LIBERDADE VIGIADA
Folha de São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006
DANIEL BUARQUE DA REDAÇÃO

LIBERDADE VIGIADA
AUTORA DE UM POLÊMICO ARTIGO QUE ACABA DE SAIR NA REVISTA INGLESA "PROSPECT", ALISON WOLF DIZ QUE ABDICAR DA CARREIRA PROFISSIONAL E OPTAR PELA MATERNIDADE PODE SER UMA OPÇÃO MAIS FÁCIL PARA MULHERES COM BAIXO NÍVEL DE EDUCAÇÃO

Ao invés de se alinhar ao discurso feminista e comemorar a "conquista feminina" da igualdade no mercado de trabalho nas últimas décadas -exemplificada, no Brasil, pela eleiçãoe da ministra Ellen Gracie Northfleet, 58, à presidência do Supremo Tribunal Federal, do qual tomou posse interinamente na última quinta-feira-, a filósofa inglesa Alison Wolf, 55, diz que há sérias conseqüências negativas nessa mudança estrutural da sociedade, que ocorreu ao longo dos últimos 50 anos.

Para ela, essas transformações -que considera naturais no contexto econômico global- impuseram barreiras à maternidade, liqüidaram um sentimento altruísta que ela acredita ser inerente à feminilidade e extinguiram a "irmandade" que tornava as mulheres um grupo homogêneo.

Wolf alinhavou essas idéias em texto publicado na edição de abril da prestigiosa revista britânica "Prospect". Coroando a análise de inúmeras pesquisas que realizou nas últimas décadas, especialmente sobre a história do recrutamento da mão-de-obra feminina, o artigo, antecipado no site da publicação, provocou furor antes mesmo de a edição em papel chegar às bancas.

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As mulheres que escolherem ter filhos não poderão ser iguais
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Na entrevista abaixo, ela diz que o feminismo sempre foi um movimento "desonesto", que protegia apenas as mulheres da elite, e que chegou ao seu fim. Além disso, diz, o mundo atual inverteu a "ditadura" do passado, fazendo com que as mulheres (as instruídas, especialmente) não possam mais aceitar a idéia de cuidar da família e ter filhos. Para ela, a igualdade entre gêneros no mercado de trabalho só existe se as mulheres abrirem mão da maternidade.

Formada em filosofia e economia pela Universidade de Oxford, professora de administração do setor público no King's College, da Universidade de Londres, e especialista em administração e educação, Wolf acompanha desde o início da década de 80 as variações do mercado de trabalho para as mulheres.

Críticas à parte, Wolf diz que, na balança, a sociedade atual ainda sai ganhando na comparação entre as conseqüências positivas e negativas dessas mudanças. "Nem mesmo homens gostariam de voltar à situação que antecedeu a estrutura atual".

Mãe de três filhos e autora de "Does Education Matter? - Myths about Education and Economic Growth" [Educação Importa? - Mitos Sobre Educação e Crescimento Econômico], Wolf defende, no entanto, seu estatuto profissional: "A atividade acadêmica é menos valorizada no mercado de trabalho, mas ainda permite o reconhecimento público paralelo à preocupação com a família."

Folha - No artigo da "Prospect", a sra. discorda da afirmação -defendida por boa parte das feministas- de que as mulheres ainda não ocupam postos suficientemente altos no mercado de trabalho. Qual é a razão para sua discordância?

Alison Wolf - Muitas feministas ainda se encontram em campanha, afirmando que as mulheres não são bem tratadas o suficiente no mercado de trabalho, que têm mais dificuldade que os homens para progredir na carreira, que sofrem preconceito e nunca atingem os postos mais altos. Na verdade, isso é puro "nonsense", falta de perspectiva histórica.

É preciso entender que tudo o que as mulheres conquistaram no mercado de trabalho só teve início nos últimos 50 anos -e de forma progressiva. As pessoas que detêm os postos mais altos atualmente são as que estão na casa dos 50 anos e entraram no mercado de trabalho antes dessa abertura. Fazem parte de uma geração em que ainda havia poucas mulheres na universidade e no mercado.

Se olharmos a geração atualmente com 20 anos e imaginarmos como ela estará daqui a três décadas, podemos prever que, mesmo no postos mais altos das corporações, haverá tantas mulheres quanto homens.

 

 

Folha - E a sra. acha que, hoje, mulheres e homens são iguais no que diz respeito à renda?

Wolf - Não, não acho que sejam iguais. Acho que eles podem ser iguais, se as mulheres não tiverem filhos. As mulheres que escolherem ter filhos não poderão ser iguais.

 

 

Folha - Então o mercado continua a diferenciar por gênero?

Wolf - Acho que, se falamos de mulheres que não vão ganhar muito dinheiro de qualquer forma -as menos educadas, e não aquelas que terão chances de ter os melhores empregos- a escolha de ter filhos pode ser bem mais atrativa do que para aquelas mais bem preparadas, mais educadas.

Para as mulheres com menos oportunidades -por questões de educação-ter filhos pode ser uma opção melhor. O ponto é que, quanto mais capaz, mais competente for a mulher, mais difícil será para ela abandonar a carreira para ter filhos. E, se olharmos para mulheres na casa dos 30 anos que não têm filhos, no mercado de trabalho elas se colocam tão bem quanto os homens que têm a mesma preparação, a mesma capacidade e a mesma idade.

 

Folha - Nesse sentido, o feminismo teria ajudado a fazer com que, usando sua expressão, "as mulheres deixassem de existir como grupo homogêneo, tornando-se tão heterogêneo quanto os homens são"?

Wolf - Exatamente. Acho que o feminismo sempre foi um movimento desonesto. Ele se apresentava como um movimento que defendia o interesse de todas as mulheres, mas era apenas voltado a uma minoria de mulheres da elite, mas com um discurso de que todas as mulheres são iguais e querem as mesmas coisas. Acho que é um movimento que generaliza de uma perspectiva de mulheres midiáticas que defendem interesses privados como se fossem de todas as mulheres.

 

 

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O feminismo divulgou a idéia de que quem está fora do mercado de trabalho não tem valor
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E acho que o discurso do movimento se propagou de forma que apenas repetimos que as mulheres não têm o mesmo tratamento, não conseguem os melhores empregos e são discriminadas, e acabamos sem conseguir analisar o que realmente está acontecendo em torno de nós. O movimento faz com que tenhamos sérias dificuldades em aceitar esse lado negativo das conquistas.

As feministas são culpadas pelo fato de não reconhecermos o problema e por muitas pessoas se recusarem a ver que existem problemas.

Mas não acho que o feminismo tenha sido a única causa. A estrutura econômica tem uma parcela ainda maior de responsabilidade nisso.

 

Folha - A sra. acha que não ter filhos pode trazer frustração, no futuro, a essas mulheres hoje vistas como bem-sucedidas?

Wolf - Acho que algumas vão, sim, se arrepender, mas nem todas. Acho que as mulheres não têm uma necessidade incontrolável de ter filhos -ou todas as mulheres teriam mais filhos-, mas acho que as que têm estão felizes com eles.

Aquilo que me preocupa muito é o que vai acontecer com toda essa geração de mulheres que não têm filhos quando elas e os maridos envelhecerem. A família ainda é quem oferece os cuidados básicos às pessoas idosas. Se muitos casais não tiverem filhos, haverá uma mudança drástica na sociedade, com muitos idosos sem amparo familiar.

 

Folha - Se apontarmos o movimento feminista como responsável pela conquista da igualdade de condições no mercado de trabalho, também podemos dizer que ele é responsável por suas conseqüências negativas?

Wolf - Não tenho certeza de que podemos responsabilizar o movimento feminista. Sou marxista e acho que o feminismo teve muito impacto na forma como as pessoas acompanharam o debate da conquista de direitos às mulheres, mas penso que não foi ele que conquistou esses direitos.

O feminismo foi responsável por difundir essa visão de que apenas o trabalho importa e nada mais vale a pena. Mas acho que a causa dessas mudanças é a democracia, a igualdade, valores presentes na sociedade de forma bastante separada do feminismo. O feminismo divulgou a idéia de que quem está fora do mercado de trabalho não tem valor.

 

Folha - Mais associado ao capitalismo, então?

Wolf - Sim. Marx dizia que a religião era o ópio do povo, e, para ser realmente maldosa, eu poderia dizer que o feminismo, longe de ser uma luta pelos verdadeiros interesses das mulheres, seria uma ideologia que encoraja as mulheres a servirem ao capitalismo global, cuidando para que esse capitalismo tenha 100% dos melhores talentos em dedicação exclusiva, e não 50%.

 

Folha - Se a luta é apenas pelo mercado de trabalho, o movimento se esgota ao conquistá-lo?

Wolf - Acho que o feminismo acabou, na verdade. Ainda temos pessoas protestando de forma isolada. Há especialmente as mulheres feministas jornalistas que gostam de apontar casos de preconceito ou dificuldades no mercado de trabalho, mas o movimento chegou ao fim.

Tenho uma filha, e para a geração dela, além de não haver a prioridade em ter filhos, não existe nenhuma atualidade no feminismo.

 

Folha - Será que podemos esperar o surgimento de um feminismo às avessas, que defendesse o direito de a mulher ter e cuidar de seu filho sem ser vista como "desocupada"?

Wolf - Gostaria de pensar que sim. Chegaremos a um ponto em que a sociedade vai entrar em pânico pela nova conjuntura -isso não vai acontecer nos próximos 30 anos, entretanto. Há duas possibilidades. Nos EUA já há um certo contra-ataque por causa da religião evangélica, que valoriza isso, e a religião pode fundamentar essa volta a valores como a maternidade.

A outra opção, para a sociedade secular européia, seria uma mobilização das pessoas que sofrem com a conjuntura: as mulheres que não podem ter filhos sem abrir mão da carreira. Mas eu não esperaria um contrafeminismo no curto prazo, a não ser que tenha bases religiosas.

 

Folha - Quais são as conseqüências mais negativas dessa ascensão das mulheres no mercado de trabalho?

Wolf - A mais importante dessas conseqüências negativas é que o próprio processo de abertura de oportunidades no mercado de trabalho às mulheres impõe barreiras para as mais educadas, mais capazes e mais bem-sucedidas terem filhos. Há fortes razões que as levam a não ter filhos ou a ter apenas um, e isso nos encaminha a uma situação em que a grande maioria das crianças nascidas é filha de mulheres não-educadas ou das menos educadas.

As razões para isso são duas: em parte acontece porque a sociedade capitalista faz com que as pessoas recebam salários pelo seu trabalho, com benefícios para a saúde, pensões, seguridade social.

Então, se a pessoa trabalha, ela tem uma recompensa, mas entra em uma situação em que há um custo de oportunidade: deixar o trabalho para ter filhos se torna muito caro, porque a pessoa perde dinheiro, perde benefícios e, além disso, no momento em que deixa o mercado de trabalho, sua carreira se desintegra.

Um filho não é algo a que se possa dedicar meia hora por dia. Crianças demandam uma enorme quantidade de tempo e esforço, além de custarem muito.

Outro problema, outra desvantagem, escondida nessa conquista feminina é que, no passado, se as mulheres trabalhassem, trabalhariam em um número de atividades muito próximas às que teriam no papel de dona-de-casa. Os primeiros empregos das mulheres bem-educadas eram de professoras, enfermeiras, profissões relacionadas ao auxílio a outras pessoas.

A partir da minha área de pesquisa, percebo uma queda na qualidade do ensino. Uma vez que as mulheres mais bem preparadas deixam de valorizar a profissão de professora, por exemplo, e buscam algo que remunere melhor, deixam a função a uma maioria menos preparada.

O altruísmo feminino -essa crença construída em grande parte pela religião e segundo a qual as mulheres devem fazer o bem aos outros-está deixando de existir. Numa sociedade em que as pessoas são julgadas pelo sucesso profissional, essa alternativa é desvalorizada, e passa-se a achar que ocupações que fazem bem ao próximo são coisa de quem não tem "nada melhor para fazer". "Melhor" passa a ser equivalente a ter um emprego bem remunerado, à ascensão profissional.

 

Folha - A "ditadura" se inverteu, então? Antes, a entrada no mercado era barrada às mulheres, hoje lhes é exigido que façam parte dele, ainda que em detrimento da família e de atividades altruístas?

Wolf - Exato. Substituímos um padrão de normas sociais opressivas por um outro, regulado pela economia de mercado. As mulheres educadas de hoje em dia não têm permissão para pensar que ter uma carreira sólida e bem-sucedida não seja o objetivo da vida.

Economicamente, à medida que mais famílias passam a sobreviver à base de duas fontes de renda, torna-se mais difícil para elas a construção de uma vida confortável com apenas uma fonte de renda, com uma das pessoas se dedicando mais à casa. Hoje as pessoas se sentem desvalorizadas se não trabalham, e a estrutura torna a conquista da qualidade de vida muito difícil para famílias em que apenas uma das pessoas trabalha, a não ser que essa pessoa realmente seja muito bem paga.

 

Folha - Mas então qual é a novidade? Pois ter filhos sempre representou um custo alto para as famílias.

Wolf - O custo de um filho é realmente muito alto, mas a diferença é que no passado o tempo das pessoas não tinha um valor tão alto.

Além disso, o mercado era fechado às mulheres, e a sociedade era construída à base de uma única fonte de renda por família.

 

Folha - Esse padrão que a sra. aponta é específico da Inglaterra e dos países desenvolvidos ou é comum a todo o mundo?

Wolf - O padrão de mulheres com educação terem cada vez menos filhos é comum em toda a parte, é endêmico ao mundo que tem a idéia de progresso que temos na sociedade ocidental. Acho que em todos os países do mundo ocidental temos essa idéia de que o valor da pessoa é dado pelo sucesso profissional e pela idéia de que buscar alternativas é "não ter nada melhor para fazer". Não tenho dados estatísticos relacionados à América Latina, mas ficaria muito surpresa se fosse diferente e os valores não seguissem o mesmo padrão.

O fato de o altruísmo e a valorização moral de atividades que faziam o bem a outras pessoas passarem a ser desvalorizados também é comum a todo o mundo cristão ocidental. Mas não sei se essa análise é aplicável à China ou ao Japão, por exemplo.

 

Folha - Se fôssemos calcular o lado positivo e o negativo das conquistas de igualdade de trabalho das mulheres, você diria que estamos com crédito ou em débito?

Wolf - Acho que para toda a sociedade há crédito, e nem mesmo os homens gostariam de voltar à situação que antecedeu a estrutura atual. Mas acho que nossos descendentes podem vir a pensar que os deixamos em débito. Nossa geração, nascida nos anos 50, é a que mais saiu ganhando. Tenho três filhos (18, 25 e 27 anos) e consegui conciliar o trabalho acadêmico com a maternidade, mas acho que, para eles, isso não foi bom, como família. Além disso, o cenário para eles é menos promissor a esse tipo de conciliação.

Folha - A sra. acha que a abordagem da questão do gênero precisa mudar?

Wolf - Na Inglaterra temos discussões intermináveis sobre questões como "as mulheres não são tão bem pagas como os homens", "as mulheres sofrem preconceito", "mulheres precisam batalhar para voltar a trabalhar depois de ter filhos", e torna-se "óbvio e evidente" [irônica] que o "único" problema é a falta de creches para ajudar as mães a trabalhar, que os empregadores não são "bons" o suficiente para as mães.

O argumento que apresento é que há problemas estruturais e inerentes à situação atual. Eu digo que é estúpido se referir às mulheres como se elas fossem todas iguais -ninguém se refere aos homens como se eles fossem todos iguais.

Longe de formarem um grupo homogêneo, as mulheres se dividem em dois grupos de forma dramática: as educadas, que buscam uma carreira em detrimento da dedicação à família, e as não-educadas, que se dedicam à família por falta de opção.

 

Folha - É natural essa evolução das exigências no que diz respeito às mulheres ou deveríamos esperar que elas ainda se sentissem realizadas ao ficarem em casa cuidando dos filhos?

Wolf - É completamente natural na sociedade atual, é endêmico. As pessoas odeiam pensar que há problemas que não podem ser resolvidos com uma ou duas sacadas inteligentes do governo.

Acho que é um desenvolvimento natural para algo que é muito importante para a sociedade. Não quero voltar no tempo, à época em que mulheres não tinham oportunidades. A partir do momento em que as mulheres são tratadas como cidadãs iguais, isso acontece inevitavelmente e não pode ser revertido.

Se tivesse que especular, diria que talvez algumas mulheres sejam geneticamente mais propensas à idéia de ter filhos de que outras. Talvez depois de algumas gerações passemos a ter mais mulheres que queiram ficar em casa e ter filhos em detrimento de uma carreira.

Na verdade, acho que realmente temos, como contrapartida natural da democracia, liberdade e igualdade de oportunidades, uma situação em que, quanto mais capaz e mais educada uma mulher for, menos propensa a ter filhos ela se tornará.

E isso não é algo que possa ser resolvido apenas com medidas regulamentares, de direitos a licença-maternidade ou garantia de emprego; é algo que está imbuído na mentalidade social.

 

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Onde ler
O texto de Alison Wolf publicado na "Prospect" pode ser lido no endereço www.prospect-magazine.co.uk

Veja também:
http://www.genismo.com/genismotexto18.htm

 

 

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