O texto que segue é a transcrição, revista e corrigida pelo autor, da conferência-debate pronunciada por André Comte-Sponville no dia 18 de outubro de 1999, no âmbito dos Lundis Philo (Segundas-feiras de Filosofia), no Piano'cktail, em Bouguenais (44340).
Vou falar, então, da felicidade... Confesso que, diante de tal tema, estou dividido entre dois sentimentos opostos. Primeiro, o sentimento da evidência, da banalidade mesmo: porque a felicidade, quase por definição, interessa a todo o mundo (lembrem-se de Pascal: "Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... E esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar..."), e deveria interessar ainda mais ao filosofo. Tradicionalmente, historicamente, desde que os gregos inventaram a palavra e a coisa philosophia, todos sabem que a felicidade faz parte dos objetos privilegiados da reflexão filosófica, que é até um dos mais importantes e dos mais constantes. Vejam Sócrates ou Platão, Aristóteles ou Epicuro, Spinoza ou Kant, Diderot ou Alain... "Não é verdade que nós, homens, desejamos todos ser felizes?" A busca da felicidade é a coisa mais bem distribuída do mundo.
No entanto, ao mesmo tempo que esse sentimento de evidência ou de banalidade, tenho também o de certa singularidade, certa solidão, para não dizer de certa audácia: esse tema, que pertence desde há tanto à tradição filosófica, a maioria dos filósofos contemporâneos - digamos, os que dominaram a segunda metade do século XX - tinha quase completamente esquecido, como se de repente a felicidade houvesse deixado de ser um problema filosófico. Foi o que surpreendeu meus colegas, quando publiquei meu primeiro livro, o Traité du désespoir et de la béatitude... Parecia-lhes que eu reatava com velhas noções - a de felicidade, a da sabedoria... - que lhes soavam obsoletas, arcaicas, superadas, que eu filosofava, foi o que me disse na época meu ex-professor do curso preparatório para a École Normale Supérieure, como já não se fazia "havia séculos", acrescentara ele, eu nunca soube se era um elogio ou uma crítica, "como já não se ousa fazer..." Em suma, eu estava com alguns séculos de atraso, e não deixaram de me chamar a atenção para isso... Serão quase sempre os mesmos que, alguns anos depois, me acusaram de seguir a onda (que onda? A da sabedoria, da filosofia antiga ou à antiga, da ética, da felicidade...). não mudei muito, porém, nem eles. O público é que mudou, e tanto melhor se eu tiver alguma coisa a ver com isso. Meu primeiro livro apareceu em 1984: parecia então, de fato, que eu estava com vários séculos de atraso... Depois veio o sucesso, pouco a pouco, e compreendi que eu estivera uns dez anos adiantado. Não me gabo. O que são dez anos para a filosofia? Mas também não tenho por que me envergonhar. A verdade é que o passado da filosofia está sempre diante de nós, que nunca terminaremos de explorá-lo, de compreendê-lo, de tentar prolongá-lo... E que foi por não ter medo de parecer superado ou atrasado que talvez, às vezes, eu tenha estado um pouco adiantado...
O fato é que meu ponto de partida, em filosofia, foi reatar com essa velha questão grega e filosófica, a questão da felicidade, da vida boa, da sabedoria. Não por gosto de remar contra a correnteza, mas porque eu tinha vontade de fazer filosofia como a faziam os mestres que eu apreciava e admirava, apesar de alguns deles terem morrido haviam vários séculos: os gregos primeiro, é claro, mas também Montaigne ou Descartes, Spinoza ou Alain... Nesse caminho, aliás, havia pelo menos um contemporâneo que me precedera: Marcel Conche. Depois outro, que, sem o seguir pessoalmente, me incentivava a explorá-lo: Louis Althusser. Segui o exemplo ou o conselho deles. Subi muito a montanha, na história da filosofia, para tentar avançar um pouco. Não tinha escolha: não teria podido filosofar de outro modo.
Em suma, quis reatar não apenas com a etimologia, que não passa de um pequeno aspecto da questão, mas com essa tradição filosófica que faz que a Philosophia, como diziam os gregos, seja, etimológica e conceitualmente, o amor à sabedoria, a busca da sabedoria, sabedoria que se reconhece de fato, para quem a atinge e segundo a quase totalidade dos autores, por uma certa qualidade de felicidade. Se a filosofia não nos ajuda a ser felizes, ou a ser menos infelizes, para que serve a filosofia?
O filósofo que mais me marcou, durante todos os meus anos de estudo, mais ainda que Spinoza, mais ainda que Marx ou Althusser, foi sem dúvida Epicuro, que descobri no curso preparatório e a quem mais tarde consagrei minha dissertação de mestrado. Fiz logo minha a belíssima definição que ele dava da filosofia. Lembrem-se da primeira aula de filosofia que vocês tiveram, vocês que chegaram ao último ano do segundo ciclo... Há uma pergunta que os professores de filosofia fazem quase inevitavelmente no colegial (eu próprio fui professor de filosofia por vários anos) na primeira aula do ano, no início do mês de setembro. É preciso explicar a adolescentes que nunca estudaram filosofia o que ela é, em outras palavras, o que eles vão estudar, à razão de oito, cinco ou três horas por semana, conforme o curso, durante todo um ano; o que é essa nova disciplina - nova para eles! -que se chama desde há tanto tempo filosofia... Contaram-me que um colega, na primeira aula do ano, à pergunta "O que é a filosofia?" respondia: "A filosofia é uma coisa extraordinária. Faz vinte anos que ensino e continuo sem saber o que é!" Se fosse verdade, eu acharia muito mais inquietante do que extraordinário. O que poderia valer uma disciplina intelectual que não fosse capaz nem sequer de se definir? Mas não creio que seja assim. A verdade é que é perfeitamente possível responder à pergunta "O que é a filosofia?" e até mesmo de várias maneiras diferentes - essa pluralidade mesma já é filosófica. Quanto a mim, adorei a resposta que Epicuro dava a essa pergunta. Ela assume devidamente a forma de uma definição: "A filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz". Gosto de tudo nessa definição. Gosto em primeiro lugar de que a filosofia seja uma "atividade", energeia, e não apenas um sistema, uma especulação ou uma contemplação. Gosto de que ela seja feita por "discursos e raciocínios", e não por visões, bons sentimentos ou êxtase. Gosto enfim de que ela nos proporcione "uma vida feliz", e não apenas o saber e, menos ainda, o poder... Ou, em todo caso, de que ela tenda a nos proporcionar uma vida feliz. Porque, se eu tinha uma reserva a fazer, e tenho, a essa bela definição de Epicuro, é que não estou convencido de que tenhamos, nós, modernos, os meios de assumir o belo otimismo grego ou a bela confiança grega. Onde Epicuro escrevia que "a filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz", eu diria antes, mais modestamente, "que tende a nos proporcionar uma vida feliz". Fora essa reserva, a definição, que data de vinte e três séculos atrás e que me ilumina já há quase trinta anos, continua me convindo. O que á a filosofia? Para dizê-lo com palavras que sejam minhas (mas vocês verão que minha definição está calcada na de Epicuro), responderei: a filosofia é uma prática discursiva (ela procede "por discursos e raciocínios") que tem a vida por objeto, a razão por meio e a felicidade por fim. Trata-se de melhor para viver melhor.
A felicidade é a meta da filosofia. Ou, mais exatamente, a meta da filosofia é a sabedoria, portanto a felicidade - já que, mais uma vez, uma das idéias mais aceitas em toda a tradição filosófica, especialmente na tradição grega, é que se reconhece a sabedoria pela felicidade, em todo caso por certo tipo de felicidade. Porque, se o sábio é feliz, não é de uma maneira qualquer nem a um preço qualquer. Se a sabedoria é uma felicidade, não é uma felicidade qualquer! Não é, por exemplo, uma felicidade obtida à custa de drogas, ilusões ou diversões. Imaginem que nossos médicos inventem, nos anos futuros -alguns dizem que já inventaram, mas, tranquilizem-se, ainda há muito o que esperar -, um novo remédio, uma espécie de ansiolítico e antidepressivo absoluto, que seria ao mesmo tempo um tônico e um euforizante: a pílula da felicidade. Uma pilulazinha azul, cor-de-rosa ou verde, que bastaria tomar todas as manhãs para se sentir permanentemente (sem nenhum efeito secundário, sem viciar, sem dependência) num estado de completo bem-estar, de completa felicidade... Não digo que nos recusaríamos a experimentá-la, nem às vezes, quando a vida está mesmo muito difícil, até a usá-la com certa regularidade... Mas digo que quase todos nós nos recusaríamos a nos satisfazer com ela e que, em todo caso, nos recusaríamos de chamar de sabedoria essa felicidade que deveríamos a um remédio. A mesma coisa vale, claro, para uma felicidade que proviesse apenas de um sistema eficaz de ilusões, mentiras ou esquecimentos. Porque a felicidade que queremos, a felicidade que os gregos chamavam de sabedoria, aquela que é a meta da filosofia, é uma felicidade que não se obtém por meio de drogas, mentiras, ilusões, diversão, no sentido pascaliano do tempo; é uma felicidade que se obteria em certa relação com a verdade: uma verdadeira felicidade ou uma felicidade verdadeira.
O que é a sabedoria? É a felicidade na verdade, ou "a alegria que nasce da verdade". Esta é a expressão que Santo Agostinho utiliza para definir a beatitude, a vida verdadeiramente feliz, em oposição a nossas pequenas felicidades, sempre mais ou menos factícias ou ilusórias. Sou sensível ao fato de que é a mesma palavra beatitude que Spinoza retomará, bem mais tarde, para designar a felicidade do sábio, a felicidade que não é a recompensa da virtude mas a própria virtude... a beatitude é a felicidade do sábio, em oposição às felicidades que nós, que não somos sábios, conhecemos comumente, ou, digamos, às nossas aparências de felicidade, que às vezes são alimentadas por drogas ou álcoois, muitas vezes por ilusões, diversão ou má-fé. Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remedinhos, estimulantezinhos... Não sejamos severos demais. Nem sempre podemos dispensá-los. Mas a sabedoria é outra coisa. A sabedoria seria a felicidade na verdade.
A sabedoria? É uma felicidade verdadeira ou uma verdade feliz. Não façamos disso um absoluto, porém. Podemos ser mais ou menos sábios, do mesmo modo que podemos ser mais ou menos loucos. Digamos que a sabedoria aponta para uma direção: a do máximo de felicidade no máximo de lucidez.
Portanto a felicidade é a meta da filosofia. Para que serve filosofar? Serve para ser feliz, para ser mais feliz. Mas, se a felicidade é a meta da filosofia, não é sua norma. O que entendo por isso? A meta de uma atividade é aquilo a que ela tende; sua norma é aquilo a que ela se submete. Quando digo que a felicidade é a meta da filosofia mas não sua norma, quero dizer que não é porque uma idéia me faz feliz que devo pensá-la - porque muitas ilusões confortáveis me tornariam mais facilmente feliz do que várias verdades desagradáveis que conheço. Se devo pensar uma idéia, não é porque ela me faz feliz (senão a filosofia não passaria de uma versão sofisticada, e sofística, do método Coué: trata-se de pensar "positivo", como se diz, em outras palavras ludibriar-se). Não, se devo pensar uma idéia é porque ela me parece verdadeira. A felicidade é a meta da filosofia mas não é a sua norma, porque a norma da filosofia é a verdade, pelo menos a verdade possível (porque nunca a conhecemos por inteiro, nem absolutamente, nem com total certeza), o que chamaria de bom grado, corrigindo Spinoza por Montaigne, a norma da idéia verdadeira dada ou possível. Trata-se de pensar não o que me torna feliz, mas o que me parece verdadeiro - e fica a meu encargo tentar encontrar, diante dessa verdade, seja ela triste ou angustiante, o máximo de felicidade possível. a felicidade é a meta; a verdade é o caminho ou a norma. Isso significa que, se o filósofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade - felizmente, o problema nem sempre se coloca nesses termos, só às vezes -, se o filósofo puder entre uma verdade e uma felicidade, ele só será filósofo, ou só será digno de sê-lo, se optar pela verdade. Mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria.
Sobre este último ponto, nem todo o mundo estará de acordo. Sem dúvida vários de vocês, na sala, estarão se dizendo que, pensando bem, entre uma verdadeira tristeza e uma falsa alegria, vocês prefeririam a falsa alegria... Vários, mas não todos. Pois bem: dispomos aqui de uma excelente pedra de toque, para saber quem é filósofo na alma e quem não é. Toda definição de filosofia já acarreta uma filosofia. Do meu ponto de vista, só é verdadeiramente filósofo quem ama a felicidade, como todo mundo, mas ama mais ainda a verdade - só é filósofo quem prefere uma verdadeira tristeza a uma falsa alegria. Nesse sentido, muitos são filósofos sem ser profissionais da filosofia, e é melhor assim; e alguns são profissionais ou professores de filosofia sem que por isso sejam filósofos, e azar o deles.
O essencial é não mentir, e antes de mais nada não se mentir. Não se mentir sobre a vida, sobre nós mesmos, sobre a felicidade. E é porque eu gostaria de não mentir que adotei o projeto que se segue. Num primeiro tempo, tentarei compreender por que não somos felizes, ou tão pouco, ou tão mal, ou tão raramente: é o que chamarei de a felicidade malograda (no original, bonheur manqué), ou as armadilhas da esperança. Num segundo tempo, a fim de tentar sair dessa armadilha, exporei uma crítica da esperança, desembocando no que chamarei de a felicidade em ato. Enfim, num terceiro tempo, que poderia se chamar a felicidade desesperadamente, terminarei evocando o que poderia ser uma sabedoria do desespero, num sentido que especificarei e que seria também uma sabedoria da felicidade, da ação e do amor.
André Comte-Sponville - A FELICIDADE DESESPERADAMENTE -
Tradução de Eduardo Brandão - Martins Fontes Editora, São Paulo, 2001
http://dhnet.org.br/desejos/sentidos/felicidade/afelicidadedesesperante.htm
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A Felicidade, Desesperadamente (André Comte-Sponville)
O livro é a transcrição de uma conferência-debate apresentada por André Comte-Sponville em 1999.
Segundo o autor, a felicidade interessa a todo mundo, pois cada homem a procura, principalmente os filósofos, que desde o surgimento da filosofia a tinham como objeto de reflexão. Contudo, os filósofos da segunda metade do século XX deixaram de considerá-la um problema filosófico. André Comte-Sponville resgata a felicidade determinando-na como meta da filosofia e a ?verdade? como a norma da filosofia. Isso porque apesar de buscar a felicidade, o verdadeiro filósofo opta por uma tristeza real a uma felicidade ilusória.
O autor diz que a sabedoria é necessária por dois motivos: porque somos infelizes e porque somos mortais. Quando temos tudo para ser feliz e não somos, é porque nos falta sabedoria. E sabedoria é saber viver, aprender a viver.
Sponville cita o desejo, conceituado por Platão como ?aquilo que nos falta?. E ser feliz é ter aquilo que desejamos. Mas no momento que temos o que desejamos, o desejo acaba, pois aquilo já não nos falta mais. Então procuramos por outros objetos de desejo. ?Na medida que o desejo é falta, a felicidade é perdida?. Segundo George Bernard Shaw, ?há duas catástrofes na existência: a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando são?. O autor chama de ?armadilhas da esperança?, porque quando esperamos a felicidade e ela não é satisfeita, sofremos e nos frustramos. Quando é satisfeita, nos entediamos e nos frustramos também. Para escapar deste ciclo o Sponville sugere três estratégias: se divertir para esquecer, alimentar novas esperanças (fuga pra frente) e depositar esperanças em outra vida (salto religioso). Apesar da ?sugestão?, acha as alternativas insuficientes.
Entretanto, Platão, Pascal, Schopenhauer e Sartre, ao falarem dessa ?felicidade esperada?, se esqueceram ou subestimaram o prazer e a alegria. Prazer e alegria existem quando desejamos o que fazemos, o que é, o que não falta, Sponville define isso como felicidade em ato. Além disso, para ele, Platão, Pascal, Schopenhauer e Sartre esqueceram também de separar o desejo da esperança. Para ele é possível desejar o que não falta, mas não é possível esperar o que não falta. Diferencia a esperança em três tipos: a platônica, relativa à falta, onde esperar é desejar sem gozar; a que se refere à ignorância a partir do desejo, onde esperar é desejar sem saber, afinal, nunca esperamos o que sabemos; e aquela que é um desejo cuja satisfação não depende de nós, onde esperar é desejar sem poder. Para desejar o gozando, temos o prazer. Para desejar sabendo, temos o conhecimento. Para desejar podendo, temos a ação. A esperança é um desejo que não depende de nós, enquanto a vontade é um desejo que depende de nós.
Não há esperança sem temor, nem temor sem esperança. O contrário de esperar é saber, poder e gozar. ?Só esperamos o que não é; só gostamos do que é?.
O autor propõe uma felicidade desesperadamente. Mas que não seja o desespero do suicida, mas simplesmente uma felicidade sem esperar. Para Spinoza o sábio não tem temor, logo, não tem esperança. O autor recusa o amor conceituado por Platão como ?desejo do que falta?, para dar suporte à definição spinozana, que trata o amor por potência, alegria. Sugere que as pessoas não amputem suas esperanças, mas que aprendam a pensar, querer mais e amar melhor. A felicidade não é absoluta, mas um processo.
http://resumos.netsaber.com.br/ver_resumo.php?c=3606
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SOCIEDADE
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A consolação da filosofia
Pensador francês se inspira nos gregos antigos e no budismo para orientar a busca da felicidade
Ruth de Aquino Comente a matéria Leia os comentários Envie a um amigo Imprimir
Existem imbecis felizes e gênios infelizes, segundo André Comte-Sponville, um dos mais respeitados filósofos e ensaístas da atualidade. Ideal seria escolher uma terceira via: a dos sábios, que não se apóiam na esperança como muleta. Esperar não é saber, diz o pensador. Ele vive em Paris e tem livros traduzidos para mais de 20 idiomas. Sponville recorre a Epicuro, Montaigne e Buda para nos incitar a agir. Em sua opinião, Woody Allen resume, com genialidade, nossa aptidão para a tristeza: "Como eu seria feliz se eu fosse feliz!". Em seu pequeno livro Felicidade, Desesperadamente, o filósofo condena as utopias. Sugere viver na lucidez, na desesperança e no momento presente: "Quando você faz amor, o que mais deseja? O orgasmo ou o ato em si?", pergunta Sponville. "Se for o orgasmo, a masturbação é o meio mais rápido."
André Comte-Sponville
QUEM É Filósofo de 54 anos, é casado e tem três filhos. Considera-se um "liberal de esquerda", ateu e feliz
QUEM SÃO SEUS MESTRES O grego Epicuro, os franceses Montaigne e Pascal e Spinoza (ver o quadro à pág. 32)
O QUE PUBLICOU No Brasil, seus livros mais conhecidos são Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Tratado do Desespero e da Beatitude e Felicidade, Desesperadamente
ÉPOCA - O senhor afirma que todos os homens sem exceção procuram ser felizes e cita Pascal, em seus Pensamentos (1670): "A busca da felicidade é o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar". Para a maior parte da humanidade, essa busca não seria vã?
André Comte-Sponville - Tudo depende do que se entende por felicidade. Se você busca uma alegria contínua e soberana, ou mesmo a ausência total de sofrimento e angústia, certamente nunca será feliz. "Toda vida é sofrimento", dizia Buda. E tinha razão. A felicidade, se a entendemos como uma alegria completa, é apenas um sonho, que nos separa do contentamento verdadeiro. Em busca da felicidade absoluta, nós nos proibimos de viver as felicidades relativas e nos tornamos infelizes. Se, ao contrário, você entender como felicidade o fato de não ser infeliz ou simplesmente de poder desfrutar algumas alegrias, a felicidade não é impossível. E você será feliz somente por não ser triste. À exceção, claro, nos momentos mais difíceis da vida.
ÉPOCA - Qual é sua definição de felicidade na vida cotidiana?
Comte-Sponville - Todo lapso de tempo durante o qual a satisfação parece imediatamente possível. Não há como se sentir alegre permanentemente. Isso é impossível. Mas há como sentir que podemos ser felizes por nós mesmos, sem que nada de essencial mude no mundo. A infelicidade se instala quando nossas alegrias dependem totalmente de circunstâncias externas.
ÉPOCA - O senhor é feliz?
Comte-Sponville - Sim. Não tenho grande mérito nisso. Vivo com uma mulher que amo e que me ama, tenho três filhos com saúde, trabalho no que me dá prazer, meus livros são bem-sucedidos. Em resumo, tenho muita sorte. É preciso sempre ter um pouco de sorte para ser feliz. Mas também é preciso amar a vida, mesmo quando ela é difícil e angustiante. Consigo ser um pouco assim, cada vez mais graças à filosofia.
ÉPOCA - O senhor associa a felicidade à sabedoria. Os ingênuos e os ignorantes seriam então condenados a ser infelizes? Há quem diga que saber demais pode nos levar à angústia ou a um sentimento de impotência.
Comte-Sponville - Existem imbecis felizes e gênios infelizes. Mas a sabedoria é algo distinto da genialidade. Tampouco tem a ver com desatino ou tolice. A sabedoria é, sim, um certo tipo de felicidade. Mas nada tem a ver com a felicidade ilusória, conseguida por drogas ou pela ignorância. A sabedoria é a felicidade dentro da verdade. É o máximo de felicidade associado ao máximo de lucidez. Essa é a meta da filosofia. Nesse caminho, há muitas ilusões a perder e algumas verdades desagradáveis a confrontar. É por isso que a filosofia passa inevitavelmente pela angústia, pela dúvida, pela desilusão. Continua sendo apenas um caminho. Porque o destino é uma felicidade autêntica. É isso que chamamos de sabedoria.
ÉPOCA - E a infelicidade, como ela se revela na vida real?
Comte-Sponville - Quando toda alegria parece impossível, quando acordamos pela manhã sem outra perspectiva a não ser a angústia, a tristeza ou o sofrimento...Eu vivi isso. Perdi duas das pessoas que mais amava no mundo: minha única filha na época e, em seguida, minha mãe. No início, só há o horror e as lágrimas. Com o tempo, a paz retorna, em seguida a alegria. E por isso digo, por oposição, que a felicidade também existe. Como é bom deixar de se sentir infeliz!
ÉPOCA - Como a filosofia pode ajudar alguém a viver feliz?
Comte-Sponville - Filosofar é pensar sua vida e viver seu pensamento. Em que medida isso pode nos aproximar da felicidade? Ficando mais perto da verdade, nós nos libertamos de várias ilusões e esperanças tolas. Isso nos ajuda a amar a vida mais do que amar a felicidade, a verdade mais do que a fantasia, o amor mais do que a fé ou a esperança. Os maiores mestres são, a meu ver, Epicuro (de Samos, filósofo grego dos séculos IV e III a.C.), (Michel) Montaigne (filósofo francês do século XVI) e (Baruch) Spinoza (filósofo holandês do século XVII). Quanto a mim, já me expliquei longamente em meu Tratado do Desespero e da Beatitude e, de maneira mais resumida, em Felicidade, Desesperadamente.
ÉPOCA - A religião pode dar ilusão de felicidade? A fé seria um antídoto à tristeza?
Comte-Sponville - Isso depende de quem tem fé. Se você acredita que a felicidade eterna o aguarda após a morte, isso pode ajudar a suportar em vida a infelicidade...Como sou ateu, vejo nisso mais uma armadilha que uma tentação. Não vou esperar morrer para ser feliz. O fato de, para mim, nada existir após a morte é um motivo a mais para viver da melhor maneira possível. É o que chamo de desespero alegre. Existe uma vida antes da morte, e é a única que importa.
ÉPOCA - A "felicidade que nasce da verdade" foi recomendada por Santo Agostinho (filósofo e teólogo que viveu nos séculos IV e V) como o caminho para a beatitude. Para um ateu como o senhor, o conceito de beatitude tem outro significado?
Comte-Sponville - Não. A definição me convém perfeitamente. Mas não é um caminho para a beatitude. É a própria beatitude. Ela é a felicidade dentro da verdade e, portanto, também dentro da eternidade. Toda verdade é eterna. Mas não é uma eternidade após a morte. É a eternidade presente ou o presente eterno. Spinoza, nesse aspecto, é mais esclarecedor que Santo Agostinho.
ÉPOCA - O senhor se tornou ateu aos 18 anos, após uma confessada desilusão com Deus. Disse, na época: "Uma das raras certezas que eu tenho é que Deus jamais me disse algo". Poderia nos contar como se passou sua conversão ao ateísmo?
Comte-Sponville - Foi em 1970. Por que perdi a fé? Sem dúvida por duas razões principais: a política e a filosofia. A paixão política, naquela época, era tudo. Comparando com a política, a religião me despertava bem menos interesse. Deus deixou de me atrair. Em seguida, parei de crer. Simultaneamente, descobri a filosofia, nos meus estudos, e os argumentos em favor do ateísmo me pareciam definitivamente mais fortes que os argumentos pró-religião. Continuo a refletir sobre o tema. Eu me explico melhor em meu livro mais recente, que acaba de ser editado na França: O Espírito do Ateísmo (Introdução a uma Espiritualidade sem Deus).
ÉPOCA - Os céticos não seriam mais suscetíveis à depressão ou ao tédio?
Comte-Sponville - Freud é sem dúvida quem melhor respondeu a essa questão. A depressão ou a melancolia, escreveu ele, "é a perda da capacidade de amar". Não é a fé que falta aos deprimidos, é o amor.
ÉPOCA - O senhor diz que, para o filósofo, uma tristeza autêntica vale mais que uma felicidade mentirosa. Não seria perigoso consagrar o coração à melancolia?
Comte-Sponville - O filósofo prefere a alegria à tristeza, como todo mundo. Mas ele coloca a verdade num patamar mais alto que todo o resto. Isso não quer dizer que seu objetivo seja a infelicidade. É preciso sempre ter coragem para enfrentar a melancolia ou a tristeza quando surgem. É o único caminho.
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