Escritor francês diz que ser feliz
virou uma obrigação, um símbolo de status e uma fonte
permanente de angústia
PAULA MAGESTE
O romancista e ensaísta francês
Pascal Bruckner publicou 15 livros, ganhou dois importantes prêmios
literários europeus, teve uma obra, Lua de Fel,
adaptada para o cinema por Roman Polanski e, doutor em letras,
deu aulas em Nova York e em San Diego, na Califórnia. Aos 53
anos, mora em Paris com a segunda mulher e a filha, de 7 anos.
Bruckner poderia considerar-se um homem feliz, mas isso não
combina com seu livro mais recente. A Euforia Perpétua
(Ed. Bertrand Brasil) denuncia a fragilidade e a crueldade de
uma sociedade que transformou a felicidade em ideal coletivo e
obrigatório. 'No mundo ocidental, quem não é feliz se sente
excluído e fracassado', afirma o escritor. 'A felicidade é
extremamente individual e efêmera por definição. Por isso, as
pessoas obcecadas em conquistá-la, como a uma propriedade,
sofrem em dobro e se distanciam das pequenas alegrias da vida.'
Bruckner concedeu a ÉPOCA a seguinte entrevista:
Perfil |
Reprodução |
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• Dados pessoais
Nascido em Paris em 1948, passou a
infância e a adolescência na Áustria e na Suíça
• A
trajetória
Doutor em letras, deu aulas nos
Estados Unidos e publicou 15 livros
• Prêmios
Renaudot, em 1997, por Ladrões
de Beleza, e Médicis, em 1995, por A
Tentação da Inocência
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ÉPOCA – Como a
felicidade se tornou uma tirania?
Pascal Bruckner – No século XVIII, felicidade já
deixara de ser um direito para se tornar um dever. Mas essa
inversão de valores só se consolidou no século XX, depois de
1968, quando se fez uma revolução em nome do prazer, da
alegria, da voluptuosidade. A partir do momento em que o prazer
se torna o principal valor de uma sociedade, quem não o atinge
vira um indivíduo fora-da-lei.
ÉPOCA – Se
é natural ao ser humano buscar a felicidade, onde está o erro?
Bruckner – O erro é esquecer que ninguém pode
dizer o que o outro deve procurar, muito menos coletivamente. É
perigoso achar que a existência só tem validade se a pessoa
encontrar a felicidade. Essa é apenas uma das possibilidades na
vida. Há várias outras, como a paixão e a liberdade. Recuso a
noção de felicidade como objetivo maior da humanidade.
ÉPOCA – O
problema não é o que se considera felicidade hoje?
Bruckner – O problema é a procura. Todos os que
buscam a felicidade ficam mais infelizes, porque não se trata
de uma caça ao tesouro ou à pedra filosofal. A busca da
felicidade está fadada ao fracasso. É como procurar o príncipe
encantado. Acabamos por nos privar dos pequenos prazeres e das
pequenas alegrias, e ficamos com uma insatisfação permanente.
'A depressão é a
doença de uma sociedade
que decidiu ser feliz a todo preço.
Não se tolera mais a fragilidade.
Tudo é visto sob o ângulo da patologia.
Aí temos de medicar a existência.
É desumano.
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Produto Interno
Bruto alto não é sinônimo de povo feliz. A França
um dos países mais ricos do mundo, é também onde se
consome uma grande quantidade de antidepressivos.'
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ÉPOCA – A
felicidade transformada em objetivo coletivo é uma questão política?
Bruckner – Muitos países querem se colocar como
paraísos terrestres. Enquanto isso, um monte de gente morre de
fome. Todos os Estados fascistas ou comunistas queriam
padronizar a felicidade do povo. Isso é perigoso. Nenhum
governo, patrão ou chefe de Estado tem o direito de nos dizer
onde está nossa felicidade.
ÉPOCA – Confunde-se
felicidade e bem-estar?
Bruckner – Dinheiro compra bem-estar, conforto,
mas nada compra a felicidade. Nos países em que o Estado falha
em suprir as necessidades básicas do cidadão, é compreensível
que a felicidade seja vista como a ausência da tristeza. Mas
ela não deve ser reduzida a uma definição pela negação. Nos
países ricos, em que as pessoas dispõem de certa renda, têm
casa e comem normalmente, a felicidade não é compulsória.
Prova disso é que na França se consome uma enorme quantidade
de antidepressivos.
ÉPOCA – Sofrimento
virou doença?
Bruckner – Sempre detestamos o sofrimento, é
normal. A novidade é que agora as pessoas não têm mais o
direito de sofrer. Então, sofre-se em dobro. Querer que as
pessoas se calem sobre a dor física ou psicológica é apenas
agravar o mal.
ÉPOCA – Felicidade
virou símbolo de status?
Bruckner – Mais que o dinheiro, ela é a nova
ostentação dos ricos. Eles estão na mídia e exibem seus
carros de luxo, sua vida amorosa extraordinária, seu sucesso
social, financeiro ou mesmo moral, quando colaboram com instituições
beneficentes. A felicidade virou parte da comédia social.
ÉPOCA – Isso
aumenta a crença de que ela pode ser conquistada?
Bruckner – Há pessoas que correm a vida inteira
atrás dela, e então a felicidade vira uma inquietação
permanente. Ou seja, o sujeito já entrou no território da angústia.
A felicidade vira uma prisão.
'O Dalai-Lama
deixou de lado a herança budista
para se tornar acessível.
Vende muito e virou referência
espiritual para celebridades.
Em seus livros, há bom senso, mas
também um monte de besteira.
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No Oriente, a vida
é uma seqüência de sofrimentos, ao passo que, no
Ocidente, ela virou uma sucessão de gozos, que as
pessoas perseguem numa saga quixotesca e patética. No
fim, é igual.'
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ÉPOCA
– E o papel da religião em tudo isso?
Bruckner – O cristianismo coloca a
felicidade como o paraíso perdido ou por vir. É a noção da
felicidade perfeita, ao pé de Deus. Praticamente todas as
religiões falam do sofrimento e nos prometem a felicidade
depois desta vida. No catolicismo, o sofrimento é tamanho que o
Deus sangra e agoniza. Por outro lado, há cada vez mais religiões
que se ocupam da felicidade na Terra, como evangélicos,
budistas e hinduístas, por exemplo. Na verdade, nos tornamos
todos crentes laicos: tentamos cumprir na Terra o ideal que o
cristianismo nos propõe para o céu. Queremos fazer nossa
felicidade como os penitentes de outros tempos se flagelavam. Nós
nos penitenciamos nas academias de ginástica, no esforço
permanente para emagrecer, nos regimes, na obrigação de ter
orgasmo.
ÉPOCA – Então
nossa busca de felicidade não nos aproxima do hedonismo nem
traz uma ruptura com certos valores religiosos?
Bruckner – Curiosamente, todas as revoluções
feitas nesse sentido, inclusive a Francesa, desembocam em um
ideal ainda muito impregnado de religião. Nosso hedonismo acaba
nos mortificando. Agredimos nosso corpo para torná-lo perfeito,
musculoso, imortal. As salas de ginástica cada vez mais se
parecem com salas de tortura. Carregamos a Inquisição conosco,
e ela é o espelho. Continuamos no universo da mutilação, que
é medieval.
ÉPOCA – Isso
ocorre também no Oriente?
Bruckner – Para os povos orientais, existe a noção
de reencarnação. Por um lado, pode-se esperar que a próxima
vida seja melhor. Por outro, é preciso viver de forma a evitar
as reencarnações e, assim, poder ir ao encontro da alma
imortal de Brahma ou Buda. No Ocidente moderno a vida se tornou
uma seqüência de gozos. E nossa busca frenética por essa
verdade parece a saga de Dom Quixote. É patética.
ÉPOCA – No
século XIX, havia o 'mal do século'. Era lindo sofrer. Estamos
vivendo isso às avessas?
Bruckner – O 'mal do século' era uma estratégia
do individualismo. O burguês era contente e satisfeito, ao
passo que o artista exibia sua tristeza para se distinguir da
massa. Até a doença se tornou uma forma de singularização.
Hoje, a estratégia é a mesma: se distinguir, escapar da miséria
comum.
ÉPOCA – Por
isso muita gente adota a atitude de ver alegria e perfeição em
cada refeição, cada objeto, cada momento?
Bruckner – É a estratégia dos estóicos, de fazer
tudo como se fosse a última vez. É uma revalorização da vida
cotidiana. É interessante, mas pode ser um mecanismo de
autopersuasão, de se convencer da felicidade da própria existência,
de evitar ser pego no 'erro'. Essas são pessoas que decidiram
imperativamente ser felizes. Isso é muito suspeito, porque todo
ser humano tem momentos de tristeza. Tentar esconder isso é se
enganar.
ÉPOCA – Os
livros de auto-ajuda reforçam que só não é feliz quem não
quer?
Bruckner – Esse tipo de literatura sempre existiu.
São livros contra as pequenas misérias do cotidiano: como se
livrar de uma febre, remover uma mancha. Hoje, no entanto, os
temas são mais amplos: promete-se a felicidade. Deepak Chopra,
guru das estrelas de Hollywood, faz vários livros sobre o mesmo
tema: como ganhar dinheiro, como fazer sucesso. Há sempre um ou
dois conselhos que funcionam, mas esse tipo de receita vive
muito próximo do charlatanismo.
ÉPOCA – As
pessoas felizes são menos interessantes?
Bruckner – Ninguém é feliz ou infeliz o tempo todo. A
vida não se divide entre essas duas polaridades. Muito mais
importante que a felicidade é a liberdade, a capacidade de
enfrentar problemas. A felicidade é um valor secundário, e é
bom enfatizar isso para que não se sintam culpadas as pessoas
que não chegam a ser felizes.
EPOCA – O que seria a felicidade
real, não-idealizada?
Bruckner – Um sentimento sem objeto preestabelecido,
algo que muda de acordo com a pessoa, com a época e com a
idade. Nós a encontramos em alguns momentos, mas ela é fugidia
por natureza, não vem quando a chamamos e às vezes chega
quando menos esperamos. Há dois erros básicos na forma como a
encaramos atualmente. Um é não reconhecê-la quando acontece
ou considerá-la muito banal ou medíocre para acolhê-la. O
segundo erro é o desejo de retê-la, como a uma propriedade.
Jacques Prévert tem uma frase linda sobre isso: 'Reconheço a
felicidade pelo barulho que ela faz ao partir'. A ilusão
contemporânea é a da dominação da felicidade. Um triste
erro.
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