Folha de São Paulo, terça-feira, 14 de outubro de 2008
Capitalismo seguirá igual, diz Chomsky
Crítico de Bush, lingüista diz que governo evita palavra "estatização" para que público não reivindique direito de interferir
Intelectual de esquerda descarta o surgimento de um novo capitalismo pós-crash, com maior presença do Estado na economia
FERNANDO RODRIGUES
ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK
Um dos intelectuais de esquerda mais respeitados do planeta, o lingüista Noam Chomsky, acha que a estatização total ou parcial do sistema financeiro dos EUA não vai ocorrer por causa da atual crise.
Colocaria em risco o que ele classifica de "tirania privada".
Por essa razão os governos do mundo desenvolvido evitam usar o termo até mesmo quando se trata de assumir o controle, ainda que só por algum tempo, de alguns bancos e corretoras que faliram por causa da crise atual.
Aos 79 anos, Chomsky leciona no MIT (Massachusetts Institute of Technology), uma das mais renomadas instituições de ensino superior dos EUA.
Para ele, se o governo norte-americano assumisse publicamente algumas de suas ações como "estatizações", abriria tecnicamente espaço para que os cidadãos do país também passassem a reivindicar o poder de interferir na condução do sistema. Até porque, diz o lingüista, "em princípio, o governo representa o público".
A possibilidade de um novo tipo de capitalismo surgir no pós-crash, com maior presença do Estado, é um cenário descartado por Chomsky. "A economia já é altamente dependente da dinâmica do setor estatal. É um sistema no qual o público paga os custos e assume os riscos, e os lucros são privados. Eu não vejo nenhuma indicação de que as instituições básicas do capitalismo de Estado estejam prestes a serem significativamente modificadas. É claro que a liberalização será reduzida, mas no interesse das instituições financeiras que vão sobreviver", diz ele.
A seguir, trechos da entrevistas de Chomsky concedida à Folha por e-mail.
FOLHA - Por que o governo dos EUA e banqueiros evitam expressões como "nacionalizar" ou "estatizar" ao falar dos pacotes de resgate para bancos nos quais haverá dinheiro público ou compra de ações pelo Estado?
NOAM CHOMSKY - Nós vivemos numa cultura altamente ideológica na qual "estatização" é uma palavra que põe medo, como "socialismo" (ou, para muitos, até "liberal"). A propósito, esse é um assunto sério. Se o Wells Fargo compra o Wachovia, então tudo fica dentro do setor privado -ou seja, dentro do sistema de tirania privada no qual o público não tem voz, em princípio. Dentro do sistema ideológico isso é chamado "livre mercado" e "democracia". Se [Henry] Paulson dá dinheiro público para bancos mas sem o direito de tomar decisões dentro dessas instituições, trata-se de um distanciamento da tirania pura chamada "liberdade", mas não muito. Se o governo adquire ações com poder de decisão dentro dos bancos, há sempre o risco de o público então também poder interferir -uma vez que, em princípio, o governo representa o público. Essa ameaça de democracia é muito mais severa para ser aceitável dentro do sistema doutrinário reinante.
Um aspecto intrigante do sistema é que o governo é visto como uma força externa, separada da população. E em muitos círculos, é interpretado como força opressora da população.
A idéia de o governo ser "para e pelo povo" é restrita a discursos patriotas e aulas de civismo nas escolas. Ou deveriam ser.
FOLHA - A onda de intervenção do Estados nas instituições financeiras será revertida no futuro ou haverá um novo cenário no qual mais bancos passarão de maneira perene a ser controlados pelo poder público?
CHOMSKY - A estatização completa é muito improvável pelas razões que eu mencionei. Uma ação nessa direção traria junto uma ameaça de democracia, ou seja, uma ameaça de o público se tornar envolvido nas tomadas de decisões sobre o sistema socioeconômico. O principal filósofo americano do século 20, John Dewey, observou que enquanto o público não ganhar controle efetivo das principais instituições da sociedade -financeiras, industriais, mídia etc.- a política permanecerá como "uma sombra dos negócios sobre a sociedade". Naturalmente, esse é o tipo de negócio que o mundo prefere. E a sua dominância sobre os sistemas doutrinários e políticos é tão enorme que a tirania privada é chamada de "democracia".
Já a ameaça de haver democracia real é chamada de "ameaça da tirania".
FOLHA - Esta é a pior crise econômica-financeira desde a Grande Depressão dos anos 30? Seria também o prenúncio de grandes mudanças no capitalismo como hoje o conhecemos?
CHOMSKY - Tem sido vista como a pior crise desde aquela época. Mas ainda não sabemos o quão severa será a crise econômica que está por vir.
Também acho que devemos ser cautelosos ao usar o termo "capitalismo". O sistemas existentes são de uma outra forma, um capitalismo de estado. Tem havido muita discussão sobre se o público deverá bancar o custo e o risco das operações de salvamentos dos bancos, mas essas lamentações -até por economistas que deveriam conhecer melhor as coisas- estão baseados na insatisfação ao se enfrentar a realidade de como a economia funciona.
A economia já é altamente dependente da dinâmica do setor estatal para que haja inovação e desenvolvimento. É um sistema no qual o público paga os custos e assume os riscos. Os lucros são privados. Eu não vejo nenhuma indicação de que as instituições básicas do capitalismo de Estado estejam prestes a serem significativamente modificadas. O sistema financeiro já foi alterado, com o colapso do modelo de bancos de investimentos. Já se reconheceu décadas atrás que a liberalização dos anos 70 embutiam um risco severo de crises repetidas e profundas. É claro que a liberalização será reduzida, mas no interesse das instituições financeiras que vão sobreviver. É possível que a retórica hipócrita do mercado fundamentalista seja também um pouco mais contida.
FOLHA - O sr. era jovem nos anos 30, mas vê semelhanças entre aquela crise a atual?
CHOMSKY - O desemprego era maior, mas essa é apenas uma das diferenças. Entre as semelhanças, creio que assim como naquela época, agora estamos indo em direção a um grande depressão.
FOLHA - Os últimos governos tomaram decisões liberalizantes para o mercado. Tanto o de George W. Bush como o de Bill Clinton -neste último, quebrando o muro que separava bancos comerciais de bancos de investimentos. Democratas e republicanos são igualmente responsáveis?
CHOMSKY - A responsabilidade pela situação atual é dos dois partidos. Alertas foram ignorados. No fundo, republicanos e democratas são ambos facções de um "partido dos negócios".
São um pouco diferentes, mas operam dentro da mesma estrutura institucional. Então não me parece ser uma surpresa que a culpa seja compartilhada. O problema é que essa discussão toda ignora o fato crucial da liberalização financeira: o seu impacto em solapar a democracia.
FOLHA - Quem o sr. acredita estar mais bem preparado para assumir a Casa Branca.
CHOMSKY - Barack Obama, provavelmente. Ao longo do tempo, a população se dá economicamente de maneira melhor com os democratas. Eles têm se movido à direita em políticas socioeconômicas. Mas John McCain é um descontrolado. É difícil saber o que ele poderia fazer. E os interesses que ele representa são extremamente perigosos para os EUA e para o mundo. Também para a esfera econômica.
FOLHA - Fala-se em num novo Bretton Woods, uma nova estrutura econômica mundial. Quem poderia liderar esse processo?
CHOMSKY - O poder ainda reside primeiramente nos EUA. Depois, na Europa. Apesar da diversificação na Ásia, o que vejo ainda é o G7 tomando a frente nesse papel de reformar o sistema.
FOLHA - Que tipo de capitalismo vai emergir da atual crise?
CHOMSKY - O capitalismo de Estado será provavelmente muito parecido ao atual, com um pouco mais de regulação e controle sobre as instituições financeiras, que serão reconstruídas (com os bancos de investimento). Mas não há indicações, pelo menos agora, de mudanças dramáticas.
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10 perguntas sobre a crise
Michel Collon *
Tradução: ADITAL
1. Subprimes?
O ponto de partida é uma verdadeira estafa que os bancos ocidentais ganharam uma enorme quantidade de dinheiro às custas dos estadunidenses, declarando que se não eram capazes de pagar, ficariam sem suas casas.
2. É somente uma crise bancária?
Não, em absoluto. Trata-se de uma verdadeira crise econômica que começou no setor bancário, mas suas causas são muito mais profundas. Na realidade, toda a economia dos Estados Unidos vive a crédito há 30 anos. As empresas se endividam acima de suas possibilidades, o Estado se endivida também acima de suas possibilidades (para fazer a guerra) e os cidadãos são levados também a endividar-se; é a única maneira de manter, artificialmente, um crescimento econômico.
3. A verdadeira causa?
Os meios de comunicação tradicionais não nos dizem nada. No entanto, as subprimes não são nada mais do que a ponto do iceberg, a manifestação mais espetacular de uma crise de superprodução que golpeia os Estados Unidos, mas também os países ocidentais. Se o objetivo final de uma multinacional consiste em despedir os trabalhadores em massa para fazer o menos trabalho com menos pessoas, se também diminuem os salários por todos os meios e com a ajuda dos governos cúmplices. A quem os capitalistas vão vender suas mercadorias, se não param de empobrecer seus clientes?!
4 É somente uma crise que será superada?
A história demonstra que o capitalismo tem iso sempre de uma crise a outra com uma boa guerra de vez em quando para sair da crise (eliminando seus rivais, empresas, infra-estruturas, o que permite um bom reembolso econômico). Na realidade, as crises são também um período que aproveitam os grandes para eliminar ou absorver os mais débeis. É o que acontece agora com o setor bancário estadunidense, ou o caso do BNP que tragou a Fortis (e tudo isso apenas começou). Porém, se a crise reforça a concentração de capital em mãos de um número ainda menor de multinacionais, qual será a conseqüência? Esses supergrupos terão ainda mais meios para eliminar ou empobrecer a mão de obra e, assim, converter-se em uma competição ainda mais forte.
5. Um capitalismo sobre bases éticas?
Há 150 anos que nos prometem isso. Até Bush e Sarkozy o fizeram. Porém, na realidade, é tão impossível quanto existir um tigre vegetariano. Pois o capitalismo se apóia em três princípios: 1. A propriedade privada dos grandes meios de produção e de financiamento. Não somos nós que decidimos, mas as multinacionais. 2. A competitividade: ganhar a guerra econômica, isto é, eliminar a concorrência. 3. O máximo benefício para ganhar essa batalha não basta ter uns benefícios normais ou razoáveis, mas uma taxa de benefícios que permita distanciar as empresas da concorrência. O capitalismo é a lei da selva, como escrevia Karl Marx: "O capital fica horrorizado com a ausência de benefício. Quando sente um benefício razoável, se orgulha. Com 20% se entusiasma. Com 50% é temerário. Com 100% arrasa todas as leis humanas e com 300% não se detém diante de nenhum crime".
6. Salvar os bancos?
Claro! Têm que proteger os clientes dos bancos. Porém, na realidade, o que o Estado está fazendo é proteger os ricos e nacionalizar as perdas. Por exemplo: o Estado belga não tinha 100 milhões de euros para ajudar as pessoas a manter seu poder aquisitivo; porém para salvar os bancos encontrou 5 bilhões em duas horas. Muito dinheiro que teremos que reembolsar. O irônico é que Dexia era um Banco Público e que Fortis incorporou um banco público que funcionava muito bem. Graças a isso, seus dirigentes têm feito menos negócios durante vinte anos. E agora que a coisa não funciona, pedem a esses dirigentes que paguem os pratos quebrados com o dinheiro que estiveram gastando e que guardaram? Não, pedem que nós paguemos essa conta.
7. Os meios de comunicação?
Longe de explicar-nos tudo isso, fixam sua atenção em assuntos secundários. Nos dizem que terão que buscar os erros, os responsáveis, combater os excessos e blá, blá, blá. No entanto, não se trata de tal ou qual erro, mas do sistema. Essa crise era inevitável. As empresas que estão quebrando são as mais débeis ou as que pior sorte têm tido. As que sobrevivam terão ainda mais poder sobre a economia e sobre nossas vidas.
8. O neoliberalismo?
A crise não foi provocada, mas acelerada pela moda neoliberal dos últimos vinte anos. Os países ricos têm tentado impor esse neoliberalismo em todo o terceiro mundo. Na América Latina, como acabo de estudar durante a preparação de meu livro ‘Os 7 pecados de Hugo Chávez’ o neoliberalismo tem levado a milhões de pessoas à miséria. Porém, o homem que lançou o sinal de resistência, o homem que demonstrou que se podia resistir ao Banco Mundial, ao FMI e às multinacionais, o homem que ensinou que tínhamos que dar as costas ao neoliberalismo para reduzir a pobreza, esse homem, Hugo Chávez, não deixa de ser demonizado a golpe de mentira midiática e de difamação infundada. Por quê?
9. O terceiro mundo?
Somente nos falam das conseqüências da crise no Norte. Na realidade, todo o terceiro mundo sofrerá gravemente por conta da recessão econômica e pela baixa de preços das matérias primas, provocada pela crise.
10. A alternativa?
Em 1989, um famoso estadunidense, Francis Fukuyama, nos anunciava o Fim da História: o capitalismo não triunfaria para sempre, nos dizia. Não fez falta muito tempo para que os vencedores caiam. A humanidade necessita verdadeiramente outro tipo de sociedade. O sistema atual fabrica milhares de milhões de pobres, afunda na angustia aqueles que (provisoriamente) têm a sorte de trabalhar, multiplica as guerras e arruína os recursos do planeta. Pretender que a humanidade está condenada a viver sob a lei da selva é considerar-nos imbecis. Como deveria ser uma sociedade mais humana, que ofereça um futuro digno para todos? Esse é o debate que temos a obrigação de lançar. Sem tabus.
* www.michelcollon.info
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Le Monde ESPECIAL
Para compreender a crise financeira
Mercados internacionais de crédito entraram em colapso e há risco real de uma corrida devastadora aos bancos. Por que o pacote de 700 bilhões de dólares, nos EUA, chegou tarde e é inadequado. Quais as causas da crise, e sua relação com o capitalismo financeirizado e as desigualdades. Há alternativas?
Antonio Martins
(06/10/2008)
A sensação de pânico que tomou o sistema financeiro em todo o mundo, no início da semana, persiste nesta terça-feira. A bolsa de valores de Tóquio caiu mais 3%, apesar de o Banco do Japão injetar mais 10 bilhões de dólares no sistema bancário. Na Europa, houve frágil recuperação das bolsas no início do dia, revertida em seguida, quando se anunciou que a situação do Royal Bank os Scotland (RBJ) pode ser crítica. A crise iniciada há pouco mais de um ano, no setor de empréstimos hipotecários dos Estados Unidos, viveu dois repiques, nos últimos dias. Entre 15 e 16 de setembro, a falência de grandes instituições financeiras norte-americanas [1] deixou claro que a devastação não iria ficar restrita ao setor imobiliário. No início de outubro, começou a disseminar-se a sensação de que o pacote de 700 bilhões de dólares montado pela Casa Branca para tentar o resgate produziria efeitos muito limitados. Concebido segundo a lógica dos próprios mercados (o secretário do Tesouro, Henry Paulson, é um ex-executivo-chefe do banco de investimentos Goldman Sachs), o conjunto de medidas socorre com dinheiro público as instituições financeiras mais afetadas, mas não assegura que os recursos irriguem a economia, muito menos protege as famílias endividadas.
Deu-se então um colapso nos mercados bancários, que perdura até o momento. Apavoradas com a onda de falências, as instituições financeiras bloquearam a concessão de empréstimos – inclusive entre si mesmas. Este movimento, por sua vez, multiplicou a sensação de insegurança, corroendo o próprio sentido da palavra crédito, base de todo o sistema. A crise alastrou-se dos Estados Unidos para a Europa. Em dois dias, cinco importantes bancos do Velho Continente naufragaram [2].
Muito rapidamente, o terremoto financeiro começou a atingir também a chamada “economia real”. Por falta de financiamento, as vendas de veículos caíram 27% (comparadas com o ano anterior) em setembro, recuando para o nível mais baixo nos últimos 15 anos. Em 3 de outubro, a General Motors brasileira colocou em férias compulsórias os trabalhadores de duas de suas fábricas (que produzem para exportação), num sinal dos enormes riscos de contágio internacional. Diante do risco de recessão profunda, até os preços do petróleo cederam, caindo neste 6/10 a 90 dólares por barril – uma baixa de 10% em apenas uma semana. A tempestade afeta também o setor público. Ao longo da semana, os governantes de diversos condados norte-americanos mostraram-se intranqüilos diante da falta de caixa. O governador da poderosa Califórnia, Arnold Schwazenegger, anunciou em 2 de outubro que não poderia fazer frente ao pagamento de policiais e bombeiros se não obtivesse, do governo federal, um empréstimo imediato de ao menos 7 bilhões de dólares.
Desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas podem sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”
Nos últimos dias, alastrou-se o pavor de algo nunca visto, desde 1929: desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas poderiam sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”, segundo a descreveu o economista Nouriel Roubini, que se tornou conhecido por prever há meses, com notável precisão, todos os desdobramentos da crise atual.
Os primeiros sinais deste enorme desastre já estão visíveis. Em 2 de outubro, o Banco Central (BC) da Irlanda sentiu-se forçado a tranqüilizar o público, anunciando aumento no seguro estatal sobre 100% dos depósitos confiados a seis bancos. Na noite de domingo, foi a vez de o governo alemão tomar atitude semelhante. Mas as medidas foram tomadas de modo descoordenado, porque terminou sem resultados concretos, no fim-de-semana, uma reunião dos “quatro grandes” europeus [3], convocada pelo presidente francês, para buscar ações comuns contra a crise. Teme-se, por isso, que as iniciativas da Irlanda e Alemanha provoquem pressão contra os bancos dos demais países europeus, onde não há a mesma garantia. Além disso, suspeita-se que as autoridades estejam passando um cheque sem fundos. Na Irlanda, o valor total do seguro oferecido pelo BC equivale a mais do dobro do PIB do país...
Também neste caso, os riscos de contágio internacional são enormes. Roubini chama atenção, em especial, para as linhas de crédito no valor de quase 1 trilhão de dólares entre os bancos norte-americanos e instituições de outros países. É por meio deste canal, hoje bloqueado, que o risco de quebradeira bancária se espalha pelo mundo. Mesmo em países menos próximos do epicentro da crise, como o Brasil, as conseqüências já são sentidas. Na semana passada, o Banco Central viu-se obrigado a estimular os grandes bancos, por meio de duas resoluções sucessivas, a comprar as carteiras de crédito dos médios e pequenos – que já enfrentam dificuldades para captar recursos.
Em conseqüência de tantas tensões, as bolsas de valores da Ásia e Europa estão viveram, na segunda-feira (6/10) um dia de quedas abruptas. Na primeira sessão após a aprovação do pacote de resgate norte-americano, Tóquio perdeu 4,2% e Hong Kong, 3,4%. Quedas entre 7% e 9% ocorreram também em Londres, Paris e Frankfurt. Em Moscou, a bolsa despencou 19%. Em todos estes casos, as quedas foram puxadas pelo desabamento das ações de bancos importantes. Em São Paulo, os negócios foram interrompidos duas vezes, quando quedas drásticas acionaram as regras que mandam suspender os negócios em caso de instabilidade extrema. Apesar da intervenção do Banco Central, o dólar chegou a R$ 2,20.
Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados
A esta altura, todas as análises sérias coincidem em que não é possível prever nem a duração, nem a profundidade, nem as conseqüências da crise. Nos próximos meses, vai se abrir um período de fortes turbulências: econômicas, sociais e políticas. As montanhas de dinheiro despejadas pelos bancos centrais sepultaram, em poucas semanas, um dogma cultuado pelos teóricos neoliberais durante três décadas. Como argumentar, agora, que os mercados são capazes de se auto-regular, e que toda intervenção estatal sobre eles é contra-producente?
Mas, há uma imensa distância entre a queda do dogma e a construção de políticas de sentido inverso. Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados.
O pacote de 700 bilhões de dólares costurado pela Casa Branca é o exemplo mais acabado deste viés. Nouriel Roubini considerou-o não apenas “injusto”, mas também “ineficaz e ineficiente”. Injusto porque socializa prejuízos, oferecendo dinheiro às instituições financeiras (ao permitir que o Estado assuma seus “títulos podres”) sem assumir, em troca, parte de seu capital. Ineficaz porque, ao não oferecer ajuda às famílias endividadas — e ameaçadas de perder seus imóveis —, deixa intocada a causa do problema (o empobrecimento e perda de capacidade aquisitiva da população), atuando apenas sobre seus efeitos superficiais. Ineficiente porque nada assegura (como estão demonstrando os fatos dos últimos dias) que os bancos, recapitalizados em meio à crise, disponham-se a reabrir as torneiras de crédito que poderiam irrigar a economia. Num artigo para o Financial Times (reproduzido pela Folha de São Paulo), até mesmo o mega-investidor George Soros defendeu ponto-de-vista muito semelhantes, e chegou a desenhar as bases de um plano alternativo.
Outras análises vão além. Num texto publicado há alguns meses no Le Monde Diplomatique, o economista francês François Chesnais chama atenção para algo mais profundo por trás da financeirização e do culto à auto-suficiência dos mercados. Ele mostra que as décadas neoliberais foram marcadas por um enorme aumento na acumulação capitalista e nas desigualdades internacionais. Fenômenos como a automação, a deslocalização das empresas (para países e regiões onde os salários e direitos sociais são mais deprimidos) e a emergência da China e Índia como grandes centros produtivos rebaixaram o poder relativo de compra dos salários. O movimento aprofundou-se quando o mundo empresarial passou a ser regido pela chamada “ditadura dos acionistas”, que leva os administradores a perseguir taxas de lucros cada vez mais altas. O resultado é um enorme abismo entre a a capacidade de produção da economia e o poder de compra das sociedades. Na base da crise financeira estaria, portanto, uma crise de superprodução semelhante às que foram estudadas por Marx, no século retrasado. Ao liquidar os mecanismos de regulação dos mercados e redistribuição de renda introduzidos após a crise de 1929, o capitalismo neoliberal teria reinvocado o fantasma.
Wallerstein vê nos sistemas públicos de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se todos tivermos direito a uma vida digna, quem se preocupará em acumular dinheiro?
Marx via nas crises financeiras os momentos dramáticos em que o proletariado reuniria forças para conquistar o poder e iniciar a construção do socialismo. Tal perspectiva parece distante, 125 anos após sua morte. A China, que se converteu na grande fábrica do mundo, é governada por um partido comunista. Mas, longe de ameaçarem o capitalismo, tanto os dirigentes quanto o proletariado chinês empenham-se em conquistar um lugar ao sol, na luta por poder e riqueza que a lógica do sistema estimula permanentemente.
Ao invés de disputar poder e riqueza com os capitalistas, não será possível desafiar sua lógica? O sociólogo Immanuel Wallerstein, uma espécie de profeta do declínio norte-americano, defendeu esta hipótese corajosamente no Fórum Social Mundial de 2003 - quando George Bush preparava-se para invadir o Iraque e muitos acreditavam na perenidade do poder imperial dos EUA. Em outro artigo, publicado recentemente no Le Monde Diplomatique Brasil, Wallerstein sugere que a crise tornará o futuro imediato turbulento e perigoso. Mas destaca que certas conquistas sociais das últimas décadas criaram uma perspectiva de democracia ampliada, algo que pode servir de inspiração para caminhar politicamente em meio às tempestades. Refere-se à noção segundo a qual os direitos sociais são um valor mais importante que os lucros e a acumulação privada de riquezas. Vê nos sistemas públicos (e, em muitos países, igualitários) de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se a lógica da garantia universal a uma vida digna puder ser ampliada incessantemente; se todos tivermos direito, por exemplo, a viajar pelo mundo, a sermos produtores culturais independentes e a terapias (anti-)psicanalíticas, quem se preocupará em acumular dinheiro?
O neoliberalismo foi possível porque, no pós-II Guerra, certos pensadores atreveram-se a desafiar os paradigmas reinantes e a pensar uma contra-utopia. Num tempo em que o capitalismo, sob ameaça, estava disposto a fazer grandes concessões, intelectuais como o austríaco Friederich Hayek articularam, na chamada Sociedade Mont Pelerin, a reafirmação dos valores do sistema [4]. Seus objetivos parecem hoje desprezíveis, mas sua coragem foi admirável. Eles demonstraram que há espaço, em todas as épocas, para enfrentar as certezas em vigor e pensar futuros alternativos. Não será o momento de construir um novo pós-capitalismo?
[1] Em 12/9, o banco de investimentos Lehman Brothers quebrou, depois que as autoridades monetárias recusaram-se a resgatá-lo. No mesmo dia, o Merrill Lynch anunciou sua venda para o Bank of America. Em 15/9, a mega-seguradora AIG (a maior do mundo, até há alguns meses) anunciou que estava insolvente, sendo nacionalizada no dia seguinte com aporte estatal de US$ 85 bilhões
[2] O Fortis foi semi-nacionalizado pelos governos da Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O Dexia recebeu uma injeção de 6,4 bilhões de euros, patrocinada pelos governos da França e Bélgica. O Reino Unido nacionalizou o Bradford & Bingley (especialista em hipotecas), vendendo parte de seus ativos para o espanhol Santander. O Hypo Real Estate segundo maior banco hipotecário alemão entrou numa operação de resgate cujo custo podia chegar a 50 bilhões de euros, mas cujo sucesso ainda não estava assegurado, em 5/9. A Islândia nacionalizou o Glitnir, seu terceiro maior banco
[3] Alemanha, França, Reino Unido e Itália, os membros europeus do G-8
[4] Sobre a contra-utopia hayekiana, ler, no Le Monde Diplomatique, “Pensando o Impensável” , de Serge Halimi
http://diplo.uol.com.br/2008-10,a2623
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América Latina - As cassandras neoliberais
Emir Sader *
Adital -
A esquerda costuma ser acusada de catastrofista. Mas agora é a direita que, sem propostas, aposta no quanto pior melhor, para ver se consegue voltar ao governo, desesperada diante dos 80% de popularidade do governo Lula.
Primeiro apostavam na inflação, que ia tornar-se descontrolada e levaria o país à recessão pelas medidas que, no receituário deles, costumam ser tomadas. Seguiam o editorial do The Economist que esperava que o governo de Fernando Lugo fosse o último governo progressista na América Latina porque, dizem eles, chegam tempos de recessão e nisso a direita é craque. Propõem explorar temas dolorosos e que lhe são caros, como enfermeiros da recessão e dos sofrimentos para o povo: inflação e violência. Centram-se na exploração desses temas.
Se esquece a revista não apenas que o continente é outro hoje, mas que em El Salvador Mauricio Funes, candidato da FMLN é amplamente favorito para ampliar a lista de presidentes progressistas na América Latina. E que a capacidade de resistência desses governos diante da crise é maior do que durante aqueles dos seus fracassados queridinhos - FHC, Menem, Carlos Andrés Peres, Sanchez de Lozada, entre tantos outros.
FHC, apóstolo do caos, aposta na crise, na recessão. Ele, que conhece bem isso. Afinal, nos seus oito anos de governo - recordar que ele comprou votos para mudar a Constituição durante seu mandato, para ter um segundo mandato -, quebrou o Brasil três vezes, teve que ir ao FMI três vezes para assinar novas Cartas-compromisso. Escondeu a crise durante a campanha eleitoral de 1998, fez tudo - ajudado amplamente pela mesma imprensa privada que agora aposta no caos - para ganhar no primeiro turno, porque o país estava de novo quebrado e Pedro Malan negociava novo acordo de capitulação com o FMI.
Não deu outra, veio a crise, os juros foram elevados para 49% (sic) e a economia entrou na prolongada recessão que acompanhou todo o governo FHC e fez com que os tucanos fossem amplamente derrotados em 2002 e FHC seja o político com pior desempenho na opinião do povo brasileiro. E foi uma crise provocada e sofrida aqui, não como conseqüência de uma crise internacional.
Agora a direita aposta na crise, que é a crise da sua doutrina, das suas pregações sobre as virtudes do mercado. Fariseus, tentam esconder que são discursos como os seus que levaram à farra especulativa dos EUA - meca do neoliberalismo - e cujos efeitos o governo tem que enfrentar. Governassem os tucanos, imaginem o que seria a economia do Brasil se Alckmin tivesse ganho - como queria a imprensa privada -, com o grau de fragilidade que teríamos, com a continuidade da abertura econômica que os tucanos pregam.
Lula precisaria fracassar, porque se o douto, o sábio, o ilustrado, o queridinho dos grandes empresários e da imprensa privada, FHC, fracassou - na política econômica, na política social, na política educacional, na política cultural, na política externa -, fracassou, como um torneiro mecânico, nordestino, que perdeu um dedo nas máquinas, do PT, pode triunfar.
É o fracasso das teorias que pregam que as elites sabem mais, podem mais, fazem melhor as coisas. A mesma teoria que fracassa na Bolívia, onde o índio Evo Morales dá certo, onde o gringo Sanchez de Lozada fracassou. Na Venezuela, onde o mulato Hugo Chávez dá certo, quando a elite branca de Carlos Andrés Peres, de Rafael Caldera, fracassaram.
As economias dos países que participam dos processos de integração regional, porque privilegiam os intercâmbios entre seus países, porque diversificaram seus mercados internacionais - com o da China ocupando lugar de destaque -, porque desenvolvem os mercados internos de consumo popular, dependendo menos das exportações, porque vão dispondo cada vez mais de recursos próprios de financiamento - que o Banco do Sul vai incrementar -, sofrem menos as conseqüências da maior crise do capitalismo desde 1929. Recordar que como efeito desta, caíram 16 governos latino-americanos. Agora, nenhum deve cair e sofrem mais os que mais se atrelaram à economia estadunidense e mais seguiram aferrados ao neoliberalismo - de que o México é o caso mais grave.
FHC, e todas suas viúvas na imprensa privada, podem chorar, podem pedir pelo pior, podem esperar sentados o fracasso dos novos governos latino-americanos. Seu tempo já passou, o funeral de Wall Street é o seu funeral, o da apologia dos mercados, do Estado mínimo, do reino da especulação. Que descansem em paz, que o povo brasileiro tem mais o que fazer, tem que se o
ocupar do seu destino, essas cassandras neoliberais que ele derrotou e segue derrotando.
* Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj
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Veja Tambem: A Crise (I-Continuação)