“Quem tem mais direito à vida: um chimpanzé na floresta ou um feto humano no útero da mãe?”
Defensor do aborto, da eutanásia e dos direitos dos animais, Singer é um dos bioeticistas mais polêmicos do planeta
Herton Escobar escreve para “O Estado de SP”:
"O chimpanzé", responde, sem medo, o professor de bioética Peter Singer, da Universidade de Princeton, nos EUA. "Só o fato de ser membro da espécie Homo sapiens não é garantia de direito à vida", diz ele.
Defensor do aborto, da eutanásia e dos direitos dos animais, Singer é um dos bioeticistas mais renomados e polêmicos do planeta. Fala o que muitos se atreveriam a pensar, mas jamais teriam a coragem de dizer.
"Não acho que o feto tem direito à vida porque ele não é um ser autoconsciente."
Os chimpanzés, gorilas e outros primatas superiores, por outro lado, são animais plenamente conscientes de sua existência, diz o professor.
Singer, inclusive, é um dos fundadores do Great Ape Project, iniciativa internacional que busca garantir aos primatas os mesmos direitos básicos dos seres humanos: vida, liberdade e proibição da tortura.
Australiano, vegetariano e com quase 60 anos, Singer é fundador da Associação Internacional de Bioética e autor de Libertação Animal, de 1975, um dos livros mais influentes sobre o movimento de defesa dos direitos dos animais.
Na semana passada, esteve em SP para participar do Congresso Pitágoras 2006 e falou a “O Estado de SP” sobre algumas de suas posições mais polêmicas.
Eis a entrevista com Peter Singer:
- Há um projeto de lei no Congresso brasileiro que visa a descriminalizar o aborto, hoje permitido apenas em casos de estupro e risco de vida para a mãe. Qual a posição do senhor sobre isso?
- Eu sou a favor de que as mulheres possam fazer abortos quando desejarem. Especialmente se o aborto for feito quando o feto ainda é incapaz de sentir dor. Minha preocupação maior é com a dor e o sofrimento. Até 20 semanas de gestação, quando ocorre a maioria dos abortos, o feto não está nem mesmo consciente, por isso não acredito que tenha direito à vida. Por essa razão, eu permitiria às mulheres escolher se querem fazer um aborto até esse período. Após 20 semanas, eu ainda não seria completamente contrário, mas seria mais flexível à adoção de restrições.
- O que o senhor está dizendo certamente vai deixar muita gente indignada. Imagino que deva receber muitas críticas por isso.
- O conceito geral é o de que se você é um ser humano, você automaticamente tem direito à vida. Esse é um dos problemas com o debate do aborto: as pessoas que são contra dizem que o feto é um ser humano e, portanto, tem direito à vida. Eu acho que a primeira parte está correta: o feto é um ser humano. Mas não necessariamente a segunda. Não acho que o simples fato de pertencer a uma espécie seja garantia de direitos morais; acho que você adquire direitos morais pelo indivíduo que você é. Se você não é um ser autoconsciente, não acho que tenha direito à vida. A idéia geral é, muitas vezes, religiosa: as pessoas acreditam que o ser humano possui uma alma e que o homem é feito à imagem de Deus ou coisa desse tipo. Acho que muitas das pessoas que criticam minhas opiniões são contra o aborto por questões religiosas, mesmo que não usem esse argumento explicitamente.
- O mesmo conceito se aplicaria a um embrião humano?
- Certamente. É mais difícil ainda, até para uma pessoa religiosa, dizer que um embrião prematuro tem direito à vida. Como até alguns católicos argumentam, o embrião em seus estágios iniciais de desenvolvimento é apenas um aglomerado de células, e cada uma dessas células pode se tornar um indivíduo – já que, às vezes, o embrião se divide e dá origem a dois ou mais indivíduos.
- Nesse caso, então, não haveria problema ético nas pesquisas com células-tronco embrionárias?
- Acho que não. Eu acho que você deve obter o consentimento dos donos dos gametas (os pais). Se eles estiverem dispostos a doar seus gametas ou seus embriões para pesquisa científica, não vejo nenhum problema ético nisso.
- Considerando sua posição com relação aos primatas, então, seria correto dizer que o senhor dá mais valor à vida de um chimpanzé do que à de um feto humano?
- É verdade; não nego isso. O chimpanzé é um ser autoconsciente. Os chimpanzés são capazes de se reconhecer no espelho, eles demonstram pensamento e planejam o que fazem. Eu diria até que têm um certo senso de moralidade na maneira como lidam uns com os outros. Eles sofrem quando alguém próximo a eles morre. Portanto, é preciso reconhecer que os chimpanzés têm um estado de vida mental e emocional que um feto não tem, porque seu cérebro não está suficientemente desenvolvido. Então é verdade: eu diria que os chimpanzés têm direitos que superam os de um feto humano. É claro que, normalmente, o feto é algo que a mulher ama e deseja, e por isso ele merece nossa proteção. Mas se a mulher não quer a gravidez, e você considera apenas os direitos do feto isoladamente, acho que ele não tem direito à vida, enquanto o chimpanzé tem.
- Ainda sobre reprodução humana, há muita expectativa (e preocupação) sobre a futura possibilidade de selecionar a cor dos olhos, cabelos e outras características de uma criança por meio de embriões in vitro. Além da seleção de sexo, que já é possível. Até que ponto devemos nos permitir escolher as características de nossos filhos?
- Esse é, certamente, um dos grandes dilemas que teremos de enfrentar nos próximos anos. No caso da escolha de sexo, eu permitiria a seleção para fins de equilíbrio familiar – ou seja, quando um casal já possui crianças de um sexo e deseja escolher o sexo do próximo filho. Mas não permitiria a escolha desde o início, pois temo que isso levaria a um aumento desproporcional do número de meninos, com conseqüências indesejáveis 20 anos mais tarde.
- E sobre outras características?
- Aí é mais difícil. Não acho que a cor dos olhos seja uma preocupação. Acho que o dilema será a seleção de habilidades e aptidões especiais -assumindo, é claro, que essas tenham uma base genética que possa ser selecionada. Se os cientistas forem capazes de identificar, geneticamente, embriões que tenham melhor aptidão educacional ou melhor aptidão esportiva, podemos certamente imaginar casais que vão querer fazer essa seleção. Isso seria um problema. Não sou, a princípio, contra qualquer tipo de seleção, mas me preocupo com a questão da eqüidade: se temos uma sociedade que já é profundamente dividida em termos de riqueza, e se apenas as pessoas ricas puderem ir a uma clínica e selecionar os melhores embriões, vamos transformar essa divisão econômica em uma divisão genética. Não gostaria de ver isso acontecer.
- E quanto à eliminação de doenças genéticas, via seleção de embriões? Até que ponto podemos, eticamente, tentar "melhorar" a raça humana?
- Se ignorarmos a questão da eqüidade, imaginarmos que todas as pessoas têm acesso a esse tipo de seleção e considerarmos apenas coisas que todos concordam ser uma melhoria, não vejo problema nisso. Nós já tentamos melhorar as gerações futuras de muitas maneiras - por exemplo, por meio da educação - e se pudermos fazer a mesma coisa por meio da genética, acho que seria apenas um outro caminho para chegar ao mesmo objetivo.
- Muitas pessoas chamariam isso de eugenia.
- Você pode usar esse rótulo se quiser. É claro que é um rótulo que cheira mal, porque foi usado pelos nazistas, mas isso já é praticado nos países que permitem o aborto. Nos EUA, qualquer mulher que engravida após os 35 anos é indicada a fazer um teste genético por seu médico. Se o teste revela que a criança tem síndrome de Down ou outra doença genética grave, mais de 80% das mulheres optam por interromper a gestação. Portanto, é uma seleção que já está sendo feita, com o apoio da maioria dos casais. Há uma sensação de que as pessoas não querem ter filhos com problemas cromossômicos graves, e isso é absolutamente razoável. (O Estado de SP, 10/5)