DOS GENES AOS MEMES: A EMERGÊNCIA DO REPLICADOR CULTURAL

Ricardo Waizbort

Episteme, Porto Alegre, n. 16, p. 23-44, jan./jun. 2003.

* RESUMO O objetivo desse trabalho é introduzir a memética, as investigações sobre os memes, unidades culturais de imitação que pretensamente são os átomos da cultura e da história. Partindo de uma analogia com a teoria do gene como nível fundamental de seleção, popularizada como a teoria do gene egoísta, a memética pretende propor modelos explicativos que podem ser úteis para compreender a importância das idéias para as vidas humanas, para as sociedades, para as instituições e suas crises. As idéias, as informações veiculadas por todas as mídias da cultura, seriam replicadores que usam o cérebro humano para se perpetuarem. Embora essa teoria esteja sob intenso criticismo um número crescente de artigos têm aparecido assim como livros que tratam mais sistematicamente do assunto.

Palavras-chave: Gene, meme, evolução cultural, neodarwinismo, Filosofia da Biologia.

FROM GENES TO MEMES: THE EMERGENCE OFTHE CULTURALREPLICATOR

The aim of this work is to introduce memetics, researches about memes. Memes are units of cultural imitation, presumably the cultural and historical atoms. Departing from an analogy with the theory of gene as the fundamental level of selection, memetics intends to propose models to comprehend the very importance of ideas to human lives, societies, institutions and their crises. The ideas, the informations transmitted by all cultural midias, would be replicators using human brain to perpetuate themselves. Although such theory is under a rigorous criticism, a growing number of papers has appeared as well as books treating more systematically this issue.

Key words: Gene, meme, cultural evolution, neodarwinism, Philosophy of Biology. *

FIOCRUZ – Casa de Oswaldo Cruz; Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde. E-mail: ricw@coc.fiocruz.br

E dizei-me agora, Musas, habitantes do Olimpo – pois sedes, vós, deusas, presentes por toda parte, e conheceis tudo; não ouvimos mais que um ruído, e nós nada sabemos (...) A multidão, não poderia eu enumerá-la, nem denominá-la, mesma que tivesse dez línguas, dez bocas e um coração incansável, um coração de bronze em meu peito... Ilíada de Homero apud Detiene, 1988, p. 15.

A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas. Carlos Drummond de Andrade, 1979, p. 199.

 


INTRODUÇÃO

Para o darwinismo clássico os indivíduos são centrais e os alvos da seleção natural. Cada indivíduo luta para sobreviver e se reproduzir, a despeito de qualquer consideração de ordem ética ou moral. Indivíduos aqui não devem ser considerados, necessariamente, como humanos, mas os organismos que constituem as populações de inúmeras espécies que habitam a Terra. Durante o século XX, até meados da década de 1960, uma doutrina centrada na seleção de grupos, e não de indivíduos isolados, ganhou espaço considerável em livros, artigos e instituições científicas. Seus defensores julgavam que o nível mais importante sobre o qual agia a seleção natural era o grupo ou a espécie. Nesse contexto o altruísmo, por exemplo, era explicado como o sacrifício do indivíduo para o bem da espécie.

O advento da genética em princípios do século XX e o seu fantástico desenvolvimento, a síntese entre a genética e a teoria da evolução, em fins da década de 1930, as novas descobertas da biologia molecular a partir de 1953, instigaram os cientistas a compreender, a partir de meados da década de 1960, que o nível mais profundo em que a seleção natural age, não é nem os indivíduos ou as espécies, mas os genes, na verdade, a informação contida nos genes.

Animais e plantas são veículos para os genes, replicadores biológicos, cuja informação está sendo transmitida, em muitos casos, por bilhões de anos. Assim, os genes são replicadores biológicos. Um replicador é uma entidade que, dadas certas condições, intermedia a produção de cópias de si mesmo. Os memes, as idéias, seriam replicadores de uma natureza diferente. A informação de que são feitos não está inscrita em fitas de DNA, mas em substâncias muito mais tênues. As idéias são transmitidas por muitos veículos, muitas mídias. A linguagem falada no dia a dia, os rádios, os telefones, os jornais, os livros, os discos, são veículos de informações que se propagam cada vez mais rápido. O programa de pesquisa dos memes propõe que se pode tratar as idéias, e a cultura como um todo, como um processo de replicação análogo ao que mantém os genes nas populações biológicas.

Na parte seguinte desse trabalho (I – A idéia egoísta) vou apresentar o programa de pesquisas dos memes focando três de seus proponentes mais importantes: Richard Dawkins, Daniel Dennett e Susan Blackmore.

Naturalmente, não vou apresentar os autores em si mesmos, mas obras suas que veicularam, por sua vez, a própria idéia dos memes. A memética, como a chamam seus adeptos, pretende estar de acordo com aquilo que Dennett e Blackmore denominam “darwinismo universal”. Partindo da concepção de que as idéias são replicadores, sua evolução poderia ser investigada com o algoritmo darwinista da herança com variação submetida à seleção natural. Discutirei sumariamente a concepção darwinista de evolução por seleção natural na parte II desse trabalho.

Na parte III, introduzo a teoria do gene egoísta por que é sobre ela que o programa de pesquisa dos memes está edificada. Adianto, todavia, que a analogia entre replicadores biológicos e culturais, não está estruturada para aprisionar a cultura no aparato teórico da genética evolutiva, mas para utilizar esse aparato tentando conjecturar um modelo que pudesse tratar empiricamente dos fenômenos da transmissão cultural.

É claro que o fenômeno da cultura é extremamente complexo e seria uma ingenuidade sem tamanho pretender que uma simples idéia desse conta de um problema que tradições de filósofos, sociólogos, historiadores, antropólogos, entre outros, vêem enfrentando desde muitas gerações. Mas a ambição do programa de pesquisa dos memes é essa mesma. Explicar a evolução do homem, o rápido crescimento de seu cérebro, a emergência de organizações sociais mais sofisticadas que a exigida pela coleta e pela caça, e depois pela a agricultura, a emergência das cidades e suas leis e instituições, baseando-se na concepção de que as idéias são personagens que devem ser tomados em toda sua capacidade de dirigir as estruturas psicológi-cas e os comportamentos humanos. Apresentarei a origem do homem, de um pontodevista memético, na parte IV desse trabalho. Concluirei então essa primeira aproximação ao universo dos memes no sentido de indicar algumas críticas e al-guns caminhos promissores para esse programa de pesquisa.

I. A IDÉIA EGOÍSTA

Em The meme machine, publicado nos EUA em 1999, Susan Blackmore defendeu que a história evolutiva do homem tem sido perversamente guiada pela lógica de unidades culturais de imitação chamadas memes. Basicamente, memes são idéias, informações, que se reproduzem de mente para mente, de ser humano para ser humano: memes são “instruções para realizar comporta-mentos, estocadas no cérebro (ou em outros objetos), e passada adiante por imitação” (Blackmore, 1999, p. 43). Na verdade, segundo a autora, nós, seres humanos, e nossos cérebros, seríamos máquinas de reprodução de idéias. O mecanismo para essa reprodução de idéias seria a imitação mais especifi-camente a aprendizagem.

Não era a primeira vez que o mundo dos conceitos e de sua multiplicação procuravam insidiosamente tomar as rédeas da história do homem. O filósofo da mente Daniel Dennett já afirmara anteriormente que a evolução biológica de todos os seres vivos, incluindo o homem, poderia ser interpretada como um processo algorítmico, no qual os elementos fundamentais seriam a heredita-riedade (genes), a variação (mutação) e a seleção natural (reprodução dife-rencial) (Dennett, 1990, 1998; Runcinan, 1998). Para Dennett, os genes são replicadores genéticos que existem há bilhões de anos e nós, criaturas feitas basicamente de proteínas, somos suas máquinas de sobrevivência, formas pelas quais os genes mantêm íntegro o significado de suas mensagens por um tempo, não raro, milhares de vezes maior do que a duração de uma vida humana e mesmo de toda uma espécie e a humanidade. Entretanto, no caso específico do Homo sapiens, um segundo tipo de replicador, os memes, teriam sido co-responsáveis não só pelo crescimento do cérebro e pela indústria de ferramentas, mas também fundamentalmente pelo que chamamos de cultura e sociedade. Exemplos de memes ou “unidades memoráveis distintas” são: arco, roda, vestir roupas, vingança, triângulo retângulo, alfabeto, a Odisséia, cálculo, xadrez, desenho em perspectiva, evolução pela seleção natural, impressionismo, Greensleeves, desconstrutivismo (Dennett, 1998, p. 358).

Como os genes, os memes poderiam ser compreendidos se prestarmos atenção: 1) ao processo hereditário pela qual as informações culturais se reproduzem em populações de cérebros humanos (horizontal e verticalmente), 2) ao processo que faz com que as informações culturais variem, e 3) ao processo de seleção de informações culturais, dado o número limitado de cérebros e uma virtual infinidade de idéias, fragmentos de idéias e complexos de idéias no pool de idéias.

Quase vinte anos antes de Dennett, em 1976, Richard Dawkins defendeu pela primeira vez essa estranha idéia: [O meme é] uma unidade de transmissão cultural, ou unidade de imitação. “Mimeme” vem da raiz grega adequada, mas quero um termo que soe mais como “gene”...Também se pode pensar que ele está relacionado com “memória” ou com a palavra même, do francês...

Exemplos de memes são melodias, idéias, expressões, estilos de roupa, maneiras de fazer potes ou construir arcos. Assim como os genes se propagavam no pool gênico saltando de corpo em corpo via espermas ou óvulos, os memes se propagam no pool memético saltando de cérebro em cérebro por um processo que, no sentido mais amplo, pode ser chamado de imitação. Se um cientista ouve falar ou lê a respeito de uma idéia, ele a transmite para seus colegas e alunos. Ele a menciona em seus artigos e palestras. Se a idéia for bem sucedida, pode-se dizer que ela se propaga, espalhando-se de cérebro em cérebro (Dawkins, 1979, p. 214).

A teoria dos memes defende que as estruturas lingüísticas e ideológicas criadas, intencionalmente ou não, pelos homens possuem uma certa autonomia e evoluem segundo modos talvez análogos às espécies de seres vivos na natureza. Karl Raimund Popper (1902-1994) pode ser arrolado como um ilustre precursor dessa teoria. O epistemólogo de Viena pensou resolver o dilema filosófico da dualidade mente-corpo com a introdução do mundo da cultura ou da linguagem, o mundo 3, em uma tradição metafísica marcada pelo dualismo mente-corpo herdado desde Descartes. Popper assinalou que os filósofos costumam associar o conhecimento a disposições mentais para acreditar. O conhecimento humano é considerado normalmente como subjetivo, no sentido de que ele depende, de uma forma ou outra, das mentes humanas. Popper sugere que o contato entre os irredutíveis mundos dos corpos físicos (mundo 1) e das mentes (mundo 2) só pode ocorrer se mediado pelos habitantes do mundo 3, estruturas de linguagem (Popper, 1975, p. 164; 1982, p. 325). Idéias e fragmentos de idéias, instituições como o Estado, a Igreja, a Escola, o Clube, assim como projetos escritos, poemas, programas de tevê, conversas na rua ou no telefone, fazem parte de um mundo que, para ser compreendido, não deveria ser reduzido nem meramente ao mundo físico nem tampouco ao mental.

Seguindo por essa via, que Popper de certa forma percorre quando defende a idéia de conhecimento sem sujeito conhecedor, acabaríamos certamente, como ele mesmo, na trilha de Platão, e a mais influente de todas as idéias do Ocidente: a teoria das Formas ou das Idéias.

Não é o nosso objetivo contar uma história da teoria da autonomia das idéias ou da cultura, mas apresentar como ela se atualiza hoje, tendo como fundamento a biologia evolutiva. A capacidade de imitação que nos é inerente, que um grande cérebro genético e cultural nos proporciona, favorece que as idéias se frutifiquem e como conseqüência de sua multiplicação, elas como que lutam para ocupar espaço em nosso cérebro. Algumas dessas idéias se transmitem no tempo com o passar das gerações humanas. Outras duram muito menos do que sete minutos ou do que um sonho. O objetivo desse trabalho é apresentar alguns dos pilares sobre os quais se assenta tal teoria da evolução dos replicadores culturais.

II. DARWINISMO

A analogia entre a evolução biológica e as transformações culturais exerce um papel radical na teoria dos memes. Eu compreendo que a analogia entre o gene e o meme é um caso do que Michael Ruse (1995)chamaria de “analogia como heurística”, e não “analogia como justificação”. Simplificando um pouco, na analogia como justificação busca-se uma comparação entre duas entidades diferentes tentado alcançar a conclusão de que na verdade os dois entes são idênticos. No primeiro caso, ao contrário, a analogia tem uma função de prover uma base de comparação sobre a qual se poderia erguer um sem número de questões construtivas (Ruse, 1995). Assim, comparam-se genes e memes, biologia e cultura, não para dizer que são a mesma coisa (ou mesmo parte de um só processo), mas para estudar se as modificações ocorridas no mundo dos seres vivos pode contribuir para lançar luz no que acontece no mundo das idéias e das linguagens, e se ambos obedecem a um mesmo ou diferente padrão evolutivo, quer dizer, histórico.

Como é sabido, a evolução biológica foi tratada pela primeira vez, de forma sistemática, por Charles Darwin, que concebia a hereditariedade, a variação e a seleção natural como os elementos básicos a partir dos quais as espécies se originavam. Dois problemas fundamentais de Darwin eram explicar como as espécies se multiplicavam na natureza e de que forma suas estruturas pareciam perfeitamente adaptadas às funções que exerciam. A modernidade e a genialidade de Darwin residem em afirmar, baseado em um sem número de evidências paleontológicas, anatômicas, fisiológicas, geográficas, embrioló-gicas, psicológicas, etológicas, que o homem, tal qual todos os outros seres vivos, é o produto (nunca acabado ou final) de interações complexas entre indivíduos, populações, espécies e seus respectivos ambientes. Ambiente aqui entendido tanto como o ambiente físico de uma floresta – por exemplo, seu regime de chuvas, a intensidade variável dos seus ventos, a radiação que recebe do sol, entre muitos outros fatores de vários níveis diferentes. E, ambiente compreendido, ao mesmo tempo, como os inúmeros outros organismos da mesma espécie em questão, assim como incontáveis outros indivíduos de outras espécies, próximas e distantes, com o qual necessariamente dividimos e disputamos o ambiente, e sem os quais não seríamos vivos.

A teoria da evolução de Darwin não propõe um progresso ou melhoria inexorável da vida, mas assevera que a vida, dadas as condições encontradas neste planeta, tende a se diversificar e, se as condições ambientais se mantêm mais ou menos constantes, determinados progressos locais, no espaço e no tempo, podem ser observados, as adaptações. Pensadores que viveram muito tempo antes de Darwin, como Aristóteles por exemplo, já reconheciam a existência de diversos tipos diferentes de seres vivos e de suas fantásticas estruturas “perfeitamente” adaptadas. Foi Darwin, no entanto, que sistematizou um argumento a favor de uma tendência natural à emergência sempre renovada de espécies, a transformação natural de uma espécie em outra(s), a extinção das espécies e o processo lento e gradual pelo qual as estruturas se adaptam às condições locais (históricas) de vida.

A teoria de Darwin sofreu e ainda sofre muitas críticas, mesmo dentro da Biologia. Desconfio, no entanto, que a maior parte dessas críticas provenha daqueles que gostariam de crer, de uma forma ou de outra, que o homem é um ser vivo especial. Eu gostaria de seguir aqui a sugestão de filósofos e cientistas que lidam com a teoria da evolução, dizendo que para ser interpretada corretamente, tal teoria deve ser dividida em duas partes distintas e comple-mentares: por um lado, há o fato da evolução, com o qual concordam todos os biólogos e filósofos que se interessaram pelo assunto, a constatação de que a vida na Terra se transformou muito desde suas origens até hoje; por outro lado, há uma disputa sobre a causa ou as causas dessa transformação. (Entre as duas ainda há uma terceira margem: os caminhos específicos que a história da vida seguiu, a história particular de cada grupo taxonômico, assim como o caminho tomada pela articulação dos grupos ou mesmo da vida como um todo) (ver Mayr, 1998; Ruse, 1995; Bowler, 1989).

1 Presentemente se tem questionado com êxito essa mudança lenta e gradual. Isso em absoluto não fere a capacidade explicativa do princípio da evolução por seleção natural.

Darwin defendeu que a mudança evolutiva era ocasionada pela existência de variações espontâneas e herdáveis que ocorriam entre os indivíduos dentro das populações naturais (Darwin, 1985, p. 78), variação essa que seria, com o passar do tempo geológico, modelada ou dirigida pela seleção natural. A seleção natural é um processo que tende a preservar, dentro de uma população, os indivíduos que possuem variações que lhes são úteis, conferindo-lhes alguma vantagem, mesmo que pequena, sobre os demais da mesma espécie. Tais tendências podem ser revertidas se as condições ambientais (históricas) se alterarem muito: uma estrutura favorecida hoje pela seleção pode amanhã não mais ser útil, assim como uma estrutura inútil hoje pode quedar-se proveitosa em circunstâncias posteriores.

Toda discussão séria dentro da Biologia reconhece que outros fatores, além da seleção natural, interferem na evolução, como o acaso das grandes catástrofes seguida pela deriva dos genes, o efeito do fundador. Assim, também, nem todas as características são úteis ou degeneradas – elas podem ser neutras.

Além disso, existem processos naturais, como a aprendizagem, que podem acelerar ou frear a evolução. Entretanto, não se nega que a seleção natural seja um processo muito importante no desenho e no comportamento de todos os seres. Não existem aves com escamas e nadadeiras, ou peixes com penas e asas por acaso, mas porque certamente a seleção natural aproveitou outras estruturas mais antigas e proveu os peixes de sua indumentária marinha e as aves de sua roupagem aérea.

 

III. GENES EGOÍSTAS

Mais especificamente, a teoria dos memes está baseada em uma analogia com a teoria do gene egoísta popularizada por Richard Dawkins. A teoria do gene egoísta concebe todos os seres vivos como máquinas de sobrevivência para replicadores biológicos (Williams, 1966; Dawkins, 1979; Dennett 1998; Blackmore, 1999; Nesse, 1997; Ridley, 2000). Por sua vez, replicadores são entidades químicas reais (filosoficamente falando são particulares). Esses replicadores são entes capazes de servirem de modelo para a produção de novos replicadores. O replicador biológico universalmente disseminado hoje pela maioria esmagadora das espécies de seres vivos é o gene. O gene é um fragmento de DNA que basicamente expressa moléculas específicas de uma certa proteína. Tal expressão é mediada por outra molécula, o RNA.

Um tigre pode ser reproduzido para a geração seguinte porque as informações para formá-lo são veiculadas pelas células gaméticas de seus progenitores sob a forma de genes (contidos nos cromossomos). Basicamente um gene faz duas coisas fundamentais: ele possui a capacidade de se auto-replicar; mas ele também serve de instrução ou receita química para a síntese de proteínas. Segundo Dawkins e outros cientistas, os replicadores emergiram espontaneamente na Terra, sem interferência sobrenatural alguma, após centenas de milhões de anos de evolução pré-biótica (Dawkins, 1979; Orgel, 1988). Evolução aqui significa, usando esse conceito de uma forma bastante relaxada, transformação, mudança, que, como já foi indicado, não precisa ser necessariamente progressiva. Mas Dawkins supõe que os replicadores primitivos não eram todos iguais, ou seja, eles variavam. Para a teoria dos genes egoístas, a variação que existia entre os replicadores primitivos foi a matéria prima fundamental sobre a qual se arvoraria toda a diversidade futura. A seleção natural não cria a variação. A variação é o resultado de um processo de cópia que embora muito sofisticado não é perfeito. Erros ocorrem. Dado o número incalculável de vezes em que acontece a replicação do material genético, pequenas imperfeições podem resultar em grandes estruturas, se tais imperfeições na verdade favorecem aqueles que a possuem. A seleção natural seria a única causa direcional da evolução. É ela que possibilita o aperfeiçoamento de uma estrutura, sua adaptação ao ambiente. É a seleção natural que dirige formas e comportamentos. Todavia, essa direção não é rigidamente dirigida, nem aprioristicamente dada, uma vez que as vicissitudes da história de cada indivíduo interagem com a expressão do programa genético.

Para compreender como um peixe parece ser feito para o ambiente marinho é necessário saber que escamas, nadadeiras, guelras, espinhas, olhos e outros órgãos externos e internos são exemplos de estruturas que são passadas adiante, geração após geração, por instruções químicas codificadas nos genes.

No meu modo de compreender, a teoria do gene egoísta, divulgada e ampliada por Richard Dawkins, é a mais nova interpretação (criticada e corrigida) da idéia de Darwin traduzida em termos moleculares. Embora acusado de reducionismo, O gene egoísta é, na minha opinião, um alerta contra a auto-ilusão humana e obteve retorno de outros filósofos e cientistas que, desde então, buscam criticar e aperfeiçoar a teoria em vários campos chegando à teoria moral e à teoria econômica (Wright 1996, Ridley, 2000)

O gene egoísta é um livro de divulgação científica de alto nível. Dawkins apresenta a idéia de Williams, Hamilton e Trivers: a seleção age principalmente a favor do gene, não da espécie ou do indivíduo (Dawkins, 1979, p. 18; Dennett, 1998, p. 502; Blackmore, 1999; Ridley, 2000). Ocorre que o livro discorre vasta e repetidamente que um gene isolado jamais confere de imediato uma característica fenotípica (estrutural ou comportamental). As garras de uma águia não são o produto de um gene (não há um gene para formar garras), mas suas unhas transformadas em lâminas de matar, seus ossos resistentes ao peso das presas, o sangue que alimenta essas estruturas, são feitos basicamente de proteínas e essas são produtos ou expressões de genes. Logo, entre o conjunto de genes de um indivíduo (seu genótipo) e sua expressão perceptível (seu fenótipo) ocorre uma longa e complexa via de interações entre vários níveis de organização, desde o nível molecular dos genes e proteínas até o nível dos grandes sistemas (respiratório, nervoso, digestivo, muscular, excretor), todos integrados em intrigantes e intricadas histórias embriogenéticas, ontogenéticas e filogenéticas. Tais considerações têm sido negligenciadas e é comum que se critique o livro de Dawkins como se ele omitisse os problemas do desen-volvimento e da integração.

Controvertida como é, a teoria do gene egoísta ganhou logo inúmeros inimigos que acusam Dawkins de oferecer uma base molecular para os abusos da sociobiologia, ajudando a aclamar o império egoísta dos genes, justificando biologicamente os comportamentos humanos mais bárbaros, predatórios, violentos e machistas. Mas, ao meu modo de ver, ao contrário, Dawkins procura divulgar a idéia de que muitos comportamentos dentro do mundo animal, (o egoísmo, o altruísmo, o cooperativismo) podem ser melhor compreendidos se admitirmos que os indivíduos e as espécies são como que um campo de batalha onde os genes lutam para serem representados nas gerações subseqüentes.

Para Dawkins, somos máquinas de sobrevivência dos replicadores biológicos como as algas, os protozoários, os macacos, as samambaias, as formigas, os tubarões e um número realmente fantástico de criaturas diferentes, de espécies distintas. Seríamos máquinas de sobrevivência no sentido de que não fomos nós que criamos nosso corpo: o coração, as pernas, os rins sabem se fazer a si mesmo. Como? Através justamente da informação contida nos replicadores biológicos modernos, os genes, informações químicas para construir moléculas químicas de outra classe, as proteínas, da qual todos nós somos essencialmente formados, materialmente feitos. Logo, a informação pela qual a vida é mantida através das gerações está codificada nos genes.

 

Uma das questões mais importantes dessa controvérsia repousa no problema de explicar a cooperação e o altruísmo. Esse é um dos grandes entraves da teoria de Darwin: em um mundo onde a competição sobretudo dentro de cada espécie tem uma importância fundamental, como explicar que principalmente entre seres humanos, mas não somente entre eles, observa-se indivíduos sacrificando-se por outros indivíduos, às vezes ao custo da própria vida? Como explicar o comportamento cooperativo? A interpretação tradicional diz que os indivíduos se sacrificavam para o bem do grupo ou da espécie. Dawkins argumenta que os indivíduos se sacrificam por causa dos seus genes. Infelizmente, dadas as restrições de espaço, esse problema não será discutido no presente trabalho.

Ocorre que não basta fabricar proteínas. É necessário que um imenso número de proteínas diferentes sejam alocadas precisamente no espaço e no tempo desejados em um corpo em construção que, grosso modo, se modifica continuamente. Antes de tudo, é preciso que todas as informações necessárias para construir um corpo, quer seja de um sapo, de uma borboleta, de uma mangueira, de uma lontra ou de uma top model devam estar nessa única célula que resulta do encontro dos materiais genéticos contidos nos gametas, masculino e feminino, dos progenitores. No interior dessa primeira célula, a célula-ovo, estão contidas todas as informações necessárias para formar as proteínas que, através de um longo e intrincado processo de desenvolvimento, resultarão em um organismo adulto.

Todavia, a mera informação para produzir proteínas ainda não é suficiente para explicar como se dá a integração e a regulação desse complexo proteico de estruturas e comportamentos tão bizarros e maravilhosos. Os rins são feitos de células e proteínas muitas das quais estão especificamente presentes apenas nos rins. O mesmo ocorre com os outros tecidos e órgãos. Se todas essas estruturas derivam por divisão celular de uma mesma célula primordial, todas as células possuem todos os genes para produzir um organismo inteiro. Células renais só produzem substâncias e estruturas típicas de células renais enquanto outras substâncias e estruturas permanecem “desligadas” ou “adormecidas”.

Além disso, no desenvolvimento que vai do ovo ao organismo adulto é necessário que os rins (suas células e tecidos) migrem para uma região exata do corpo que se forma, e o mesmo vale para as outras estruturas que compõem o corpo. Para que a organização seja reproduzida é necessário que haja outras tantas estruturas que inspecionem e regulem rigorosamente a construção do edifício vivo e outras talvez responsáveis pela integração e regulação dessas dinâmicas populações de células.

Assim, não se pode explicar o temperamento agressivo de um leão dizendo que ele é causado por um gene que produz uma proteína que confere a agressi-vidade. Isso seria obviamente um absurdo. É razoável, no entanto, imaginar que a ferocidade dos felinos é uma função da interação entre a informação genética que cada indivíduo dessa espécie herda de seus progenitores e as condições ambientais historicamente determinadas. O que os animais herdam não é a ferocidade em si, mas replicadores que são também informações para estruturar proteínas que, no ambiente selvagem, conferem o comportamento que consideramos agressivo. Os felinos herdam de seus ascendentes os genes que codificam proteínas que formarão dentes, garras, olhos, músculos, jubas.

As proteínas são a base material de tudo que existe. Células são formadas de proteínas e possuem matrizes, interna e externa, constituídas basicamente por proteínas. Tecidos, órgãos, sistemas, o organismo inteiro, todos devemos nossa aparência à presença (ou à ausência) de determinadas proteínas na nossa constituição física. Moléculas químicas diferentes também são importantes para que a vida se mantenha e se perpetue, sobretudo a água, o oxigênio, as gorduras, os próprios ácidos nucleicos que constituem os genes. Mas as proteínas são as substâncias das quais nós somos feitos. Ocorre que proteínas são expressões de genes, e que as relações entre os genes e a sua expressão fenotípica são fundamentais para compreender a história das transformações dos seres vivos.

A interação entre o ambiente (físico, químico, ecológico) e os genes é muito complicada. Podemos presumir que todos os seres vivos são modelados pela seleção natural para viverem em um planeta que possui uma certa atração gravitacional, uma certa incidência de luz solar, uma certa intensidade de outras radiações, uma certa umidade, ou seja: temos recursos e limites. Alteradas algumas ou muitas de tais condições físicas, estruturas de seres vivos que até então eram favorecidas pela seleção natural, podem deixar de sê-las. A seleção não é necessariamente inteligente, e ela pode ser verdadeiramente estúpida. A seleção natural, como costumam repetir os biólogos darwinistas, é oportunista e imediatista. Ela não pode prever o que os organismos precisarão no futuro, próximo ou distante, mas é como que uma aposta de que as condições de vida do presente não irão se alterar drasticamente no futuro. Se o sol se apagasse amanhã para sempre as plantas verdes não mais poderiam fazer fotossíntese e suas estruturas altamente complexas quedariam inúteis. As plantas não se reproduziriam normalmente em um cenário em que fosse noite para sempre. Haveria vida? Certamente por mais um tempo. Quanto? Não creio que ninguém nunca tenha se preocupado com tal cálculo.

O que nos importa, na verdade, é que, na teoria do gene egoísta, são os genes (os genótipos expressos em fenótipos, isto é, os genes traduzidos em estruturas e comportamentos) que são os mais favorecidos pela seleção natural.

Os genes, em realidade as informações codificadas por suas cópias, são as entidades que se perpetuam através do tempo, e não populações, grupos ou mesmo os indivíduos. Um indivíduo pode deixar uma prole numerosa para as gerações seguintes, mas ele mesmo tem um período determinado de vida, findo o qual desaparece para sempre. Populações e espécies possuem uma longe-vidade bem maior do que os indivíduos, mas elas mesmas não podem se perpetuar sem se alterarem dramaticamente, e sem finalmente perecerem.

Por outro lado, existem muitos genes que se encontram praticamente inalterados tanto no reino animal, quanto no vegetal. Um exemplo é o gene que produz a proteína chamada citocromo c que é essencial para que se realizem modificações bioquímicas da cadeia respiratória. Isso significa que a seleção natural preservou a informação genética para produzir essa proteína por um tempo incrivelmente mais extenso do que qualquer espécie que já tenha vivido sobre a Terra.

Com o passar do vasto, lento e profundo tempo geológico as máquinas de sobrevivência se sofisticaram. As estratégias inventadas para garantir a reprodução de indivíduos e espécies protegeram e perpetuaram, ao mesmo tempo, a informação química contida nos genes, fundamental para construir os corpos e as estruturas de indivíduos e populações. Uma das novidades mais surpreendentes nesse processo, pelo menos para nós, seres humanos, foi o aparecimento justamente da espécie humana e de seu volumoso cérebro cognitivo, que examinaremos a seguir sob o ponto de vista dos memes.

 

IV.A ORIGEM DO HOMEM

Em 1871 Darwin publicou o livro A origem do homem e a seleção sexual... Duas de suas conjecturas mais ousadas nessa obra têm um estatuto diferente hoje para biólogos e antropólogos. Darwin afirmou que o homem se originou na África. Pesquisas feitas, sobretudo a partir da metade do século XX, confirmaram essa idéia. Mas ele também defendeu que o homem se originou a partir da emergência conjunta de três características: o bipedismo, a encefalização (o crescimento do cérebro) e a fabricação de ferramentas. Conhecido como “pacote darwiniano”, essa emergência sincrônica está descartada hoje pela ciência, sobretudo perante as evidências antropológicas e arqueológicas (Leakey, 1995).

Em termos energéticos, o cérebro humano é um órgão muito dispendioso. Embora represente apenas dois por cento do peso do corpo adulto, ele gasta cerca de vinte por cento de toda a energia produzida pelos processos corporais (Blackmore, 1999). O tamanho do cérebro humano cresceu dramaticamente durante o tempo relativamente curto de dois milhões e meio de anos (Seuánez, 1979; Ruse, 1995), que separam os últimos australopitecos do homem anatomicamente moderno. Todavia, há cem mil anos, o tamanho do cérebro já era aproximadamente o que é hoje.

Provavelmente existe uma relação positiva entre a encefalização e as vantagens evolutivas do advento de uma capacidade cognitiva aumentada. Por sua vez, a linguagem articulada só começou a emergir lentamente há uns quarenta mil anos. Dessa época datam, também, os primeiros implementos (ferramentas) feitos de ossos e chifres, assim como as primeiras, embora incipientes, pinturas rupestres. Os antropólogos conhecem essa época pelo nome de ‘revolução tecnológica e artística do paleolítico superior’ e a concebem como uma transformação instrumental, artística, lingüística, científica-cultural que permitiu ao homem ser o que é. Mas, como o cérebro começou a se expandir por volta de uns dois milhões e meio de anos e parou mais ou menos no que é hoje há uns cem mil anos, seria absurdo dizer que as novas formas de linguagem (tecnológica, artística) exerceram algum papel fundamental no crescimento evolutivo do cérebro. Antes, ao contrário, o crescimento extraor-dinário do cérebro favoreceu que novas tecnologias fossem inventadas e, na medida em que funcionavam, se expandissem rapidamente por toda parte.

Segundo a teoria do meme defendida por Blackmore (1999), o que fez o cérebro crescer foi a capacidade de imitação. Essa capacidade foi grandemente magnificada pelo advento da fabricação de ferramentas e, posteriormente, pelo advento da linguagem.

Embora a linguagem articulada seja um atributo específico do Homo sapiens sapiens é comum considerar, cartesiana e erroneamente, que a própria linguagem seja uma característica apenas da nossa espécie, enquanto ela está presente em vários outros animais e, de forma muito pronunciada, entre os chimpanzés (Fouts, 1998).

 

O lingüista Roman Jakobson e o filósofo Karl Popper enfatizaram, independentemente, que as funções expressiva e sinalizadora da linguagem ocorrem em vários animais. Embora a função descritiva só seja conhecida em uns poucos organismos (em especial, nos insetos sociais), é no homem que ela atinge seu mais alto grau de desenvolvimento. Já a função poética só emergiu no homem (Jacobson, 1973), assim como a função crítica ou argumentativa (Popper, 1982, 1975). Na verdade, o homem é o único animal que possui uma linguagem falada altamente articulada e, sobretudo, uma linguagem escrita. Mas, para que seja possível o aparecimento de uma linguagem descritiva articulada foi preciso que o aparelho vocal de uma população ancestral de primatas tivesse se modificado. As condições ecológicas dessa transformação se relacionam com a evolução da postura bípede. Fenômenos sísmicos que ocorreram na África Ocidental entre 15 e 7 milhões de anos atrás deram origem à enorme cadeia de montanhas que corta o território africano na direção norte-

[ Existem várias teorias que tentam explicar a evolução do cérebro humano. No póprio The meme machine Blackmore apresenta algumas das mais importantes dessas teorias. Todo livro que trata da evolução do homem, considerando que aspectos biológicos são fundamentais para tal compreensão, oferece pelo menos uma narrativa hipotética para esse crescimento (ver bibliografia).

Baseada em evidências paleontológicas e arqueológicas supõe-se que os primeiros primatas a fabricarem feraamentas provavelmente foram os autraopitecíneos, há uns dois milhões e meio de anos (2.5 x 10 6) (LEAKEY, 1995; BLACKMORE, 1999).

A idéia de que os animais também possuem linguagens é comum entre todos aqueles que estudam mais de perto o comportamento de criaturas não humanas. Qualquer pessoa que tenha convivido com um gato ou um cão sabe o quanto os animais expressam e sinalizam várias formas de mensagens. O estudo da sofisticada comunicação das abelhas e de outros insetos sociais como as formigas, assim como a pesquisa sobre o comportamento de certos cetáceos como os golfinhos além de vários grupos diferentes de primatas demonstra claramente que a linguagem não é um atributo específico da espécie humana. ]

sul, isolando a porção oriental da ocidental. Essa modificação fez com que a África deixasse de ser um ambiente ecológico superficialmente homogêneo. Ecologicamente falando, a porção oriental criada com o soerguimento da barreira geográfica favoreceu primatas que andavam sobre duas patas, uma vez que a antiga floresta da região oriental regrediu dando vez a um ambiente de savana intercalado com bosques, formando uma espécie de mosaico ambiental. Provavelmente, só quando populações dos nossos ancestrais passaram a andar freqüentemente sobre dois pés e a fabricar instrumentos; assim como a articular uma gama mais variada e significativa de sons, é que a cultura começou a se desenvolver em uma velocidade vertiginosa.

Segundo Blackmore, as sociedades, como a conhecemos, teriam emergido quando as idéias ou os memes puderam ser imitados mais prontamente, confe-rindo vantagens importantes não apenas para os que inventavam uma idéia útil, mas, sobretudo, para os que copiavam essas boas idéias. E essa capacidade teria sido proveniente do aumento do cérebro. Na verdade, pode-se imaginar uma curiosa circularidade a retroalimentar o crescimento do cérebro e a evolu-ção da cultura. Boas idéias se propagam porque elas favorecem seus inve-ntores e imitadores. Se uma ferramenta serve a algum propósito, ela vai ser copiada. Se um indivíduo de uma população pré-humana vive em um ambiente inóspito e a carne faz parte de sua dieta obrigatória, a fabricação de uma ponta de lança certamente lhe favorecerá. De onde vem essa idéia? Esse talvez seja um dos limites da teoria dos memes, ela não dá conta propriamente da invenção, da emergência da novidade. Mas, dado o aparecimento de uma ferramenta (de um meme) interessante, nada impede que outro homem, vendo sua utilidade (ou beleza), não fabrique ele mesmo uma para si e assim por diante.

É nesse contexto que se presume que o bipedismo seja um fenômeno que esteja na origem da humanização, da encefalização e da socialização. Mas o bipedismo não é a (única) causa da evolução do homem. Provavelmente, em Biologia, não existe uma causa que não seja efeito de causas anteriores. O bipedismo completo, talvez, seja um efeito das referidas mudanças geológicas e ecológicas que criaram barreiras reprodutivas entre os primatas à oeste e à leste da cadeia de montanhas então formada. Modificações no hábito alimentar também são observadas por mudanças no desenho dos dentes dos primatas.

Sem dúvida, o bipedismo permitiu a liberação das patas dianteiras que, doravante, aprenderam notavelmente, por instrução não geneticamente herdável, a manipular objetos naturais e modelá-los, o que favoreceu a disseminação da imitação. O bipedismo também foi ocasionado ou causou mudanças anatômicas e fisiológicas que afetaram o sistema vocal e visual de nossos avós animais. Afetou, igualmente, os sistemas cardiovascular, nervoso, excretor, já que em um ambiente que provavelmente não era mais o da densa e mais ou menos uniforme floresta africana, os recursos eram inevitavelmente outros e foi preciso que os organismo emergentes se adaptassem as suas novas e severas condições de vida. Em termos mais rigorosamente darwinistas, pode-se afirmar que a família hominídea evoluiu em um cenário que, dada as condições ecológicas das regiões a oriente da barreira, os que tendiam a ser favorecidos eram os indivíduos ancestrais que possuíam maiores habilidades para andar e, conse-qüentemente, manipular objetos. Presume-se, então, que modificações tão profundas na forma e no comportamento teriam sido conseqüência, também, de mutações genéticas. Mas, ao contrário do que achava Darwin, essas modificações não precisam ser lentas e graduais, pois se descobriu fenômenos na natureza que podem disparar processos evolutivos com uma rapidez muito acima da imaginada.

No nível nuclear, a descoberta dos genes reguladores, os homeoboxes, indicam que mutações nesses loci podem acarretar mudanças substanciais na forma de certos organismos em poucas gerações. Genes reguladores foram encontrados em muitas espécies estudadas, inclusive no homem. Embora não se possa afirmar cientificamente que a encefalização humana tenha sido causada por mutações em genes reguladores, faz sentido pensar que mudanças nessas entidades acarretaram uma mudança profunda na forma e, conseqüentemente, no comportamento de muitas populações.

Para a teoria dos memes, a emergência da cultura humana se deu em um contexto de informações, criações e imitações, que eram parte do com-portamento pré-humano e que interagiam continuamente com os genes. O poder dos memes depende da capacidade de imitá-los, de reproduzi-los, seja através de ações e gestos (como imitar o ato de fazer uma ponta de lança), seja por pinturas, palavras faladas, registros escritos, poemas, programas de rádio ou de computador. Um meme que sirva ao propósito de um ser humano pode rapidamente infectar todo um grupo ou mesmo uma população ou até a própria espécie. Outros animais são capazes de imitação na natureza, como muitos primatas ou pássaros canoros. Nossa capacidade de imitar veio da natureza, não é um dom dado por nenhuma força sobrenatural. Entretanto, a emergência da linguagem articulada possibilitou que os memes pudessem ser armazenados em estruturas exógenas de linguagem e replicados para outros cérebros de uma forma que iria ocasionar uma profunda revolução da relação entre o homem e o ambiente.

A teoria dos memes inverte a perspectiva usual na qual se considera que o sujeito humano é senhor do seu corpo e de suas idéias. Considerando que nascemos em um mundo onde a cultura e a linguagem preexistem à nossa existência, somos selecionados e modelados, como Nietzsche corajosamente nos mostrou, pela educação informal que recebemos em casa e nas ruas, e pela lição formal que nos é imposta pela escola e pelos livros (Sloterdijk, 2000; Nietzsche, 1998).

O que chamamos de cultura e sociedade é um complexo de sistemas de idéias, de memes. Eles invadem nossa mente antes que possamos sequer ter qualquer consciência do processo, antes sequer de desconfiarmos que existimos. A doutrina dos memes quer mostrar que vivemos em um nutritivo e complexo caldo cultural, e que nossas mentes são o produto da disputa egoísta de idéias irracionais, de musas, no mais das vezes menos poéticas que as literárias, cuja lógica, não custa repetir, é inconsciente e não intencional.

O problema da teleologia nas ciências da vida continua vivo hoje, sobretudo para filósofos dessas ciências, embora certos autores tenham afirmado que o princípio de racionalidade exige que não ofereçamos explicações em termos de propósitos ou metas (Popper, 1975, p. 24; Monod, 1971, p. 32).

Entretanto, biólogos e outros cientistas e filósofos continuam perguntando acerca de finalidade ou função sobretudo das estruturas e dos comportamento de milhões de espécies de seres vivos. Por exemplo, uma explicação por causas finais se manifestaria em expressões como ‘o corpo é uma máquina de sobrevivência para os genes” ou “o cérebro é uma máquina de reprodução para os memes”. O propósito dos corpos é servir de veículo para os genes. A função do cérebro é servir de habitat das idéias. Genes e memes são as causas finais, respectivamente, do corpo e do cérebro. Entretanto, no meu modo de ver, nesse caso, afirmar que o corpo ou o cérebro é uma máquina é utilizar um tipo de raciocínio analógico ou metafórico. Da mesma forma, pode-se comparar um texto a um mecanismo, mas não existem razões para justificar metáforas ou analogias que não almejem uma identidade perfeita.

Metáforas não devem contar logicamente em peças argumentativas, pela simples razão de elas que se destinam a propor semelhanças entre dissemelhantes, não pretendendo provar que A é B, mas que se compararmos um com o outro podemos chegar a conhecer melhor A e B, mesmo que, como sempre, parcial e hipoteticamente.

Há realmente algo que não satisfaz com a metáfora do cérebro como máquina de perpetuação de memes. Ela pode ser uma boa tática para introduzir a discussão sobre como o corpo e o cérebro (a mente) interagem com o mundo (dos bichos e das plantas, das mulheres e dos homens, do lar e dos negócios). Mas não somos exatamente máquinas. Nossos cérebros não são exatamente máquinas. E não creio também que os adeptos da teoria dos memes acreditem que os seus e nossos cérebros são máquinas de imitação de idéias. Mas se é para reconhecer a existência de alteridades nos universos físicos, biológicos, psíquicos e sociais, então talvez devamos considerar, ao menos hipoteticamente, cientificamente, que possam existir partículas ou seres (biológicos e mentais) que nos usam (como máquina ou não) para se reproduzirem.

Os corpos existem para imortalizar genes. Os cérebros existem para imortalizar memes. A explicação por causas finais contida nessas sentenças deve ser discutida à luz do debate atual sobre o emprego da linguagem teleológica na teoria da evolução biológica (Lennox, 1993; Ghiselin, 1993; Regner, 1997; Caponi, 1999, 1997). Não são procedimentos comprometidos como uma causa cósmica (Mayr, 1998) que estamos perseguindo, mas o reconhecimento de que nossas ações no mundo são dirigidas por idéias. Idéias não vivem no vazio. Elas são parte de um contexto de homens e sociedades, de corpos e máquinas, com os quais cada um de nós é obrigado a se relacionar. A teoria dos memes que defendo não quer reduzir o homem, os indivíduos e a espécie, à autômatos imitadores cacofônicos, mas mostrar o imenso poder dos genes sobre os corpos, da cultura sobre os cérebros. Antropólogos, sociólogos e filósofos também têm insistido, independentemente, na influência da cultura sobre a formação (Gadamer, 1997) das mentes humanas. Homens, corpos, máquinas, genes, idéias são seres desse mundo. O homem só tem acesso racional a esses elementos por meio das lições (Sloterdjik, 2000) veiculadas pela linguagem e pela cultura. Nesse sentido, a cultura seria uma extensão natural da evolução biológica do homem, mas esse conhecimento só se faz acessível por meio da cultura. O que significa que estamos envoltos em círculos, mas círculos talvez justos, que expressam nossas reais dificuldades de lidarmos de modo crítico com nossos próprios problemas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo sido depurada de más interpretações, como o darwinismo social, e um sem número de mal-entendidos, como o lamarckismo ou o mutacionismo (Bowler), a Teoria Sintética da Evolução alcançou, no final da década de 1940 uma sólida sustentação em rigorosas bases darwinistas. Isso significa que, passados hoje mais de cento e quarenta anos da publicação de Origem das espécies, ortodoxia dentro da Biologia continua crendo basicamente que o meme de Darwin estava certo: o processo pelo qual as espécies de seres vivos se diversificam é o da descendência com modificação submetida continuamente às pressões ambientais da seleção natural. Naturalmente muitas modificações ocorreram ao próprio darwinismo clássico e uma das mais importantes foi que agora os evolucionistas consideram que todo benefício, em termos adaptativos, tem um custo, em termos de energia despendida para produzir uma estrutura ou um comportamento e mantê-los (Cronin, 1995). Ocorre que esse modelo explicativo começa a ser utilizado compreendendo que as próprias idéias veiculadas cultural e socialmente são replicadores.

O programa de pesquisa dos memes é uma investigação ainda incipiente: para Hull em 2001, ela teria cerca de doze anos (Hull, 2001). A memética pretende tratar a informação cultural e as próprias tradições como complexos informacionais que se replicam via nossas mentes, e outros artefatos produzidos por nossas mentes, com o intuito de propagar informações. A própria mente humana, para Blackmore e Dennett, é um ninho de memes. A metáfora do ninho é, ao meu ver, bastante apropriada por que o ninho não só é o produto de uma atividade biológica, como é também o local onde a própria vida será cultivada, vale dizer, replicada (pelo menos do ponto de vista dos genes).

Interpretar a mente humana como um locus onde as idéias ganham moradas e se reproduzem é ver o processo não do ponto de vista de indivíduos autônomos, senhor de seus dias, mas sujeitos interagindo em uma complexa trama. O problema com essa linha de pensamento é que mal e mal resolvemos o que realmente seja isso que chamamos mente. Além de não existir uma definição unívoca de mente, as relações do cérebro com a mente, e do corpo com a mente, continuam objeto de extensas controvérsias. Embora as neurociências enriquecidas dos insights da informática tenham progredido muito, continua aberta a pergunta de como a mente humana emergiu em termos filogenéticos.

Naturalmente, o programa de pesquisa dos memes é tão heterodoxo que atrai para si muitas críticas. Até agora as mais contundentes se encontram em Darwinizing Culture: the status of memetics as a Science, organizado pelo antropólogo evolucionista Robert Auenger, publicado em 2001. Existem também outras críticas (Wimsatt, 1999; Gould, 1991; Midgley, 2000), mas a segunda metade do livro de Aunger, assim como a introdução e as considerações finais desse mesmo autor, são abertamente contra a idéia de que os memes terão no futuro um grande poder de explicação e de predição, apostando que o programa é degenerativo. Gostaria de ressaltar que os autores que negam a memética no livro de Aunger, em absoluto negam a relevância e a importância de modelos abduzidos da biologia evolutiva para compreender a cultura; o que eles negam, é a procedência de compreender a cultura, reduzindo-a a entidades, os memes, que pudessem ter algum poder explicativo. Todos consideram a evolução humana de uma perspectiva bem darwinista.

Alguns dos defensores mais sagazes do programa assinam os primeiros artigos do bem equilibrado Darwinizing Culture. Eles sabem que a memética Gostaria de agradecer a um dos pareceristas desse trabalho pela sugestão dessa referência. precisa de um teste empírico e produtivo para acabar de uma vez por todas com as reticências sobre a investigação baseada na idéia de que as próprias idéias são replicadores com vida própria. Teóricos da linguagem, sobretudo da linguagem computacional, são os que levam os memes mais a sério. O que seriam os vírus de computador senão partículas de informação que se replicariam a despeito do interesse de seus veículos? Algumas conquistas já fazem parte da memética: 1) A distinção entre veículos e replicadores, ou ainda melhor, entre interatores e replicadores, tão fundamental para a memética, quanto a distinção entre fenótipo e genótipo para a biologia; 2) Os memes são seres em si, seres informacionais. O grande problema é a natureza da informação, ou seja, o que é a informação? (Hull, 2001). Do que a informação é feita? 3)Algumas modelagens dos memes, encontrada em sítios eletrônicos especializados, como Journal of research in memetics (url:www.mmu.ac.uk/ jom-emit) e Memetics publications in the web (http://users.lycaeum.org/ sputnik/Memetics/), mostram, ao meu ver, que pode estar próximo o dia em que um modelo baseado nos memes será altamente explicativo para fenômenos que envolvem as chamadas ciências humanas e sociais.

 

BIBLIOGRAFIA

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