O sorriso do macaco
Tad Motoyama/Associated Press


Folha de São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005

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Neurociência revela que formas de riso são encontradas em várias espécies de mamífero, de roedores a primatas


O sorriso do macaco

Tad Motoyama/Associated Press

Chimpanzé brinca com graveto em zoológico dos Estados Unidos; comportamentos que lembram o riso foram vistos no primata

REINALDO JOSÉ LOPES DA REPORTAGEM LOCAL

"No princípio era o Verbo... mas será que o Verbo era engraçado?". É um começo para lá de improvável para um artigo científico na sisuda publicação americana "Science" (www.sciencemag.org), que insinua de cara o tema um tanto controverso do texto: o riso. O dos animais, bem entendido.

Contudo, Jaak Panksepp, neurocientista da Universidade Estadual de Bowling Green (EUA) que estuda o tema, apressa-se a explicar que o tom engraçadinho não foi simplesmente uma exigência do tema. "Era a edição de 1º de abril da "Science", e por isso eles sugeriram que eu escrevesse um texto mais bem-humorado", conta o pesquisador, cujo principal interesse é desvendar como as emoções (humanas ou animais) se manifestam no cérebro.

O trabalho de Panksepp e o de outros pesquisadores está só engatinhando ("tanta gente trabalhando com o medo e tão poucas com a alegria", brinca ele), mas já revela que a capacidade para coisas parecidas com gargalhadas é, no mínimo, comum a muitos mamíferos. Está fundamentada em áreas bastante primitivas da mente animal e, provavelmente, desempenha papel importante na hora de tecer a trama de alianças sociais que ajuda a manter as espécies coesas.

Fiação básica

A premissa aparentemente absurda de que os bichos riem fica menos maluca quando se levam em conta as evidências de que todos os mamíferos compartilham um mesmo conjunto básico de sistemas emocionais. "Eu dou a cada um deles nomes em letras maiúsculas, para deixar claro que se tratam de sistemas cerebrais específicos que ainda não são muito bem compreendidos: BUSCA, RAIVA, MEDO, LUXÚRIA, CARINHO, PÂNICO E BRINCADEIRA", diz Panksepp.

Para o neurocientista, é improvável que a vaca no pasto consiga perceber as nuances mais complexas desse conjunto, como empatia, culpa ou vergonha. "Mas podemos avaliar se os sistemas cerebrais se parecem com os nossos -e, nas regiões inferiores do cérebro, eles quase certamente o fazem." Seria bastante razoável supor que o lado instintivo do riso estaria relacionado ao sistema BRINCADEIRA, mas a hipótese só tem se tornado passível de teste graças a uma descoberta feita por Panksepp e seus colegas: ratos que, pode-se dizer, "riem".

Na verdade, o termo técnico usado pelos pesquisadores é "gorjeio" -um tipo de ruído com 50 kHz de freqüência que os roedores jovens emitem quando brincam entre si. A análise sonográfica sugere que alguns "gorjeios" podem ser mais alegres que os outros, como as risadas humanas. Quando humanos de laboratório fazem cócegas nos ratinhos de forma brincalhona, eles emitem com facilidade o mesmo tipo de som. Mais que isso: podem ser condicionados a pedir mais cócegas e, o que é crucial, criam laços sociais com os pesquisadores.

Os bichos preferem passar mais tempo com roedores "bem-humorados" do que com os de "cara fechada". Os 50 kHz mágicos também podem ser provocados com estimulação neuroquímica dos sistemas cerebrais que lidam com a dopamina, um tipo de neurotransmissor (mensageiro químico das células nervosas). Curiosamente, são esses mesmos circuitos que se ativam durante as gargalhadas humanas. Eles também têm papel importante no chamado sistema de recompensa, responsável pela resposta do sistema nervoso a estímulos prazerosos e potencialmente viciantes, como comida, sexo, álcool e drogas.

A lista de espécies que apresentam esses sons específicos na hora da diversão ainda é curta, até pela novidade do tema: além dos ratos, cães e chimpanzés. Nesses grandes macacos, a vocalização é acompanhada de procedimentos comuns entre os engraçadinhos humanos (e roedores), especialmente as crianças: um bicho corre atrás do outro e faz cócegas no companheiro.

"Sempre estamos prontos a adicionar mais uma espécie se aparecerem evidências boas", diz Panksepp. De qualquer maneira, a variedade evolutiva do conjunto já sugere uma característica geral dos mamíferos, já que a lista apresenta um primo-irmão do homem (o chimpanzé), um primo de terceiro grau (os roedores são considerados muito próximos dos primatas) e o outro de quinto grau (carnívoros como os cães estão bem mais distantes do Homo sapiens na genealogia dos mamíferos).

Piadistas de nascença

Na tentativa de investigar as bases hereditárias do sistema, Panksepp e seus colegas conseguiram selecionar artificialmente, por cruzamento guiado, os ratos que eram mais "gorjeadores". "Também selecionamos animais que gorjeavam pouco. Agora temos linhagens nas quais alguns são mais gorjeadores, outros são menos e outros são normais, o que deve se tornar útil em futuras análises genéticas", conta ele.

Uma coisa é certa: os neurocientistas já mostraram que áreas primitivas do cérebro estão envolvidas ao funcionamento mais básico do riso. São a área ventral tegmental e o estriado ventral (este último, não por acaso, ligado ao sistema de recompensa). A área "nobre" do cérebro humano, o córtex, considerado a sede da consciência, comunica-se com essas regiões por meio do córtex frontal medial, que compartilha "fiação" com as áreas do riso.

Essa conexão explica, para Panksepp, o fato de que capacidades tipicamente humanas e "elaboradas", como a linguagem articulada, tenham sido cooptadas para usos indutores do riso (quem nunca abriu um livro de piadas que atire a primeira pedra). Mas o fato de mesmo filósofos e estadistas serem capazes de cair na gargalhada ao ver uma sessão de tortas na cara sugere que os circuitos antigos do riso ainda estão muito bem, obrigado. Segundo Panksepp, embora ninguém ainda tenha investigado a possível existência de senso de humor entre os ratos "gorjeadores", o mais provável é que ele dependa fortemente desse lado pastelão. O mesmo deve valer para outras espécies de mamífero.

"Hoje, estamos estudando os sistemas cerebrais e as substâncias químicas que fazem os animais ficarem felizes e brincalhões. Achamos que isso poderá nos ajudar a entender esses mesmos processos importantes em nossas próprias mentes, e a desenvolver novas idéias para o tratamento da depressão", diz o pesquisador. Para Panksepp, ainda é cedo para arriscar um motivo definitivo para a evolução do riso, mas uma coisa está clara: a vida social plena é impossível sem ele. Sem falar nos humorísticos de TV.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1206200501.htm

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