Comportamento humano em relaçao a seu hambiente, à luz das teorias biológicas da evolução
Por: Guillermo Foladori

Professor Visitante. Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Universidade Federal do Paraná.

Rua 7 de Setembro 357 ap. 10. Curitiba, PR 80050-100. E-mail: fola@cce.ufpr.br

1. Introdução

Segundo a teoria neodarwinista em biologia, o fenótipo joga papel ínfimo na evolução. A evolução é exclusivamente uma questão genética. Neste artigo argumentaremos: a) trata-se de uma visão unilateral da evolução; b) existe outra corrente, a Fenogenética, que dá conta mais amplamente do papel do fenótipo na evolução; e c) essa discussão é especialmente importante para se entender o comportamento do ser humano em relação a seu ambiente.

 

2. A Evolução da Perspectiva Neodarwinista

A evolução é o processo mediante o qual se originam novas e diferentes espécies a partir de antepassados comuns. Darwin desenvolveu uma teoria para explicar o mecanismo evolutivo: a seleção natural. Essa idéia-chave encerra quatro elementos fundamentais que requerem explicação. O primeiro é a variação. Sem conhecer as leis mendelianas da herança, nem a composição e função dos genes, Darwin se adiantou propondo que, por meio da reprodução, os pais geravam filhos semelhantes, mas não iguais. As diferenças entre os indivíduos, por pequenas que fossem, eram contrastadas quando seus portadores competiam pelo alimento ou pelo refúgio.

 

Esse conceito de concorrência, segundo elemento que queremos destacar, foi tomado por Darwin de Adam Smith; supondo que tal como na economia, onde a busca do interesse individual se convertia no melhor para a sociedade em seu conjunto, a concorrência entre os diferentes organismos de uma espécie levava à sobrevivência e reprodução dos mais aptos e, com isso, ao melhoramento – em termos adaptativos – da espécie como um todo.

 

Como para a ideologia capitalista, que permeava o trabalho de Darwin, não há concorrência sem recursos limitados sobre os quais competir, há um terceiro conceito, o suposto de que a população cresce mais rapidamente que o alimento disponível. Essa idéia é emprestada de Malthus, tal como o mesmo Darwin o assinalava no início do A origem das Espécies.

 

O quarto elemento é o suposto de que o mundo externo está dado, mas, longe de ser neutro é, ele mesmo, quem permite que os indivíduos portadores de peculiaridade mais favorável, ou mais aptos, sobrevivam e se reproduzam.

 

A mudança evolutiva estaria dada pela adaptação ao meio; o mecanismo seria a seleção natural que permitiria que os mais aptos se reproduzissem mais. Com isso, resultava desprezada a teoria lamarckiana da evolução, que sustentava que os traços que eram adquiridos durante a vida dos indivíduos (como resultado do uso e desuso de diferentes partes do corpo) podiam ser transmitidos à descendência.

 

A força da teoria de Darwin está em sua contrastação com os avanços da biologia em diversos campos. À medida que o conhecimento das leis da herança e do papel dos genes e do DNA complementavam, mas não rechaçavam, as predições de Darwin, sua teoria se fortalecia.

 

Mendel, o descobridor das leis da herança, foi contemporâneo de Darwin, apesar de este, ao que tudo indica, não haver conhecido seus trabalhos. A herança mendeliana diz que cada indivíduo recebe, para cada traço, um par de genes, um de cada progenitor. Quando o indivíduo produz uma célula germinal (únicas que se transmitem hereditariamente), um de tais genes (eleito pelo acaso) se incorpora e transmite, assim, à descendência. Com isso estavam se dando as bases para explicar a replicação dos indivíduos pela herança, e abandonar as idéias lamarckianas do uso e desuso. Durante a década de 30 do século XX se logrou avançar no conhecimento dos mecanismos da herança e se chegou a reunir sob uma só teoria da evolução a teoria darwinista e a da herança mendeliana. A genética se constituiu, então, na ciência básica da teoria da evolução. Um dos traços da teoria genética é a distinção entre fenótipo e genótipo. O fenótipo é o organismo em seu conjunto, enquanto estrutura e também comportamento. O genótipo é sua estrutura genética, aquela herdada de seus progenitores. A essa síntese da teoria darwinista e da herança mendeliana se chamou teoria sintética, ou neodarwinismo.

 

O peso da genética foi contundente. Permitiu um modelo, elementos distinguíveis e medíveis, e até a experimentação. Mas, a mesma força da genética conduziu a dois pressupostos que não foram considerados por Darwin, e, inclusive, o segundo que vamos assinalar contrariava os postulados darwinistas. O primeiro pressuposto foi considerar a herança genética como o único tipo de herança para os fins evolutivos. Deixava-se de fora, por exemplo, a herança que pudesse ser resultado da cultura – como na sociedade humana, a herança de bens materiais. Como essa cultura não está programada geneticamente, não há forma de que essa seja transmitida à descendência por essa via, e, portanto, não entra na evolução, por mais que jogue um papel destacado na vida cotidiana dos indivíduos e espécies. Dissemos que Darwin não restringiu a herança à herança genética porque não conheceu o que eram os genes nem o papel que tinham na reprodução; portanto, seu conceito de seleção natural como mecanismo evolutivo não podia restringir-se à herança genética.

 

Nesse momento nos vemos abrigados a fazer uma digressão, para que o leitor não se sinta surpreendido. Hoje em dia, o conceito de herança está tão ligado ao de genética que parece um contrasenso falar de uma herança não genética, ao menos na teoria evolutiva. Mas, se o que a teoria evolutiva deve explicar é a "descendência com modificação", em caso de que exista outro mecanismo, não genético, que cumpra a função de garantir um caminho à descendência, devemos aceitar esse outro caminho como parte da teoria da evolução. Desde já adiantamos que existe outro caminho, complementar à herança genética, que chamamos de herança ecológica. Mais adiante voltaremos a essa questão. Fica claro, não obstante, que Darwin não reduziu a seleção à herança genética – não teria podido fazê-lo ao não reconhecer a herança mendeliana. Essa restrição foi realizada pela teoria sintética.

 

O segundo pressuposto foi o de converter a seleção natural no único mecanismo de variação (se excluímos o acaso). Aqui o pressuposto está explicitamente contra os postulados darwinistas. O mesmo Darwin derivou sua teoria da seleção natural da seleção artificial que realizavam os criadores de pombas, agricultores, pecuaristas etc. E, ainda que reconhecesse a grande diferença entre a seleção natural, que gerava espécies totalmente novas, da seleção por crias, que somente aprofundava as variedades já existentes na natureza, o fato é que partiu do reconhecimento da existência de outro mecanismo evolutivo diferente da seleção natural, ou seja, a artificial, ou feita pelo ser humano. Essa foi a segunda restrição realizada pelo neodarwinismo.

 

Nosso objetivo agora é mostrar como essas restrições impostas pela teoria sintética à original teoria da seleção natural de Darwin significaram, da perspectiva metodológica e filosófica, um reducionismo. Ao mesmo tempo, interessa-nos mostrar que existe outra corrente dentro da biologia evolutiva, que resgata um mecanismo complementar à herança genética que também tem efeitos evolutivos. A diferença entre ambas as concepções tem raízes no papel atribuído ao fenótipo na evolução.

 

Segundo a teoria sintética, a única herança evolutiva é a genética; o fenótipo não cumpre outra função que a de ser o veículo ou meio através do qual se transmitem genes. Por isso, podemos dizer que a teoria sintética é Genética quanto à evolução. Segundo o neodarwinismo, o fenótipo poderia contribuir de duas formas para a evolução: a) sendo o portador ou veículo dos genes; b) mediante o comportamento (ou cultura), os fenótipos podem modificar o meio ambiente; esse novo meio ambiente modificado constituiria novas restrições ou vantagens para os organismos.

 

No primeiro caso, os organismos são selecionados pelo ambiente, e assim vão conseguindo uma adaptação cada vez maior. O fenótipo não cumpre nenhuma função na evolução, salvo a de ser portador de genes. No segundo caso, o fenótipo, por meio de seu grau de liberdade de ação, modifica o meio ambiente. O novo ambiente volta a selecionar organismos (genes), que, por sua vez, modificam novamente o ambiente, e assim sucessivamente. Aqui o fenótipo cumpre não somente a função de portador de genes, mas também a de modificar o meio. Mas, ainda nesse caso, o fenótipo não tem nenhuma função direta na evolução, já que é o novo meio o que, uma vez mais, seleciona os genes. De qualquer forma, poderíamos falar de uma função indireta na evolução. Como escreve Bonner,

 

"Pela cultura, é possível mudar o meio ambiente, e é o meio ambiente que controla a direção da seleção dos genes" (Bonner, 1983:36 Grifo nosso).

 

E também,

 

"A outra conseqüência é que a seleção de um meme poderá, em última instância, afetar a direção das mudanças gênicas, à medida que favorece o êxito reprodutivo em certos fenótipos" (Bonner, 1983:36-37).

 

Em síntese, quando o meio seleciona os organismos, estamos diante de um determinismo ambiental direto (alternativa a); quando o fenótipo, mediante sua liberdade de ação, corrige o meio, o novo meio volta a selecionar os genes (alternativa b), e estamos diante de um determinismo ambiental indireto. Dito de outra maneira, para a teoria neodarwinista a relação entre o organismo é o meio e unilateral —do meio ao organismo— ou bilateral —incluíndo o processo do organismo ao medio—.

 

 

3. A teoria Fenogenética da evolução

 

A partir dos anos sessenta, Waddington começou a criticar essa visão da evolução. Ele sustentou que os fenótipos podiam cumprir um papel mais decisivo que tão-somente modificar o meio. Podiam eleger o meio e as pressões seletivas. Em 1978, Lewontin escreveu um artigo seminal sobre o tema. Ele utilizou a metáfora da fechadura e a chave para explicar o papel do fenótipo na evolução. Escreveu que, segundo a teoria sintética, o meio era a fechadura fixa, à qual os organismos (chaves) deviam se adaptar. Porém, argumentou, os organismos elegem e modificam o ambiente segundo os seus interesses. Nesse sentido, se se utilizar a metáfora da fechadura, devemos considerá-la maleável, e não apenas que a chave o seja (Brandon, 1988). A essa nova teoria da evolução tem se chamado Fenogenética, construtivista, ou da co-evolução organismo-nicho ecológico.Assim, a relação entre ou organismo e o meio não é somente bilateral, mas eles coevoluem conjuntamente. O papel ativo pasa do meio ambiente para ou organismo.

 

Lewontin (1978) assinala que o conceito de adaptação ao meio supõe que o meio preexista ao organismo que se adapta, mas como o nicho ecológico em que cada organismo se desenvolve está formado por outros seres vivos e pela atividade do mesmo organismo e espécie em momentos precedentes, não pode haver nicho que preexista ao organismo. O nicho ecológico é resultado da atividade dos organismos. Nesse sentido, o conceito de adaptação ao meio perde força.

 

A teoria Fenogenética não nega o papel da herança genética na evolução. Mas, ao contrário, sustenta que essa herança genética funciona simultânea e complementarmente à modificação do meio ambiente pelos organismos. Os organismos selecionam o meio, o alimento, os refúgios, as inter-relações com os congêneres e com as outras espécies.

 

"O fato geral e fundamental dos fenogenetistas é que o fenótipo dos organismos é uma conseqüência de uma inter-relação não trivial entre o genótipo e o meio ambiente durante o desenvolvimento. Tudo o que os genes fazem é especificar uma norma de reação sobre os ambientes" (Lewontin, 1983:277).

 

Esse papel ativo dos organismos sobre seus ambientes faz com que os ambientes sejam modificados por eles. Assim, os organismos deixam à sua descendência um meio ambiente modificado. Odling-Smee escreve:

 

"[...] os fenótipos fazem uma dupla construção a essas relações recíprocas. Eles reatuam afetando as pressões de seleção natural de seus ambientes mediante a sobrevivência e reproduzindo-se diferencialmente, contribuindo assim para as conseqüências da seleção natural. Também ativamente selecionam e perturbam seus próprios ambientes locais, contribuindo assim para as causas da seleção natural (Odling-Smee, 1994:168).

 

Dessa perspectiva, o fenótipo não é tão-somente um veículo de transmissão de genes, tampouco é um modificador do meio para que este volte a selecionar os organismos, mas joga um papel na evolução ao selecionar o meio, construí-lo segundo seus interesses e, em definitivo, deixar um meio construído para suas futuras gerações.

 

O organismo seleciona o entorno dentre diversos meios físicos, que, por sua vez, o transforma e se transforma a si mesmo. O resultado são dois mecanismos evolutivos entrelaçados. Odling-Smee (1988) argumenta que os pais podem incrementar a viabilidade de seus filhos de duas maneiras. Por um lado, transmitindo melhores genes para um ambiente futuro; por outro, transmitindo um melhor ambiente para os genes vindouros. Nesse último caso, o meio é alterado pelo comportamento dos pais. Ao ter incidência na viabilidade da descendência, converte-se em um mecanismo evolutivo, ainda quando seja exterior ao organismo mesmo.

 

As diferenças entre a alternativa "b" e a alternativa "c" podem ser visualizadas mais claramente mediante o seguinte quadro comparativo:

 

Quadro Comparativo dos Mecanismos Evolutivos

Itens

Herança Genética

Herança Ecológica

1

Nível de atuação

Genótipo

Fenótipo

2

Elemento que transmite

Genes selecionados naturalmente

Pressões seletivas modificadas do nicho ecológico

3

Mecanismo

Reprodução

Pressões seletivas modificadas do nicho ecológico

4

Momento da transmissão

Uma vez no ciclo vital, durante a concepção

Continuamente, durante todo o ciclo vital

5

Direção

Vertical: de pais a filhos

Vertical, horizontal e/ou oblíqua

6

Organismos evolvidos

Progenitores (ou parentes quando "altruísmo")

Qualquer um que compartilhe o nicho ecológico, inclusive outras espécies

7

Âmbito que se vê afetado

Interior (corpo)

Exterior: nicho ecológico

8

Alcance

Indivíduos e populações da espécie

Populações, indivíduos, grupos. Diversas espécies

Fonte: Elaboração a partir de Odlin-Smee (1988, 1994); Lewontin; Rose; Kamin (1991).

 

A primeira linha (1) se auto-explica. A herança genética se realiza no plano do gênico, enquanto a herança ecológica se dá no plano do comportamento do organismo, ou atuação do fenótipo. A segunda linha (2) se refere ao que se transmite como herança. No caso da herança genética, são genes. No caso de herança ecológica, é o nicho ecológico, ou as pressões seletivas modificadas. A terceira linha (3) mostra que, enquanto na herança genética o mecanismo é a reprodução, na herança ecológica o mecanismo é a modificação do nicho ecológico. A quarta linha (4) mostra a importante diferença entre a transmissão da informação, uma vez na vida, durante a concepção, no caso da herança genética, para uma transmissão de informação permanente, no caso da herança ecológica. A Quinta linha (5) estabelece as diferenças de direção. Para a herança genética, a informação somente pode ser transmitida verticalmente, de pais a filhos. Para a herança ecológica, pode ser vertical, horizontal no âmbito da mesma geração, ou oblíqua, entre gerações em diferentes momentos. A sexta linha (6) se refere aos atores. Na herança genética, são os progenitores (ou os parentes no caso de altruísmo, em que um indivíduo se sacrifica para que os parentes próximos sobrevivam e transmitam mais genes próprios para a descendência que aquele que tivesse sido resultado da reprodução do "sacrificado"). Em sétimo lugar (7), vemos que, enquanto a herança genética se realiza no interior do corpo do organismo, a herança ecológica se realiza no exterior do corpo. Por último (8), enquanto na herança genética o alcance abarca indivíduos e populações de uma espécie, na herança ecológica o alcance é muito maior, já que, além dos indivíduos e das populações, pode chegar a abarcar grupos dentro de uma espécie e diversas espécies.

 

De uma perspectiva metodológica, as diferenças entre ambas as teorias evolutivas são bem marcadas. O quadro a seguir ilustra a situação.

 

Quadro Comparativo do Caráter Metodológico das Teorias Evolutivas

Características

Teoria Genética

Teoria Fenogenética

Enfoque

Reducionista

Organicista

Relações

Mecânicas

Dialéticas

Perspectiva

Unilateral, determinismo ambiental

Múltiplas determinações

Privilegia

Contradição

Unidade contraditória

 

A primeira linha mostra o enfoque reducionista, que considera os genes como únicos determinantes da evolução, no caso da teoria Genética; o que o distingue do enfoque organicista, que reivindica a atuação do organismo como um todo em sua relação com o ambiente. A segunda linha dá conta do caráter mecânico das relações da teoria Genética, à medida que a "adaptação ao meio" é o único caminho evolutivo, seja diretamente (alternativa a), ou indiretamente (alternativa b). Ao contrário, na teoria Fenogenética, a relação entre organismo e meio é dialética. O nicho ecológico é uma construção conjunta tanto das pressões externas como da atuação do organismo para fora e em seu interior. A terceira linha menciona a perspectiva unilateral da teoria Genética, já que é sempre o meio que atua com fins evolutivos sobre o organismo. Quando o organismo atua sobre o meio não o faz com fins evolutivos, mas, em todo caso, pode contribuir indiretamente; porém, logo o meio ambiente modificado volta a determinar a seleção natural. Para a teoria Fenogenética, não há uma orientação, mas são todas a múltiplas determinações que explicam o processo evolutivo. Por último, a teoria Genética é hobbesiana, ou seja, reivindica a luta e a concorrência entre indivíduos como o caminho até o ponto ótimo. A aliança (altruísmo) somente pode se dar como extensão da luta, e entre parentes. A teoria Fenogenética considera a unidade (alianças) contraditória (luta); ambos os elementos são parte de um mesmo processo. Por momentos pode ser mais importante um ou outro. As alianças, assim como as lutas, podem se dar entre não parentes.

 

Quando analisamos o comportamento humano, as diferenças entre a versão da teoria sintética da evolução e a teoria Fenogenética se fazem mais marcadas. Como a teoria sintética explica a cultura humana? Dizendo, por exemplo, que as pressões seletivas levaram ao desenvolvimento de certas capacidades, como a linguagem articulada, a liberação das mãos etc. Conseqüentemente, o ser humano desenvolveu uma cultura mais sofisticada que outros animais. Tratou-se de um processo lento, cujas formas protoculturais, ou culturais mais elementares podem ser rastreadas em muitas espécies de seres vivos (Bonner, 1983). Essa poderia ser uma explicação neodarwinista para a cultura humana. O problema desse tipo de explicação é que ela perde de vista a característica mais importante da cultura humana: a acumulação de informação extracorporal em coisas materiais.

 

Tomemos o caso de uma atividade como a produção de automóveis. Como qualquer outra esfera da divisão social do trabalho, as fábricas de automóveis precisam de um acúmulo de coisas materiais que foram e são, a cada momento, obtidas de outros produtores anteriores (por exemplo, robôs, soldadores, equipes de eletricidade, produtos plásticos, materiais de diversos tipos etc.). O mesmo ocorre, com um grau de complexidade menor, se tomamos o caso de criadores de pombas, que tanto interesse despertaram em Darwin. Como qualquer outra esfera da divisão social do trabalho, os criadores de pombas também necessitam, para poder exercer seu trabalho, de um acúmulo de coisas materiais que foram obtidas de outros criadores e produtores anteriores. Estamos pensando em jaulas, recipientes de alimentação, argolas, cereais e outros alimentos e também, obviamente, nas próprias pombas previamente cruzadas. Assim, nem sequer um sociobiólogo estaria disposto a afirmar que a divisão social do trabalho está determinada geneticamente, que aqueles que se dedicam a fabricar automóveis ou a criar pombas têm essa atividade como resultado de sua expresão genética. O que fazem o sociobiólogos é, em primeiro lugar, derivar universais humanos que possam ser atribuídos a qualquer esfera da divisão social do trabalho, e a qualquer momento histórico. Esses universais são o egoísmo, a habilidade, a inteligência, a maior atividade, a coragem etc. A seguinte citação de E.O.Wilson é expressiva a respeito:

 

"[...] concorrem pelos escassos recursos localizados em seu campo de ação. Os sujeitos ativos melhores e mais empreendedores obtêm habitualmente uma parte desproporcional das recompensas, ainda que os menos afortunados sejam deslocados a posições menos desejáveis (Wilson, citado por Lewontin, et al., 1991:94).

 

O segundo passo é atribuir uma função adaptativa a cada "meme" cultural, utilizando o termo cunhado por Dawkins para referir-se ao que os antropólogos chamam "pauta cultural". Por exemplo, se o próprios homens enganam suas mulheres com outras, isso é devido ao impulso para transmitir seus próprios genes o mais possível. Aqueles pais que matam seus filhos são estatisticamente padastros, ou pais não biológicos, o que se explica, tal como ocorre com outros primatas, por força inconsciente para evitar a concorrência masculina. A maior inteligência faz que uns sejam ricos, enquanto outros pobres, e assim por estilo.

 

Com esses dois atos de prestidigitação científica, o ultradarwinismo ou sociobiologia, que é a expressão mais recalcitrante do darwinismo, "mata dois pássaros com um só tiro". Por um lado, oculta o papel central e decisivo que tem a acumulação de coisas extracorporais para entender a cultura humana. Por outro, oculta o papel da economia sob o da reprodução.

 

A diferença que existe entre a cultura humana e a "cultura" dos demais seres vivos tem raiz na acumulação de informação extracorporal. Muitos animais fabricam instrumentos, mas o ser humano é o único que fabrica instrumentos que são, por sua vez, meios para fabricar outros instrumentos (Beck, 1980). Essa distinção é essencial. A fabricação de instrumentos para fabricar instrumentos representa uma dupla mediação entre a criação do instrumento e sua aplicação para satisfazer uma necessidade. Requer um conceito de tempo que distinga entre passado (utilização de instrumentos realizados anteriormente), presente (atividade de fabricação de novos instrumentos) e futuro (destino de outros novos instrumentos em fabricação). Mas, também requer que os instrumentos sejam acumulados (materialmente falando) no tempo, passados de uns a outros, e de geração a geração, como informação acumulada extracorporalmente. O fato de que essa informação esteja depositada em coisas materiais é de uma importância fundamental, já que permite sua apropriação e monopólio segundo regras sociais que não têm nada a ver com a informação genética de seus possuidores. Ao acumular coisas através do tempo, o ser humano conseguiu privilegiar a herança ecológica sobre a herança genética como caminho na evolução. Não somente para sua própria espécie, mas para todas aquelas espécies cuja seleção natural já não depende da "adaptação ao meio", mas para as quais o meio é construído para que se adapte ao organismo. Isso ocorre com todas as espécies domésticas, e também com aquelas que se "a cloparam" à sociedade humana como resultado não buscado ou imprevisto (Crosby, 1988).

 

A acumulação de coisas, dentre as quais a acumulação de meios de produção é a mais importante, já que permite produzir todas as demais coisas, é a base das relações econômicas. A economia estuda, precisamente, a produção, distribuição e consumo das coisas produzidas. Mas, do ponto de vista biológico, a produção implica o metabolismo do organismo, e, por extensão, da sociedade. Quando o neodarwinismo subordina as relações econômicas a uma função reprodutiva, está privilegiando a reprodução sobre o metabolismo sem nenhuma justificativa. Ao contrário, existem biólogos que consideram que o metabolismo (economia em sentido vulgar) é ainda mais importante que a reprodução. O conceito de autopoíesis exemplifica isso. A autopoíesis se refere à contínua produção de si mesma, que caracteriza a vida; seria, segundo Maturana e Varela, o signo inequívoco da vida. Margulis e Sagan, seguindo essa proposta, consideram que a autopoíesis ou metabolismo é mais importante que a reprodução. Escrevem:

 

"Já temos dito que o DNA é uma molécula de inquestionável importância para a vida; mesmo assim, não está viva em si mesma. As moléculas de DNA se replicam, mas não metabolizam e, portanto, não são autopoiéticas. A reprodução não é, nem muito menos, um traço vital tão fundamental como a autopoíesis. Consideremos o exemplo da mula, um híbrido de asno e cavalo. É estéril, motivo pelo qual não pode "reproduzir-se", mas metaboliza com tanto vigor como qualquer de seus pais; é autopoiética, logo está viva" (Margulis e Sagan, 1995:23,. Grifo nosso).

 

Na sociedade humana não há autopoíesis possível sem a utilização de meios e coisas produzidas e acumuladas extracorporalmente. Essas coisas são parte da herança ecológica e não podem ser explicadas a partir da herança genética, como pretende a sociobiologia.

 

O preço que paga a teoria neodarwinista em sua versão da sociobiologia ao subordinar a economia à reprodução e a cultura ao genes é muito alto, e tem duas facetas. Primeiro, porque converte em um resultado dos "universais humanos", como o egoísmo, a habilidade, a inteligência, a maior ou menor atividade, a coragem, aquilo que é um fato material, resultado de uma apropriação de coisas materiais. E, apesar de esses "universais humanos" supostamente terem um pretexto genético, isso nunca foi demonstrado. Eles deduzem que se uma pessoa é rica é porque é mais hábil, inteligente etc. (ou o foram seus antepassados). Essa dedução é arbitrária. Não existe nenhuma relação necessária entre êxito social e genes. Bem pode ser devido a regras sociais, resultado de violência direta, ou até do acaso. Com isso, em lugar de atribuir as causas das diferenças sociais humanas às formas históricas de apropriação da riqueza material, atribuem essas causas a supostas características individuais que, curiosamente, somente podem estar depositadas na mente, como o egoísmo, a inteligência etc. Com isso, e contra sua vontade, a sociobiologia resulta idealista.

 

O exposto anteriormente pode se colocado de outro ângulo. O argumento que utiliza o neodarwinismo para explicar a cultura humana é aquele que o situa dentro de um continuum, ao mostrar que diversas formas de vida têm cultura, apresentam cultura humana como parte desse continuum. A partir dessa perspectiva, parece um argumento sólido e materialista. Porém, ocorre que a questão central para entender o comportamento humano não está em um grau maior de complexidade de seu processo de ensino/aprendizagem (essa é a essência da cultura para o neodarwinismo), porque com isso não podemos explicar a divisão social do trabalho nem o nível de desenvolvimento da produtividade do trabalho humano. A questão central está no fato de que os seres humanos conseguiram, por meio do trabalho, acumular informação extracorporal na forma de meios de produção. Ao tratar de explicar todo o comportamento humano como uma função para seu êxito reprodutivo, e, portanto, como um efeito de seus genes, a distinção entre cultura humana e a dos animais não pode mais que centrar-se no grau de liberdade ou flexibilidade que sua mente lhe outorga, ou naqueles "universais" que explicam as diferenças entre os humanos. É nesse sentido que, em última instância, a explicação neodarwinista do comportamento humano é idealista. Ao contrário, se outorga igual importância para a economia que à reprodução, poderia reconhecer a função das formas de apropriação da riqueza extracorporal como resultado necessário do metabolismo social ou da produção da vida, independentemente de seus resultados hereditários.

 

À diferença do neodarwinismo, a teoria Fenogenética reconhece o papel do fenótipo na evolução para todos os seres vivos. De uma perspectiva Fenogenética, existe uma identidade e uma diferença no comportamento do ser humano com seu ambiente com respeito ao restante dos seres vivos. Identidade, porque todos os seres vivos transformam o meio segundo seus interesses. Nesse sentido, o ser humano somente continua um processo originado nas primeiras formas de vida. Diferença, porque o ser humano, ao fabricar instrumentos que fabricam instrumentos, deu um salto qualitativo em sua transformação do meio, ao poder acumular essas transformações através do tempo.

 

A segunda faceta de reduzir a economia à reprodução e a cultura aos genes é que o neodarwinismo explica o comportamento humano em relação a seu ambiente de forma superficial e individual: os humanos se relacionam como um todo com seu entorno, tal como ocorre com qualquer outra espécie de ser vivo. Ao desmerecer o papel central dos meios de produção acumulados, tem-se como resultado que cada geração de humanos nasce em igualdade de condições; isso se fazemos abstração das diferenças genéticas que supostamente explicam os "universais humanos". Mas, a realidade o desmente. No caso dos seres humanos, cada geração não parte do zero, em igualdade de condições, ou com bagagem genética similar, como acontece com qualquer outra espécie. Ao contrário, nasce com um acúmulo de meios de produção, ou seja, de acesso à riqueza passada e de relacionamento com os congêneres diferentes. Isso faz com que o relacionamento com o meio não seja homogêneo, mas que dependa das contradições intra-específicas.

 

Entretanto, uma visão a partir da teoria sintética poderia mostrar as relações ecológicas do ser humano da seguinte forma:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma visão Fenogenética teria de refletir de outra forma, na qual a espécie humana estivesse cruzada por relações intra-específicas que determinam seu relacionamento com o entorno.

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao desconsiderar as diferenças entre congêneres devido à herança ecológica desigual, a teoria neodarwinista trata a todos os seres humanos como iguais, quando de fato são diferentes. Como o ser humano tem a peculiaridade de poder acumular informação extracorporalmente, cada geração não inicia em igualdade de condições, como qualquer outra espécie viva. As gerações de humanos começam com uma bagagem desigual de coisas produzidas. Essas desigualdades criam classes e setores sociais diferentes.

 

O resultado é que, enquanto a teoria evolucionista neodarwinista não apresenta elementos para explicar o comportamento humano em relação a seu ambiente, a teoria evolucionista Fenogenética pode explicar o comportamento humano dentro da teoria do papel do fenótipo na evolução. A cultura humana implicaria um salto qualitativo, mas sem a necessidade de criar qualquer "universal humano" com bases genéticas para sua explicação, ao contrário, permitiria sua convergência com as teorias das ciências sociais.

 

 

4. Conclusões

 

A primeira surpresa quando se lêem os escritos da moderna corrente neodarwinista em biologia é que, ao menos em sua forma mais explícita, a biologia se reduz à genética. O conceito de Dawkins (1979) de que o corpo é tão-somente o veículo de transmissão dos genes não é gratuito, mas exemplifica uma história de avanços contundentes no campo da genética. Não obstante, sentimo-nos mais próximos da corrente Fenogenética em biologia, que sustenta que o fenótipo adapta (dentro de suas limitações genéticas) o meio a suas necessidades e, com isso, afeta o destino da evolução.

 

A biologia evolutiva noedarwinista é incapaz de considerar o papel dos organismos e espécies na transformação do meio com sentido evolutivo. Dessa forma, sua visão é unilateral. Quando se estende esse raciocínio ao comportamento do ser humano com relação a seu ambiente, a conseqüência é perder de vista o elemento central, qual seja, a acumulação de informação extracorporal. Conseqüentemente, não se pode compreender o acesso diferencial, por classes e setores, à riqueza acumulada e a seus efeitos sobre o entorno. A corrente Fenogenética, ao contrário, ao reconhecer o papel do fenótipo na evolução, tem instrumentos analíticos para compreender o comportamento humano diante de seu ambiente e seus efeitos na evolução, com bases materiais.

 

 

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