva-os a crer que mais vale matar ou morrer do que viver na desonra. E tal é a sua convicção, o apego a esses valores, que não hesitam em praticar o pior de todos os crimes, que é tirar a vida a um ser humano nascido de sua própria carne e que neles encontrou a primeira manifestação de afeto.

Mas a convicção das pessoas sobre valores abstratos e idéias não as conduz sempre à tragédia e ao crime; pode conduzi-las também à prática da bondade e da solidariedade. Um exemplo admirável dessa entrega é o da madre Teresa de Calcutá, que, no entanto, acreditava no mesmo Deus cristão que o implacável Torquemada. Por isso, ao tomá-la como exemplo, não ignoramos que, à sua convicção cristã de doar-se aos desvalidos, juntava-se certamente um grande amor por seus semelhantes, que era coisa sua. É que, nos gestos extremos -sejam de amor ou de crueldade-, pesam sem dúvida também as características do indivíduo, que tende a levar suas convicções às últimas conseqüências, para o bem ou para o mal.

Os exemplos citados são expressão de concepções ético-religiosas fundadas em tradições seculares. Há casos, porém, ainda mais surpreendentes desse poder das idéias, pois não contam como lastro da tradição. Lembram-se da seita conhecida como Heaven's Gate, que afirmava ser o nosso corpo apenas um momento de passagem para o "supra-real"? Pois é. O profeta dessa tal seita juntou à sua volta dezenas de adeptos que foram todos viver numa casa na Califórnia, preparando-se espiritualmente para um dia passar desta para melhor, ou seja, para o paraíso. E esse dia chegou: deitaram-se todos em suas camas e tomaram uma droga em dose suficiente para morrer. Mais tarde, quando a polícia descobriu o que havia ocorrido, encontrou fitas de vídeo em que muitos deles se despediam deste mundo. Uma dessas fitas mostrava uma mocinha que se dirigia, sorridente, a seus pais: "Fiquem felizes por mim, pois estou a caminho do paraíso". Todos eles acreditavam que uma nave espacial os levaria ao mundo ideal.

Se aquela mocinha chegou ou não chegou ao paraíso, é impossível afirmar. De qualquer modo, impressiona-me esse poder que têm as idéias sobre a mente das pessoas, levando-as a se transportarem para um mundo imaginário, sem qualquer apoio na experiência objetiva e que, não obstante, para elas, é mais real do que a realidade.

Esses são casos extremos. Mas não resta dúvida de que, desde que surgiu neste planeta, o homem começou, tanto material como espiritualmente, a inventar o seu próprio mundo. Como nasceu incompleto -ao contrário do bisão ou do tigre-, teve que inventar a faca de sílex, o arco e a flecha para caçar e sobreviver. E também começou -ao contrário dos outros animais- a se perguntar por que existia e quem criara tudo aquilo que via em seu redor. De certo modo, a mesma pergunta que seria formulada pela cosmogonia do século 20: "Por que existe algo em vez de nada?". A verdade é que, do homo sapiens aos gregos, dos gregos aos filósofos modernos, o homem veio tecendo e entretecendo mitos, crenças e filosofias em função dos quais ele vive. Mas a verdade é que, de todas as idéias que o homem inventa, só se mantêm as que melhor se ajustam às suas necessidades e às condições do real. A propósito, lembro-me de um operário que, estudando comigo na Escola do Partido, em Moscou, aprendeu que, segundo o filósofo George Berkeley, o mundo material não existia.

- É que ele nunca manejou um torno mecânico- comentou o rapaz. Qualquer vacilo e a ferramenta decepava o dedo dele.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1206200528%2ehtm

home : : voltar