NOVO PIB
Daniel Kahneman e grupo de economistas planejam lançar indicador de
bem-estar da população até o final de deste ano
Nobel elabora "índice de felicidade nacional"
Jefferson Coppola - 25.jan.05/Folha Imagem
Passistas sorriem em ensaio em SP; em pesquisa de 2001, menos de 1/3
no Brasil se disse muito feliz
MARCELO BILLI
DA REPORTAGEM LOCAL
A cada trimestre centenas de analistas, em quase todas as economias
do planeta, se debruçam sobre as contas nacionais, checando a quantas
anda a saúde econômica de seus países. Um grupo de psicólogos e
economistas norte-americanos espera que isso mude bastante no futuro
e já tem o nome do indicador que, desejam, vai rivalizar em
importância com os números do PIB (Produto Interno Bruto): a "Conta
de Bem-Estar Nacional", que, em linhas gerais, vai medir a felicidade
da população.
No grupo está o psicólogo e Nobel de Economia (2002) Daniel Kahneman,
que trabalhará com economistas e outros profissionais na criação de
questionário e metodologia para medir a satisfação das pessoas com
suas próprias vidas. Financiam a pesquisa o instituto Gallup e o
próprio governo norte-americano.
Mina de ouro
Para o instituto de pesquisas, saber medir o nível de felicidade das
pessoas de forma mais eficiente pode ser uma mina de ouro, já que não
faltariam empresas dispostas a pagar para saber como tornar seus
funcionários mais felizes e, de quebra, mais produtivos. Para o
governo, saber o quão insatisfeita a população está com suas próprias
vidas é um passo a mais para encontrar os motivos e adotar política
para eliminá-los.
"Medidas de riqueza ou saúde não contam toda a história sobre como
uma sociedade como um todo está vivendo. Uma medida que mostre como
as pessoas gastam seu tempo livre e como elas avaliam suas
experiências pode ser um indicador muito útil de bem-estar", diz
Kahneman.
A ligação entre riqueza e felicidade parece mais tênue do que as
pessoas tendem a acreditar. De fato, em todas as pesquisas feitas até
agora, as pessoas ricas tendem a responder que são mais felizes do
que as que fazem parte do grupo mais pobre de uma sociedade.
Mas algo que começou a intrigar os pesquisadores foi que, à medida
que os países se tornaram cada vez mais ricos, a população como um
todo parecia não se tornar mais feliz.
Um exemplo? Em 1975, 39% das pessoas mais ricas nos EUA diziam ser
muito felizes. Em 1998, a cifra caiu para 37%. O mesmo ocorreu com as
famílias mais pobres. Isso apesar de os dois grupos terem se
beneficiado do crescimento econômico do período, terem acesso a maior
número de bens e serviços e renda maior. Ou seja, quase todos estavam
mais ricos, mas pareciam ou não estarem felizes por isso ou sequer
notar a diferença entre a sua situação em 1975 e em 1998. Para a
sociedade como um todo, parecia valer a máxima "dinheiro não traz
felicidade".
O economista Richard Layard, da London School, arrisca uma explicação
para o aparente paradoxo. "Quando nosso padrão de vida melhora, nós
adoramos no início, mas, quando nos acostumamos, a mudança faz pouca
diferença." Layard diz que as pessoas não comparam seu atual padrão
de vida com o passado, mas preferem, conscientemente ou não, comparar
sua atual situação com a de seus pares.
O fato de as pessoas medirem sua satisfação em relação às demais
pessoas, e não em sua própria situação, também contribui para o
paradoxo. Layard dá um exemplo. Questionados sobre se preferiam
ganhar US$ 50 mil anuais, enquanto as demais pessoas ganhariam US$ 25
mil, ou se preferiam ganhar US$ 100 mil, enquanto as demais pessoas
ganhariam o dobro, a maioria dos entrevistados optam pela primeira
opção. Ou seja, preferem ser mais pobres se forem, relativamente,
mais ricos que os demais.
O novo indicador, que Kahneman espera poder começar a divulgar até o
final deste ano, pode ajudar governos e instituições a resolver o
quebra-cabeça.
Layard, um pouco mais radical do que gostaria um economista ortodoxo,
acha que a insatisfação atual é gerada pelo excesso de rivalidade,
que levaria as pessoas a optarem por trabalhar demais, consumir mais.
Se o padrão de comparação é sempre o quanto os outros ganham ou
possuem, diz ele, as pessoas nunca param para comparar o tempo que os
demais reservam para se divertir ou descansar.
Ele propõe nada menos do que aumento na tributação do consumo para
corrigir essa "distorção" e incentivar as pessoas a consumir menos
bens e mais lazer, em que, traduzindo o economês, lazer significa
mais tempo livre.
Brasileiros felizes?
Para o Brasil, onde mais da metade da população vive em condições
piores do que aquelas enfrentadas pelos 19% dos norte-americanos
pobres que, em 1975, responderam ser felizes, a discussão parece
sequer fazer sentido. De qualquer maneira, Alan Krueger, economista
de Princeton e parte do grupo que desenvolve a "Conta de Bem-Estar
Nacional" diz acreditar que todos os Estados se interessarão em medir
a satisfação de suas populações. Seja para desenhar políticas
públicas, seja para avaliar suas gestões.
Na pior das hipóteses, a pesquisa ajudará a jogar alguma luz no mito,
ou fato, que diz que o brasileiro está entre os povos mais alegres do
mundo. Já existem, claro, algumas pesquisas sobre felicidades, mas se
baseiam, na maioria das vezes, em pergunta direta.
Os especialistas alertam que, nesse caso, não se trata de uma boa
medida de bem-estar, já que alguém pode responder que é muito ou
pouco feliz em determinado dia simplesmente porque teve uma péssima
noite, acabou de se divorciar ou, sem aparente motivo, acordou de mau
humor.
O que essas pesquisas dizem? A última, a World Values Survey
(Pesquisa Mundial de Valores), de 2001, não coloca o brasileiro entre
os mais felizes. Estamos no grupo de países em que cerca de 20% a 29%
da população diz ser muito feliz. Nigerianos e mexicanos são bem mais
felizes, com mais de 50%, informa a pesquisa. Dos norte-americanos,
entre 40% e 49% dizem ser muito felizes.
Brasileiros ficam atrás até da Argentina, onde de 30% a 39% da
população dizia considerar-se muito feliz. Note-se que a pesquisa foi
realizada antes de estourar a crise do país vizinho, que, no entanto,
já enfrentava uma das piores recessões de sua história.
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SAIBA MAIS
Keynes moldou conceitos do PIB na década de 30
DA REPORTAGEM LOCAL
Os números do PIB (Produto Interno Bruto) são divulgados
trimestralmente e, ainda que muitas pessoas não saibam como ele é
calculado, todas ficam sabendo se a economia está crescendo ou
encolhendo quando os números são publicados.
Apesar da "popularidade", o indicador só surgiu em meados deste
século.O economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946), moldou,
na década de 30, todos os conceitos -como renda, investimento,
poupança, consumo- em que se basearam os sistemas de contas
nacionais. A partir daí, foram vários os encontros internacionais,
reuniões, tentativas, idas e vindas para criar sistemas compatíveis
para todos os países.
Depois de diversos aperfeiçoamentos, em 1993 surgiria o sistema que
conhecemos hoje, ao qual alguns países, Brasil inclusive, ainda estão
se adaptando.
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OS BRASILEIROS SÃO FELIZES?
Nossa felicidade é triste como nenhuma outra
CHICO MATTOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ah, como somos felizes. Ontem fui comprar pão e, ainda zonzo de sono,
recebi na cara o sorriso atirado pela atendente. No caixa, o dono da
padaria fez alguma referência bem-humorada ao tempo chuvoso e, ao dar
as moedas do troco, desejou-me um bom dia cheio de sinceridade e
gentileza.
Ao chegar em casa, pus o saquinho de pães em cima da mesa e, quando
vi, ele também sorria para mim, espalhando pela sala a frase
acolhedora: "Agradecemos sua preferência".
Somos muito felizes, não resta a menor dúvida, e quando alguém, num
evidente ato de leso-patriotismo, começa a achar que não é bem assim,
eis que surge uma nova pesquisa que comprova, através dos mais
apurados métodos científicos, nossa esmagadora supremacia no ramo da
felicidade.
Não é questão de saber por que somos felizes -somos, e ponto, do
mesmo jeito que as araras voam, os gambás fedem, e os bois ruminam. É
da nossa constituição física, do nosso organismo: a felicidade, e só
ela, nos distingue dos outros povos, como uma marca de nascença.
É claro que as coisas não são bem assim -mas é assim que parecem ser.
Num primeiro olhar, a impressão que se tem é que nossa felicidade,
além de irrestrita, é una e indivisível.
Ao contrário dos esquimós, que são capazes de enxergar dezenas de
tons na cor branca, nós, aqui, só conseguimos conceber um único
modelo de felicidade, sem qualquer tipo de gradação ou matiz.
Pairando sobre nossas cabeças, ela se mistura com tudo, confundindo-
se com alegria, com entusiasmo, com irreverência, com histeria, com
tudo aquilo que pode ser encontrado num comercial de cerveja ou num
outdoor de roupas íntimas -e o que se vê, no fim das contas, é a
formação de uma espécie total de satisfação, avassaladora, ofuscante,
quase mortal.
O fato de o brasileiro se declarar tão feliz pode querer dizer muita
coisa sobre nós mesmos -menos, é claro, se nossa felicidade é
verdadeira.
Pode significar, por exemplo, que somos mentirosos ou ingênuos ou
conformistas ou míopes ou falastrões ou -por que não?- sinceros e
honestos e realmente satisfeitos com a vida que levamos. É difícil
encontrar a interpretação correta para isso.
O que é possível, sempre, é escutar os gritos do nosso contentamento.
Nossa felicidade berra. E está só. E quer atenção, como uma
criancinha mimada, e não seria surpresa nenhuma se, por baixo de
tudo, ela escondesse uma espécie muito particular de melancolia.
Nossa felicidade, eu desconfio, é triste como nenhuma outra.
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Chico Mattoso, 26, é escritor e edita a revista "Ácaro"
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Meu erro foi confundir dor com felicidade
SANTIAGO LAZARIAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
"É o câncer que me faz sorrir." Respondi, para surpresa do doutor
Robert Robson. O médico esboçou um sorriso, recolheu meus exames,
degustou minhas enzimas e declarou: "Não há motivo para alegria."
Por que não, se eu crescera na praia? Pulsava de sol, vivia de brisa
e afundava os pés na lama e na areia. Era o sol que me fazia franzir.
E o sal, para não arder. Virava o rosto, fechava os olhos, escondia o
êxtase, mas expunha pele, a pele. A pele que me faz penar.
Com o tempo, vaidade; mais vício do que latinidade. Exercitar os
músculos faciais, criar um curinga, proteger minha tela. Sorrindo
para não despencar. Marcando o rosto para não me esquecer. "Vaidade,
doutor, vaidade. É a vaidade que me faz franzir."
Esticando as rugas para trás das orelhas. Mantendo o sorriso, apesar
das olheiras. O câncer foi avançando, sob minha pele cansada. Parecia
mais refinado, soando em nasais. Tudo parecia, quando eu provava
mais. De Portugal para a Colômbia, minha língua, latina, morta. "Foi
o sol, foram as drogas, foi essa vida toda que me entorta." O doutor
escondeu sua alegria. "Enfim, alguém fez por merecer." Se não podia
tirar o câncer da minha pele, se não podia tirar o sol do meu sangue,
se não podia tirar uma vida de mim, ao menos do meu rosto poderia.
Poderia arrancar toda a minha alegria. "É melhor internarmos você
aqui em Chicago." "Não ria, doutor, não ria. Mas a desgraça foi a
minha alegria." "A alegria foi a minha desgraça", ele corrigiu, como
se eu não dominasse sua língua. Beijei sua mão e reafirmei, "foi só
para rimar, doutor."
Ele então se aproveitou da minha saliva. E se umedeceu com
ironia. "Não ria, Sebastian, não ria. Mas não há mais tempo para
cirurgia." Nessa vida de excessos, não há mais tempo para nada. Nessa
vida de excessos, não há nem mais tempo pra vida. Mas se ele não
podia tirar o câncer da minha pele, se não podia arrancar o sol do
meu sangue, se não podia tirar uma vida de mim, ao menos no Brasil eu
poderia. Poderia me queimar numa ilha.
"Escute aqui, não há graça nenhuma. Sua doença é grave, séria, não é
prosa nem poesia." Ele estava acostumado com lágrimas, enzimas,
saliva. Mas meu sorriso automático ia muito além dos exames clínicos.
Cínico. Tomava meu rosto como zombaria.
Então pedi desculpas pela minha doença. Pedi desculpas pelas minhas
rimas. Pedi desculpas por uma vida de excessos, mas não me arrependo,
se a recebi sem filtros ou bloqueios.
"Foi apenas força de expressão, doutor. Foi só a expressão no meu
rosto. Não ria, doutor, não ria. Meu erro foi confundir dor com
felicidade."
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Santiago Nazarian, 27, escritor, é autor de "A Morte Sem Nome",
Editora Planeta