"Felicidade sim"
Liane Alves


Revista Vida Simples: "Felicidade sim"

Eis aí uma coisa que todo mundo quer: ser feliz. Mas o que é ser feliz, afinal de contas? Como encontrar a felicidade? Será que realmente estamos preparados para ela?
por Liane Alves

Ana Lúcia mora naquelas casas de revista, num condomínio que parece de filme americano. Seus filhos adolescentes estudam numa escola budista, seu marido é dono de uma empresa que vai de vento em popa, a família tem três caminhonetes importadas na garagem, viaja todos os anos para a Europa e, para completar, Ana Lúcia ainda é uma ótima profissional na área de marketing. As pessoas que indicaram seu nome me afirmaram com convicção que Ana Lúcia é um ser feliz. Diante da farta mesa do café da manhã de sua casa, com raios de sol atravessando a cozinha e passarinhos cantando lá fora, ela garante com todas as letras que se sente realmente privilegiada.Agradece todos os dias pela casa, pelo marido, pelos filhos – e também, meu Deus, ia me esquecendo, pelo nascer do sol. Ana é uma mulher transbordante de alegria. Anoto cuidadosamente com a ponta fininha da lapiseira a lição número 1 desta reportagem: “Felicidade é ter saúde, uma boa casa, a família em harmonia e dinheiro”. Isto é, ter as necessidades básicas garantidas e um bom relacionamento familiar. Estou prestes a escrever seu nome completo quando ela me segura delicadamente o braço. Não, ela não quer que seu nome verdadeiro saia no texto. Portanto, agora vocês já sabem, Ana Lúcia não se chama Ana Lúcia. Também seria bom, ela sugere, eu não mencionar as caminhonetes, nem a TV de plasma de 42 polegadas ou a piscina com raia olímpica. Menos ainda as constantes viagens internacionais. Não é receio de seqüestro, não, antes fosse. É só medo de que alguém possa “secar” sua felicidade com olho gordo. Isso mesmo.Ana Lúcia tem medo de inveja. E justifica: “Podem botar mau-olhado e minha vida começar a dar pra trás”, diz ela, subitamente temerosa. E acrescenta: “Ah, você sabe como são essas coisas...” Sei sim.Acabo de aprender a segunda lição: “Ter medo de perder a felicidade traz infelicidade”.

Não vejo a hora (assim como você, tenho certeza) de conhecer os outros ensinamentos que me esperam nesse caminho.
Felicidade é limite

Não que Ana Lúcia não seja realmente feliz. À sua maneira, ela é (e a gente sempre é feliz de acordo com a nossa maneira). E, sim, ter uma folga financeira realmente ajuda. Mas, de acordo com pesquisas recentes, dinheiro sobrando só contribui para a felicidade até determinado ponto. Isto é, você pode ficar muito feliz por poder adquirir um iate, mas não vai ficar 15 vezes mais feliz se resolver comprar mais 15. A esse respeito, o senso de humor britânico inspirou uma curiosa pesquisa na Inglaterra. Uma emissora de rádio perguntou a seus ouvintes qual seria a quantia exata de dinheiro que tornaria uma pessoa feliz. Segundo os 5 mil ingleses que responderam a pergunta, a quantia exata é de 1,2 milhão de libras (1,4 milhão para as mulheres, que sempre gostam de comprar mais algumas coisinhas). Em nossa moeda, cerca de 5 milhões. Nada mal.

Mas o que essa pesquisa diz é muito importante: a multiplicidade dos objetos que nos causam felicidade não garante que sejamos mais felizes. Por isso é que existem ricos infelizes e pobres felizes.Mais: até a satisfação dos desejos tem um teto. Essa pode ser até outra lição sobre os caminhos que podem nos levar à felicidade. Não adianta acumular (ou ter) demais. Parece bobo, mas muita gente ainda escorrega nisso. É só perguntar para um colecionador de automóveis: até um determinado ponto, adquirir mais um carro para a coleção traz uma grande felicidade (que dura só até a próxima aquisição). Depois de determinado número, porém, a emoção e o prazer vão diminuindo. Só um carro excepcional, raro e difícil de se conseguir vai trazer um pouquinho da felicidade já sentida antes. Mesmo assim, o colecionador continua comprando compulsivamente, na vã esperança de que a felicidade possa ser tão intensa quanto nas primeiras vezes (onde se lê colecionadores de carros, leia-se também aqueles que gostam de colecionar qualquer outra coisa, como sensações, emoções ou... paixões).

A frugalidade dos desejos é o ponto básico dos filósofos epicuristas, por exemplo. Diferentemente do que se pensa hoje, eles não propunham uma orgia de prazeres sensuais, um hedonismo desenfreado. Afinal, eram gregos e sábios. O que diziam é que, para fruir verdadeira e intensamente a felicidade e o prazer, era preciso escolher. Portanto, “hay que saber selecionar”. E a lista do que realmente pode nos fazer felizes tem de ser bem restrita, pensada. Pelo simples motivo de que ninguém vai conseguir preencher todos os itens de uma lista quilométrica. Exigências demais atrapalham, desejos demais também.“Menos, menos”, nos segreda a sabedoria grega (e certamente alguns namorados, ou namoradas, insastisfeitos com nossas cobranças).

Mais despojados ainda eram os filósofos estóicos. Eles também não sofriam estoicamente, como se acredita hoje, nem eram masoquistas. Os estóicos simplesmente diziam que para não sofrer, para não ser infeliz, é melhor não se ter nada.Danny,um dos melhores personagens do romancista americano John Steinbeck e protagonista do livro Boêmios Errantes, provavelmente era um estóico apaixonado e não sabia. Vagabundo e sem um tostão no bolso, de repente recebe a herança de uma casa, na verdade pouco mais que um casebre, de uma tia. Quando vai conhecer a nova habitação, vazia de móveis e cheia de poeira, percebe que foram deixados para trás dois vasos em cima da lareira. Imediatamente vai em direção a eles e, plá!, joga o primeiro vaso no chão. Depois se dirige ao outro e, plá!, estilhaça-o em mil pedaços. Raspa a garganta e em voz alta resmunga qualquer coisa como “assim ninguém vai chorar quando eles se quebrarem....” Muito difícil ser um verdadeiro estóico como Danny hoje em dia. E só consigo imaginar Clint Eastwood fazendo seu papel.
Felicidade é atitude

Ninguém precisa ser radical a ponto de abdicar de tudo o que tem.André Comte-Sponville, o inspirado pensador francês contemporâneo, acredita que, para ser feliz, é preciso estar no estado de desespero – não na idéia que conhecemos desse sentimento, mas no desespero (ou desesperança) de quem não espera mais nada, ou seja, de alguém que não sofre mais por não ter e está satisfeitíssimo com aquilo que tem. Não é o que acontece geralmente, convenhamos. Diz Sponville (no livro A Felicidade,Desesperadamente) que o desejo primordial do ser humano é justamente desejar tudo aquilo que não tem: o emprego dos sonhos, a pessoa amada, dinheiro...Nosso desejo de ser feliz está baseado na falta, dizia o filósofo holandês Spinoza, cujo pensamento Sponville analisa em seu livro. E, quando conseguimos realizar algum desses anseios, automaticamente surge outro desejo em seu lugar. “Há duas catástrofes na existência”, dizia George Bernard Shaw: “A primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando são”. Portanto, lá vai mais uma chave da felicidade: a gente pode ser perfeitamente feliz com o que tem.

O budismo vai além. Diz que a felicidade que depende de algo externo está baseada não só no desejo (ou esperança) de ter esse objeto como no medo de perdê-lo. Isto é, ela vem junto com a infelicidade. Só a felicidade interna, sem desejo em um objeto externo, pode ser completa. A artista plástica Susana Urribarri parece ter essa felicidade espontânea no coração. Seu nome budista, Senhora Poderosa da Grande Felicidade, pelo menos dá uma boa inspiração. Ela diz que aprendeu a ser feliz com a liberdade de pintar. “Quando se tem um papel branco pela frente, podemos usar cores horrorosas que jamais poderíamos pensar em combinar, traços livres que podem ou não dizer alguma coisa, formas cheias e definidas ou não-formas. Nada está errado, nada tem de ser nada”, diz. Ela acha que, assim como na pintura, a abertura é uma condição bastante essencial na busca da felicidade, já que não existe um padrão fixo para ela. É aquela história da borboleta: se você vai muito atrás da felicidade com uma rede, ela pode se espantar e não chegar perto de você. Se você ficar quietinho e aberto, pode até ser que ela pouse em seu ombro.
Felicidade é busca

Hoje é difícil entender por que os filósofos gregos insistiam tanto na virtude como solo firme para o nascimento da felicidade. Esse elo tão estreito é quase incompreensível na era da propaganda, do marketing e da televisão: quase ninguém associa mais virtude com o fato de ser feliz. Isso porque perdemos a pergunta-chave que antecede a maioria das teorias dos pensadores da Grécia. E a pergunta é: “O que torna uma vida digna de ser vivida?” Uma vida feliz só pode ser uma vida com significado, pensavam os gregos. E aí a virtude faz sentido. Dizia Aristóteles que a felicidade era a meta de todas as metas: tudo o que fazemos, no fundo, é para sermos mais felizes. Dinheiro, poder, são apenas meios para isso. Ele falava também que existem dois tipos de felicidade: a de uma vida virtuosa (a do homem bom, honesto e simples) e a nascida da contemplação (que pertencia ao mundo dos místicos e filósofos). Só eles poderiam se sentir felizes ao tentar compreender o sentido da vida ou ao buscar uma experiência espiritual que a preenchesse de significado.

É importantíssimo diferenciar as duas dimensões da felicidade. E essa talvez seja mais uma das grande indicações do seu caminho. Uma está relacionada à conduta correta na vida e também aos pequenos e simples prazeres que os relacionamentos (e até os bens materiais) podem nos proporcionar. A outra é imortal e não pertence a este mundo. Pode até ser uma forma de viver o paraíso na Terra. mas não é para muitos.

Uma das mais saborosas descrições desse tipo, digamos, mais humano e mortal de felicidade está no livro Sob o Sol da Toscana, da americana Frances Mayes. Das páginas escritas por ela salta o perfume da erva-cidreira colocada na água do banho, da sálvia que recheia o lombo de porco assado ou do alecrim que, junto com o sal grosso, tempera a galinha-d’angola. Lendo suas palavras, também quase se pode ver os vários estratos vermelhos das paredes descascadas da sua casa, assim como os dourados dos croutons de polenta na sopa de tomates maduros. A escritora chilena Isabel Allende é outra mestra que fala dessas alegrias do cotidiano, dos prazeres femininos pressentidos e provados no dia-a-dia.

Desse tipo de felicidade mais humana também são feitas as viagens. Não há peregrino que não estampe um sorriso beatífico no rosto ao contar as aventuras, contratempos e descobertas de suas viagens. Peter Musson, um fotógrafo inglês com quem compartilhei várias reportagens, é um deles.Viajante inveterado, capta nas suas lentes a felicidade de estar sempre com a mochila nas costas. É para sua câmara que as crianças da Jamaica dão seus melhores sorrisos ou que os velhos dos altiplanos andinos dirigem um olhar profundo de confiança. Porque ele transpira felicidade pelos poros quando viaja, e as pessoas percebem isso. “Me sinto mais vivo”, admite. Tem gente assim, como Peter, que é mais feliz viajando. Outras pessoas adoram ficar sentadas paradas no alpendre de um sítio. Outros ainda são empreendedores, dão tudo para trabalhar e realizar projetos. Não importa. “Siga sempre sua bem-aventurança, aquilo que você acha que vai fazê-lo feliz. Temos de aprender a abdicar da vida que planejamos para ter a vida que está esperando por nós”, escreveu com sabedoria o mitólogo Joseph Campbell, talvez um dos seres humanos que mais defenderam o direito inalienável de todos pela busca da felicidade. Foi o que fez Shirley, a heroína do filme Shirley Valentine, um dos mais interessantes já feitos sobre essa busca. É sobre ela que vou falar agora.
Felicidade é aqui

Shirley é uma dona-de-casa de meia-idade londrina que não tem com quem falar de manhã. Seu marido sai cedo e ela só tem as paredes para cumprimentar. E é o que ela faz sempre. “Bom dia, parede? Como vai, parede? Dormiu bem?”O sonho de Shirley,que para ela seria a suprema felicidade, é um dia assistir a um pôr-do-sol numa praia deserta da Grécia, vestida com uma roupa vaporosa de verão e com um copo de vinho branco gelado a seu lado. Filme vai, filme vem, e Shirley consegue realizar seu acalentado sonho, nos mínimos detalhes. Para descobrir, logo em seguida, que sua felicidade não tinha nada a ver com aquilo. E aí vem o pulo do gato da história: ela descobre que aquele cenário idealizado não a torna mais feliz mas, ao mesmo tempo, opta por não voltar mais para a Inglaterra.Decide tentar sua felicidade de outro jeito, mais aberto, vivendo na Grécia. Não vou contar o fim do filme, que é inesperado, mas até aqui já dá para perceber que muitas vezes somos como nossa querida Shirley, tanto na idealização de uma forma fixa de felicidade quanto na tendência de querer adiá-la para um futuro quase inatingível. Portanto, não adiar muito um projeto que nos faça mais felizes, assim como não idealizá-lo em demasia,podem ser boas indicações (e lições) no caminho que conduz à felicidade.Você pode ser feliz agora, se quiser, nas suas condições mesmo,mas também pode ter um projeto para realizar que traga mais alegria a seu futuro.Algo que você gostaria de contar para seus netos, algo bacana de se orgulhar de ter feito na vida.

E a urgência na realização desse sonho tem um motivo bem concreto:não somos imortais.Você pode não acreditar, mas a morte é boa conselheira quando o assunto é ser feliz. “Somos, pelo que sabemos, a única espécie capaz de refletir sobre a própria mortalidade, as únicas criaturas deste planeta capazes de vislumbrar o fim da própria existência”, escreveu Mark Kingwell no livro Aprendendo Felicidade. Segundo Kingwell, a noção de que somos finitos, e de que a morte é inesperada, nos ajuda a revisar e reavaliar os valores que consideramos mais importantes na busca da felicidade, seja trabalhar como voluntário de uma entidade humanitária na África, seja reconciliar-se com um parente próximo. Até as pequenas bobagens da vida que nos trazem alegria alcançam outra dimensão quando se pensa na morte. Com essa perspectiva, fica mais fácil tomar aquele sorvete numa tarde deslumbrante de outono ou molhar o cabelo na chuva num dia quente de verão.
Felicidade é agora

Dois livros nos fazem lembrar da morte (afinal de contas, nascemos com prazo de validade) de uma maneira leve e divertida. O primeiro, 100 Coisas para Fazer (Antes de Morrer), é quase uma brincadeira em forma de almanaque, com dezenas de histórias de pessoas que realizaram seus projetos de felicidade, seja viajar à velocidade do som, seja meditar nas cavernas do Nepal. Os autores, Michael Ogden e Chris Day, também ensinam como construir sua lista de felicidade, com grandes e pequenos projetos, e até como alterná-los, se for possível. É um livro de auto-ajuda debochadamente assumido, e talvez por isso tão simpático.

O segundo, escrito pela americana Patricia Schultz, chama-se 1000 Lugares para Conhecer Antes de Morrer. Quem sabe não vai constar da sua lista você querer visitar o Jardim do Administrador Humilde, na China, que dá a impressão de flutuar na água? Ou o pagode de Shwedagon, na Birmânia, uma reluzente stupa (monumento sagrado) budista de 32 andares revestida interna e externamente de ouro. Ou, mais perto, a praia de Itacaré. É possível que nesses lugares a felicidade não esteja esperando exatamente do jeito que você imaginou, como aconteceu com Shirley Valentine.Mas a alegria de se ver indo realizar um sonho, o entusiasmo de imaginar as lindas paisagens e pessoas que vai conhecer, o prazer ao fazer o planejamento da jornada, isso ninguém vai tirar de você. Talvez nem perceba, mas é bem provável que você esteja muito mais feliz nesses meses ou dias que antecedem a partida, ou mesmo durante a viagem, do que exatamente no seu destino. A vida também pode ser assim. A felicidade perpassa todo o percurso, do começo ao fim. Ela é o próprio caminho, e estará sempre ao alcance da mão, é só querer. E isso – que alívio! – é muito bom. E perfeitamente possível para cada um de nós alcançar.
Para saber mais

Livros:
- A Fórmula da Felicidade, Stefan Klein, Sextante
- A Mais Bela História da Felicidade, Sponville, Delumeau, Farge, Difel
- Aprendendo Felicidade, Mark Kingwell, Relume Dumará
- A Viagem de Heitor, François Lelord, Sá Editora
- Felicidade, Desesperadamente, André Comte-Sponville, Martins Fontes
setembro de 2006

http://vidasimples.abril.uol.com.br/edicoes/045/07.shtml

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