O
que torna você quem você é?
Por Matt Ridley
O que é mais forte -a natureza ou a formação?
A ciência mais recente diz que os genes e sua experiência
interagem durante toda a sua vida
O debate perene sobre a natureza e a formação
-qual é a mais potente formadora da essência humana?- é
constantemente renovado. Ele foi reaceso novamente no London Observer
de 11 de fevereiro de 2001. Sua manchete dizia: "Revelado: o segredo
do comportamento humano. Ambiente, e não os genes, moldam nossos
atos". A fonte da história era Graig Venter, o homem de
negócios dos genes que fundou uma empresa privada para a leitura
da seqüência completa do genoma humano em concorrência
com um consórcio internacional financiado por impostos e caridades.
Tal seqüência -um filamento de 3 bilhões de letras,
composto em um alfabeto de quatro letras, contendo a receita completa
para a formação e funcionamento do corpo humano -seria
publicada no dia seguinte (a concorrência terminou em um empate
arranjado). A primeira análise do genoma revelou que era composto
por apenas 30 mil genes, e não os 100 mil que muitos estimavam
até poucos meses antes.
Os detalhes já circulavam entre os jornalistas
sob embargo. Mas Venter, falando para um repórter em uma conferência
de biotecnologia na França em 9 de fevereiro, efetivamente rompeu
o embargo. "Nós simplesmente não temos genes suficientes
para esta idéia de determinismo biológico ser correta",
disse Venter ao Observer. "A maravilhosa diversidade da espécie
humana não está formatada em nosso código genético.
Nossos ambientes são fundamentais".
Na verdade, o número de genes humanos não
mudou nada. Os comentários de Venter escondiam duas falsas conclusões
colossais: a de que menos genes implicavam em maiores influências
ambientais e que 30 mil genes não eram suficientes para explicar
a natureza humana, enquanto 100 mil seriam suficientes. Como um cientista
me disse poucas semanas depois, apenas 33 genes, cada um vindo em duas
variedades (ativado ou desativado), seriam suficientes para tornar único
cada ser humano do mundo. Há mais de 10 bilhões de combinações
possíveis em 33 jogadas de cara ou coroa, de forma que 30 mil
não parece um número pequeno. Além disso, se menos
genes significassem mais livre arbítrio, a mosca-da-fruta seria
mais livre do que nós, as bactérias ainda mais livres
e os vírus os John Stuart Mill da biologia.
Felizmente, não há necessidade de tranqüilizar
a população com tais cálculos sofisticados. As
pessoas não choraram diante da notícia humilhante de que
nosso genoma tem apenas o dobro do tamanho do genoma de um verme. Nada
foi apoiado naquele número de 100 mil, que foi apenas um palpite
ruim. Mas o projeto genoma humano -e as décadas de pesquisa que
o precederam- forçaram um entendimento muito mais sutil de como
os genes funcionam. No princípio, os cientistas detalharam como
os genes codificam as várias proteínas que compõem
as células em nossos corpos. A descoberta mais sofisticada e
eventualmente mais satisfatória -a de que a expressão
genética pode ser modificada pela experiência- foi gradualmente
emergindo desde os anos 80. Apenas agora os cientistas estão
despertando para a idéia grande e geral que ela implica: a de
que a própria formação (aprendizado) consiste de
nada mais do que a ativação e desativação
de genes. Quanto mais levantamos o véu do genoma, mais vulneráveis
os genes parecem ser à experiência.
Isto não é um tipo de acordo intermediário
piegas. Isto é uma nova compreensão dos blocos de construção
fundamentais da vida com base na descoberta de que os genes não
são coisas imutáveis entregues por nossos pais, como as
tábuas da lei de Moisés, mas sim que são participantes
ativos em nossas vidas, projetados para reagirem de acordo com tudo
o que acontece conosco desde o momento de nossa concepção.
No momento, esta nova percepção tem se
fortalecido entre os cientistas, mudando a forma como pensam em tudo,
desde a forma como os corpos se desenvolvem no útero, como novas
espécies surgem e até sobre a inevitabilidade do homossexualismo
em algumas pessoas. (Mais sobre isto adiante). Mas eventualmente, à
medida que a população em geral se tornar mais consciente
desta visão interdependente, mudanças também poderão
ocorrer em áreas tão diversas como educação,
medicina, direito e religião. Pessoas que realizam dietas poderão
aprender precisamente que combinação de gorduras, carboidratos
e proteínas tem o maior efeito sobre suas cinturas individuais.
Os teólogos poderão desenvolver toda uma nova teoria sobre
o livre arbítrio baseada na observação de que o
aprendizado expande nossa capacidade de escolher nosso próprio
caminho. Assim como na observação de Copérnico
de que a Terra orbita o Sol há 500 anos, não há
como dizer o quão longe as repercussões deste novo paradigma
científico poderão se estender.
Para apreciar o que aconteceu, você terá
que abandonar as antigas noções e abrir sua mente. Você
terá que entrar em mundo no qual seus genes não são
marionetistas puxando os fios de seu comportamento, mas marionetes à
mercê de seu comportamento, no qual o instinto não é
o oposto do aprendizado, influências ambientais são geralmente
menos reversíveis do que as genéticas, e a natureza é
aberta ao aprendizado.
O medo de cobras, por exemplo, é a fobia humana
mais comum, e faz um bom sentido evolucionário ele ser instintivo.
Aprender a temer as cobras do modo difícil seria perigoso. Mas
experiências com macacos revelam que o medo deles de cobras (e
provavelmente o nosso) ainda precisa ser adquirido com a observação
da reação de medo de outro indivíduo em relação
a uma cobra. O resultado é que é fácil ensinar
os macacos a temerem cobras, mas muito difícil ensiná-los
a temerem flores. O que nós herdamos não é o medo
de cobras, mas uma predisposição a aprender a temer cobras
-uma natureza para um certo tipo de aprendizado.
Antes de mergulharmos em algumas das outras descobertas
científicas que transformaram amplamente o debate, ajuda compreender
o quão profundamente entrincheirado em nossa história
intelectual se tornou a falsa dicotomia natureza versus formação.
Se a natureza humana é inata ou adquirida é um enigma
discutido por Platão e Aristóteles. Filósofos empiristas
como John Locke e David Hume argumentaram que a mente humana era formada
pela experiência; nativistas como Jean-Jacques Rousseau e Immanuel
Kant defendiam a existência de algo como uma natureza humana imutável.
Foi o excêntrico matemático primo de Charles
Darwin, Francis Galton, quem em 1874 acendeu a controvérsia natureza-formação
em sua atual forma e cunhou a frase (pegando emprestado a aliteração
"nature-nurture" de Shakespeare, que a pegou de um diretor
de escola elisabetano chamado Richard Mulcaster). Galton afirmou que
as personalidades humanas eram inatas, não moldadas pela experiência.
Ao mesmo tempo, o filósofo William James argumentou que os seres
humanos tinham mais instintos que os animais, e não menos.
Nas primeiras décadas do século 20, a
natureza predominou sobre a formação em muitas áreas.
Mas no rastro da Primeira Guerra Mundial, três homens reconquistaram
as ciências sociais para o lado da formação: John
B. Watson, que mostrou como o reflexo condicionado, descoberto por Ivan
Pavlov, podia explicar o aprendizado humano; Sigmund Freud, que buscou
explicar a influência dos pais e das primeiras experiências
sobre as mentes jovens; e Franz Boas, que argumentou que a origem das
diferenças étnicas se encontrava na história, experiência
e circunstâncias, e não na fisiologia e na psicologia.
A insistência de Galton nas explicações
inatas das habilidades humanas o levou a advogar a eugenia, um termo
cunhado por ele. A eugenia foi entusiasticamente adotada pelos nazistas
para justificar sua campanha de assassinato em massa contra os deficientes
e judeus. Maculada por esta associação, a idéia
do comportamento inato recuou por grande parte dos anos intermediários
do século. Mas em 1958 dois homens começaram a contra-atacar
em nome da natureza. Noam Chomsky, em sua revisão do livro do
behaviorista B.F. Skinner, argumentou que era impossível aprender
a linguagem humana apenas por tentativa e erro; os seres humanos deviam
vir equipados com alguma capacidade gramatical inata. Harry Harlow realizou
uma experiência simples que mostrava que um bebê macaco
preferia uma imitação de mãe feita de tecido macio
do que a uma mãe dura e de estrutura metálica, apesar
da mãe de metal fornecer todo o seu leite; algumas preferências
eram inatas.
Avançamos para os anos 80 e uma das maiores
surpresas recebidas pelos cientistas foi a abertura dos genomas animais:
os geneticistas da mosca encontram um pequeno grupo de genes chamados
genes Hox, que pareciam estabelecer o plano do corpo da mosca durante
seu estágio inicial de desenvolvimento -dizendo mais ou menos
onde colocar a cabeça, pernas, asas e assim por diante. Mas então
colegas que estudavam ratos encontraram os mesmos genes Hox, na mesma
ordem, realizando a mesma função no mundo do Mickey -dizendo
ao rato onde colocar suas várias partes. E quando os cientistas
olharam o nosso genoma, eles também encontraram os genes Hox.
Os genes Hox, como todos os genes, são ativados
ou desativados em diferentes partes do corpo em momentos diferentes.
Desta forma, os genes podem ter efeitos diferentes sutis, dependendo
de onde, quando e como forem ativados. As chaves que controlam este
processo -filamentos da cadeia de DNA dos genes- são conhecidas
como promotoras.
Pequenas mudanças no promotor podem ter efeitos
profundos na expressão de um gene Hox. Por exemplo, ratos com
pescoços curtos e corpos longos; galinhas com pescoços
longos e corpos curtos. Se você contar as vértebras no
pescoço e tórax dos ratos e galinhas, você verá
que um rato tem sete vértebras no pescoço e 13 no tórax,
uma galinha 14 e 7 respectivamente. A fonte desta diferença se
encontra em um promotor ligado ao HoxC8, um gene Hox que ajuda a formar
o tórax do corpo. O promotor é um parágrafo de
DNA composto de 200 letras, e nas duas espécies ele difere apenas
em um punhado de letras. O efeito é a alteração
da expressão do gene HoxC8 no desenvolvimento do embrião
da galinha. Isto significa que a galinha gera vértebras torácicas
em uma parte diferente do corpo do que o rato. Na jibóia, o HoxC8
é expresso diretamente da cabeça e prossegue sendo expresso
por grande parte do corpo. Assim as jibóias são um longo
tórax; elas têm costelas por todo o corpo.
Para realizar grandes mudanças no plano do corpo
dos animais, não há necessidade de inventar novos genes,
assim como não há necessidade de inventar novas palavras
para escrever um romance original (a menos que seu nome seja Joyce).
Tudo o que você precisa fazer é ativar e desativar os mesmos
em padrões diferentes. De repente, aqui está um mecanismo
para criação de mudanças evolutivas a partir de
pequenas diferenças genéticas.
Meramente ajustando a seqüência de um promotor ou acrescentando
uma nova, você pode alterar a expressão de um gene.
Por um certo lado, isto é um pouco deprimente.
Isto significa que até que os cientistas saibam com encontrar
os genes promotores no vasto texto do genoma, eles não saberão
a receita para diferenciar um chimpanzé de uma pessoa. Mas por
outro lado é animador, pois nos recorda mais fortemente do que
nunca uma verdade simples que geralmente é esquecida: corpos
não são feitos, eles crescem. O genoma não é
uma planta para a construção de um corpo. É uma
receita para preparo de um corpo. Você poderia dizer que o embrião
da galinha é preparado em escabeche por menos tempo no molho
HoxC8 do que o embrião do rato. Da mesma forma, o desenvolvimento
de certo comportamento humano leva um certo tempo e ocorre em certa
ordem, assim como o preparo de um suflê perfeito requer não
apenas os ingredientes certos, mas também a quantidade certa
de cozimento e a ordem certa de eventos.
Como esta nova visão dos genes altera nossa
compreensão da natureza humana?
Dê uma olhada em quatro exemplos.
Linguagem
Os seres humanos diferem dos chimpanzés por
possuírem uma linguagem gramatical complexa. Mas a linguagem
não surge plenamente formada no cérebro; ela deve ser
aprendida por meio de outros seres humanos que falam a língua.
Esta capacidade de aprender está redigida no cérebro humano
por genes que abrem e fecham uma janela fundamental durante a qual o
aprendizado ocorre. Um destes genes, o FoxP2, foi descoberto recentemente
no cromossomo humano 7 por Anthony Monaco e seus colegas do Wellcome
Trust Centre for Human Genetics em Oxford. Mas apenas ter o gene FoxP2
não é suficiente. Se uma criança não for
exposta à linguagem falada durante o período crítico
de aprendizado, ele ou ela sempre terão dificuldade com a língua.
Amor
Algumas espécies de roedores, como o arganaz-do-campo,
formam longos laços entre os companheiros, assim como os seres
humanos. Outros, como o arganaz montanhês, mantém apenas
ligações transitórias, assim como os chimpanzés.
A diferença, segundo Tom Insel e Larry Young da Universidade
Emory em Atlanta, está no promotor dos genes receptor de oxitocina
e vasopressina. A inserção de um pedaço extra de
texto de DNA, geralmente com um tamanho de cerca de 460 letras, no promotor
torna o animal mais propenso a manter monogamia com seu companheiro.
O texto extra não cria amor, mas talvez crie a possibilidade
de se apaixonar após a experiência certa.
Comportamento anti-social
Tem sido sugerido com freqüência que maus-tratos
na infância podem criar um adulto anti-social. Uma nova pesquisa
de Terrie Moffitt da Kings College de Londres com um grupo de 442 homens
neozelandeses, que foram acompanhados desde o nascimento, sugere que
isto é valido apenas para uma minoria genética. Novamente,
a diferença está em um promotor que altera a atividade
de um gene. Aqueles com alta atividade dos genes de monoamino oxidase
A são virtualmente imunes aos efeitos dos maus-tratos. Aqueles
com genes menos ativos se mostraram muito mais anti-sociais quando maltratados,
mas menos anti-sociais -ou não- quando não foram maltratados.
Os homens maltratados, com genes menos ativos, foram responsáveis
por quatro vezes sua parcela de estupros, roubos e assaltos. Em outras
palavras, maus-tratos não são suficientes; é preciso
também ter o gene menos ativo. E também não basta
ter o gene menos ativo; também é preciso ser maltratado.
Homossexualidade
Ray Blanchard da Universidade de Toronto descobriu
que homens gays apresentam uma probabilidade maior do que lésbicas
e homens heterossexuais de ter irmãos mais velhos (mas não
irmãs mais velhas). Ele então confirmou esta observação
em 14 amostras de muitos lugares. Algo sobre ocupar um útero
que conteve outros meninos ocasionalmente resulta em redução
do peso do bebê, placenta maior e maior probabilidade de homossexualidade.
Este algo, suspeita Blanchard, é uma reação imunológica
na mãe, provocada pelo primeiro feto masculino, que se torna
mais forte a cada gravidez de bebê do sexo masculino. Talvez a
resposta imunológica afete a expressão de genes chaves
durante o desenvolvimento do cérebro de forma a estimular a atração
do menino por seu próprio sexo. Tal explicação
não seria verdadeira para todos os homens gays, mas pode fornecer
pistas importantes para as origens tanto da homossexualidade quanto
da heterossexualidade.
Sem dúvida, descobertas científicas anteriores
apontaram para a importância deste tipo de inter-relação
entre hereditariedade e ambiente. O exemplo mais marcante é o
condicionamento pavloviano. Quando Pavlov anunciou sua famosa experiência
há um século completado neste ano, ele aparentemente descobriu
como o cérebro poderia ser alterado para adquirir novo conhecimento
do mundo -no caso dos seus cães, conhecimento de que um sino
anunciava a chegada da comida. Mas agora nós sabemos como o cérebro
muda: pela expressão em tempo real de 17 genes, conhecidos como
genes Creb. Eles precisam ser ativados e desativados para alterar as
conexões entre as células nervosas no cérebro e
assim estabelecer uma nova memória de longa duração.
Estes genes estão à mercê de nosso comportamento,
não o contrário. A memória está nos genes
no sentido de que ela usa os genes, não no sentido de que você
herda memórias.
Segundo esta nova visão, os genes permitem à
mente humana aprender, lembrar, imitar, desenvolver linguagem, absorver
cultura e expressar instintos. Os genes não são marionetistas
ou plantas de projeto, nem são apenas os transportadores da hereditariedade.
Eles estão ativos durante a vida; eles são ativados e
desativados; eles respondem ao ambiente. Eles podem dirigir a construção
do corpo e do cérebro no útero, mas então quase
que imediatamente, em resposta à experiência, eles passam
a desmontar e reconstruir o que fizeram. Eles são tanto a causa
quanto a conseqüência de nossas ações.
Será que esta nova visão dos genes nos
permitirá deixar para trás a discussão natureza-formação,
ou estamos condenados a reinventá-la a cada nova geração?
Diferente do que aconteceu em eras anteriores, a ciência está
explicando em grande detalhe precisamente como os genes e seu ambiente
-seja o útero, a sala de aula ou a cultura popular- interagem.
Assim talvez possa cessar o balanço do pêndulo em uma dicotomia
agora provada falsa.
Mas pode fazer parte de nossa natureza buscar histórias
simples, de causa e efeito, e não pensar em termos de causalidade
circular, na qual os efeitos se tornam suas próprias causas.
Talvez a idéia da natureza via formação, como as
idéias da mecânica quântica e da relatividade, sejam
contra-intuitivas demais para as mentes humanas. Talvez a necessidade
de nos vermos em termos de natureza versus formação, como
nossa capacidade instintiva de temer cobras, possa estar codificada
em nossos genes.
*Matt Ridley é um zoólogo formado em Oxford e escritor
de ciência cujo mais recente livro é "Nature via Nurture"
(HarperCollins)
Tradução: George El Khouri Andolfato