Insatisfação gera mais consumo
Folha de São Paulo,
domingo, 07 de dezembro de 2003
Segundo análises, comprar deixou de ser ideal de felicidade, mas a insatisfação
tem gerado ainda mais consumo
Mercado
estimula o "consumo infeliz"
CÍNTIA CARDOSO
DE NOVA YORK
Que Papai Noel não ouça, mas comprar coisas já não é o ideal de felicidade
de muita gente, ao menos nos países ricos -essa conclusão está em pesquisas
e livros recém-divulgados nos EUA. Os americanos, porém, nunca consumiram
tanto, o que, para os estudiosos, mostra que essa insatisfação pode
ter sido transformada, paradoxalmente, em um potente motor para o mercado.
Estima-se que os gastos com serviços e mercadorias representem, hoje,
quase dois terços de toda a atividade econômica dos EUA. A cifra chega
a US$ 7,5 trilhões por ano. Os números são os mais altos desde o fim
da Segunda Guerra Mundial.
Mas o descompasso entre a capacidade de gastar mais e o grau de felicidade
é flagrante. Estudo realizado pela consultoria Roper ASW mostra que
apenas 30% dos americanos dizem acreditar que aumento do poder aquisitivo
seja proporcional à elevação do grau de felicidade. Nos anos 50, o aumento
da renda era motivo para aumento da felicidade para a maioria das pessoas,
segundo especialistas ouvidos pela Folha.
Insatisfação estimulada
"A insatisfação das pessoas é cultivada pelo mercado. Essas condições
têm de ser mantidas, ou o mercado não sobreviveria. Trabalhamos mais
horas e produzimos mais. Esses produtos têm de ser vendidos. Estamos
presos na armadilha do consumo compulsivo que não traz satisfação",
avaliou Michael Carley, especialista em consumismo e ambiente e professor
da Universidade Heriot-Watt, na Escócia.
A discussão sobre consumo e felicidade também é tema de "You Don't
Have To Be Rich" (você não tem de ser rico), livro de auto-ajuda
na área de finanças lançado recentemente nos EUA. A autora, Jean Chatzky,
reforça a teoria de que bens materiais não trazem satisfação pessoal
e ensina: "Pare de correr atrás de dinheiro e viva". Para
chegar à conclusão, Chatzky usou os dados da pesquisa da Roper ASW.
Mais trabalho, mais gastos
A corrida desenfreada às compras também é analisada como parte de um
ciclo perverso que se resume na equação: trabalhar mais para poder gastar
mais.
"Esse é o ideal de felicidade do nosso tempo. Mas a recompensa
do consumo não é satisfatória", diz Betsy Taylor, presidente da
organização "Centro para um Novo Sonho Americano", ONG que
faz campanhas para alertar sobre os perigos do consumo compulsivo.
"Vivemos um culto exacerbado ao consumismo. A publicidade vende
a idéia de que a felicidade é medida pelos bens que se possui. Só que
esse padrão de consumo pregado é inatingível e insustentável. Mesmo
assim, o resultado é que vemos que as pessoas trabalham cada vez mais
para tentar alcançar a felicidade no consumo", afirma Taylor.
Consumo patriótico
Nos EUA, parte desse consumo é alimentada por medidas governamentais,
como o corte de impostos promovido pelo presidente George W. Bush.
"Estamos
na era do consumo patriótico. A mensagem que recebemos é a de que temos
de gastar, porque a economia depende de nós. Pouco importa o acúmulo
de dívidas no cartão de crédito ou o aumento dos pedidos de falência
pessoal", afirmou Taylor.
As estimativas mais recentes calculam que, em 2003, haja 1,8 milhão
de pedidos de falência pessoal nos EUA. No ano passado, o número ficou
em torno de 1,6 milhão.
Mas quando as trajetórias do poder aquisitivo e felicidade se distanciaram?
Para os analistas, estudos indicam que desde os anos 50 o abismo tem
crescido. O fenômeno do "hiperconsumismo" teria ganhado força
a partir dos anos 80.
Engarrafamentos
"Historicamente, as pessoas sempre desejaram segurança material.
Isso é constante em todas as décadas do século 20. O problema é que
vivemos hoje a era do consumo imperativo", disse Taylor.
Os analistas são enfáticos ao afirmar que a geração de hoje vive em
casas mais confortáveis e têm um poder de consumo que supera com folga
o padrão de vida das décadas anteriores, mas não há tempo para desfrutar.
"As pessoas cometem o erro de pensar que 20 minutos de compras
podem substituir a escassez de tempo para lazer causada pelo excesso
de horas de trabalho. De que adianta se endividar para ter o carro mais
caro para se estressar em engarrafamentos?", questiona-se Carley.
"Para escapar à armadilha da ditadura do consumo, basta controlar
melhor as finanças e ver menos "reality shows" sobre milionários.
Não é preciso virar "bicho-grilo" e se isolar numa cabana",
brincou Taylor.
Perigo:
o materialismo ameaça nosso bem-estar
RICHARD TOMKINS
DO ""FINANCIAL TIMES"
Será que é ir longe demais afirmar que, até muito recentemente, o motivo
condutor da história humana sempre foi a miséria? É fácil imaginar o
passado como alguma espécie de idílio bucólico, mas apenas se ignorarmos
o sofrimento perpétuo provocado pelas guerras, as pestes e a fome. Entre
uma coisa e outra, você poderia ter a esperança de não viver sob a sombra
excessiva do medo, das superstições e da perseguição religiosa, mas
não haveria maneira de escapar daquilo que o economista John Maynard
Keynes descreveu como o problema permanente da humanidade: a luta pela
subsistência.
Uma das conquistas mais espantosas da história econômica recente é o
fato de esse problema aparentemente permanente ter sido resolvido no
mundo industrializado avançado. A maior parte das pessoas nos países
desenvolvidos vive não num estado de carência, mas de superabundância.
As pessoas não se preocupam mais em saber se poderão pôr comida na mesa
dos filhos ou manter um teto sobre suas cabeças, mas qual pacote de
canais a cabo devem assinar, onde passar suas férias ou que grifes vestir.
Mas algumas pessoas não ficam satisfeitas nunca. Apesar de estarem mais
ricas, mais saudáveis e em maior segurança do que nunca, e apesar de
gozarem mais liberdades e oportunidades, continuam a se queixar: sobre
os índices crescentes de depressão e suicídio, sobre a criminalidade,
sobre o fato de os bons modos estarem caindo em desuso, sobre a obesidade,
os maus motoristas, o abuso de drogas, a hipercompetitividade, o materialismo
crescente e, sobretudo, sobre o spam.
O fato é que, no Ocidente, o aumento da produção econômica e do consumo
já deixou de ser acompanhado por um aumento no índice de felicidade
das pessoas. E, à medida que a distância entre as duas coisas aumenta,
ela chega perto de virar obsessão.
A Fundação Nova Economia, de Londres, e o Instituto Austrália, de Canberra,
fizeram relatórios sobre a busca da felicidade. Na semana passada a
Royal Society, a mais importante academia científica britânica, promoveu
uma conferência de dois dias sobre a ciência do bem-estar. No mês passado,
a revista ""New Scientist" dedicou uma série em duas
partes ao tema. E assim por diante.
Nível de exigência
As principais descobertas resultantes das pesquisas sobre felicidade
podem ser resumidas em poucas frases. Embora mais dinheiro seja garantia
de um grande aumento de felicidade quando se é pobre, cada dólar a mais
faz cada vez menos diferença a partir do momento em que as necessidades
básicas das pessoas foram satisfeitas. São muito mais importantes coisas
não materiais, tais como um casamento feliz e passar tempo com as pessoas
que se ama.
Mas o dinheiro e os bens materiais fazem diferença, sim, em um ponto:
as pessoas tendem a buscar status e, portanto, se julgam comparando-se
com os sinais visíveis do sucesso das outras.
Infelizmente, como observa o relatório da Fundação Nova Economia, essa
é uma competição que nunca tem fim, porque o nível de exigências não
pára de subir. Antigamente, possuir uma casa era sinal de status; hoje,
menos do que duas não serve.
Se as pessoas pudessem superar sua preocupação com o status, ficaria
claro qual é o caminho que leva à felicidade: elas deveriam trabalhar
menos, aceitando receber menos, em troca de mais tempo para passar com
seus familiares e amigos. Talvez você ache que isso nunca vai acontecer.
Mas, de acordo com Clive Hamilton, autor do relatório do Instituto Austrália,
nada menos do que 25% dos britânicos na faixa dos 30 aos 59 anos fizeram
exatamente isso nos últimos dez anos, aceitando voluntariamente ter
seus ganhos reduzidos para poderem melhorar sua qualidade de vida.
Nosso sistema econômico inteiro, com seus aumentos anuais de PIB programados,
é fundamentado no conceito de satisfazer o desejo por mais, e a publicidade
existe exclusivamente para ajudar a gerar esse desejo. Mas o que aconteceria
se as pessoas se convencessem de que o desejo de possuir mais, em lugar
de aumentar sua felicidade, na verdade constitui obstáculo a ela?
As pessoas sempre tiveram uma atitude ambivalente em relação à publicidade,
temendo que ela as ludibriasse, convencendo-as a comprar coisas de que
não precisam. Talvez isso explique um paradoxo: o de que, à medida que
a sociedade vem se tornando mais liberal, as atitudes em relação à publicidade
tenham evoluído no sentido oposto. Hoje não é mais possível fazer publicidade
de qualquer produto que possa ser vendido legalmente. As pessoas estão
exigindo que a publicidade opere dentro dos parâmetros de objetivos
sociais, até mesmo morais. Às proibições da publicidade de cigarros
agora se seguem chamados pela imposição de limites à publicidade de
outros produtos ""indesejáveis", tais como bebidas alcoólicas
e fast food. E cresce o clamor para que seja proibida a publicidade
voltada às crianças, movido em boa parte pelo temor de que elas estejam
sofrendo lavagem cerebral, com o intuito de levá-las ao consumismo.
Partindo disso, será apenas um passo curto defender a proibição da publicidade
voltada aos adultos, alegando que ela os faz infelizes. Isso nunca vai
acontecer, é claro; as pessoas sempre vão desejar bens materiais, de
modo que a publicidade sempre vai exercer um papel necessário. Mas será
que é possível imaginar um dia em que cada anúncio seja obrigatoriamente
acompanhado de um aviso do governo, algo como ""Perigo: -o
materialismo pode prejudicar seu bem-estar"?
A propensão a adquirir sempre mais é, afinal, muito semelhante ao tabagismo:
faz mal às pessoas, cria dependência e é muito mais fácil de ser abandonada
se todos o fizerem ao mesmo tempo. Assim, o interesse da felicidade
da maioria das pessoas seria mais bem atendido se a política social
fosse dirigida no sentido de marginalizar as pessoas que buscam status,
transformando-as em párias, de modo que os outros pudessem começar a
trabalhar e ganhar menos, tranquilos por saber que não apenas seriam
a maioria, como estariam fazendo a coisa certa.
Tradução de Clara Allain
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Poder de compra não eleva nível de satisfação, diz autor
DE NOVA YORK
Dinheiro realmente não traz felicidade -essa é a tese que norteia a
discussão do novo livro de Gregg Easterbrook, "Progress Paradox"
(paradoxo do progresso).
O autor -premiado jornalista, colaborador do "New York Times"
e do "Washington Post", entre outras publicações- diz que
um padrão de vida mais elevado, maior nível de renda dos países ricos
e mesmo o triunfo de instituições democráticas não se traduzem numa
escalada do grau de felicidade nos países ricos.
"De um modo objetivo, podemos dizer que, hoje, todas as pessoas
vivem melhor que na geração anterior", disse ele, em entrevista
à Folha. Mas Easterbrook, 50, culpa a mídia pelo mal-estar atual. Para
ele, há um "culto à insatisfação". "Boas notícias não
vendem jornal. A sociedade ocidental vive hoje numa cultura que enfatiza
as reclamações."
Folha - No seu livro, o sr. avalia que os progressos materiais alcançados
pelos países ocidentais não têm sido acompanhados pelo crescimento do
nível de contentamento individual das pessoas. Por quê?
Gregg Easterbrook - A sociedade ocidental vive hoje numa cultura que
enfatiza as reclamações. A mídia dá demasiada importância a fatos que
alimentam a raiva das pessoas. Apesar de a vida hoje ser melhor do que
no passado, as pessoas estão tão focadas nos problemas que não conseguem
ver isso.
Folha - O sr. poderia detalhar como a mídia exerce um impacto tão negativo
no grau de felicidade?
Easterbrook - A mídia constantemente só reporta as notícias ruins, o
que é compreensível porque essas são as notícias que a sociedade tem
mais urgência em ouvir. Boas notícias não vendem jornal. Como a mídia
ficou muito mais eficiente em reportar notícias ruins em todo o mundo,
as pessoas assistem a uma constante veiculação de desastres. Num mundo
com 6 bilhões de habitantes, sempre alguma coisa errada vai acontecer.
Esse tipo de divulgação provoca a sensação de que tudo está errado no
mundo. Mesmo nos países em desenvolvimento, as coisas têm melhorado
para a maioria das pessoas.
Folha - Mas a mídia não tem a obrigação de informar sobre os fatos ruins?
Easterbrook - Claro que não podemos esperar só notícias agradáveis.
Não queremos apenas jornalistas sorridentes dizendo que tudo vai bem.
O mundo está cheio de injustiças e problemas. A questão é que, como
a mídia tem mostrado, parece que não há nada de positivo em andamento.
Folha - Esse mal-estar é um "privilégio" das sociedades dos
países desenvolvidos?
Easterbrook - Eu acredito que, quanto mais as economias dos países em
desenvolvimento prosperarem, mais veremos esse tipo de fenômeno ocorrer.
As pessoas também acabarão por ficar mais concentradas nas reclamações.
Primeiro, há um estágio no qual as energias estão concentradas no sucesso
material e na sobrevivência: comer, vestir etc. Uma vez atingidos esses
objetivos, há mais tempo para ficar aborrecido e insatisfeito, e aí
entra a mídia.
Claro que não ter acesso à saúde ou à alimentação é terrível. No entanto
as pessoas cometem um erro ao acreditar que bens materiais trazem felicidade.
Estudos nos EUA mostram que, entre pessoas que têm uma rendimento anual
de US$ 10 mil, o incremento da renda aumenta o grau de felicidade na
mesma medida. Acima disso, o aumento da aquisição de bens materiais
não é proporcional à evolução do grau de satisfação.
Folha - Quando a satisfação pessoal e a melhoria do padrão de vida tomaram
trajetórias diferentes?
Easterbrook - Os estudos psicológicos sobre o tema começaram nos anos
50. Desde então, vemos que não há um declínio no grau de satisfação
das pessoas, mas o aumento dos padrões de vida não é acompanhado por
um aumento da felicidade. Os sinais são claros. Em todos os países desenvolvidos,
a depressão toma uma dimensão de epidemia.
Folha - O que a mídia poderia fazer para atenuar esse grau de insatisfação?
Easterbrook - A mídia tem de achar um meio de informar as boas notícias
sem parecer uma Poliana. Tem de equilibrar a carga de notícias ruins
com o que há de positivo. Quando vemos um país como o Brasil, é importante
que os jornalistas se questionem: "Esses problemas são grandes
em comparação com quais países?". Convém lembrar as previsões de
explosão demográfica e catástrofes ambientais feitas para o país. O
quadro hoje no Brasil é outro.