Comportamento humano em relaçao a seu hambiente, à luz das teorias
biológicas da evolução
Por: Guillermo
Foladori
Professor
Visitante. Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Universidade
Federal do Paraná.
Rua 7 de
Setembro 357 ap. 10. Curitiba, PR 80050-100. E-mail: fola@cce.ufpr.br
1. Introdução
Segundo a
teoria neodarwinista em biologia, o fenótipo joga papel ínfimo na evolução.
A evolução é exclusivamente uma questão genética. Neste artigo argumentaremos:
a) trata-se de uma visão unilateral da evolução; b) existe outra corrente,
a Fenogenética, que dá conta mais amplamente do papel do fenótipo na
evolução; e c) essa discussão é especialmente importante para se entender
o comportamento do ser humano em relação a seu ambiente.
2. A Evolução da Perspectiva
Neodarwinista
A evolução é
o processo mediante o qual se originam novas e diferentes espécies a partir
de antepassados comuns. Darwin desenvolveu uma teoria para explicar o mecanismo
evolutivo: a seleção natural. Essa idéia-chave encerra quatro elementos
fundamentais que requerem explicação. O primeiro é a variação. Sem
conhecer as leis mendelianas da herança, nem a composição e função
dos genes, Darwin se adiantou propondo que, por meio da reprodução, os
pais geravam filhos semelhantes, mas não iguais. As diferenças entre
os indivíduos, por pequenas que fossem, eram contrastadas quando seus
portadores competiam pelo alimento ou pelo refúgio.
Esse conceito
de concorrência, segundo elemento que queremos destacar, foi tomado por
Darwin de Adam Smith; supondo que tal como na economia, onde a busca do
interesse individual se convertia no melhor para a sociedade em seu conjunto,
a concorrência entre os diferentes organismos de uma espécie levava à
sobrevivência e reprodução dos mais aptos e, com isso, ao melhoramento
– em termos adaptativos – da espécie como um todo.
Como para a ideologia
capitalista, que permeava o trabalho de Darwin, não há concorrência sem
recursos limitados sobre os quais competir, há um terceiro conceito, o
suposto de que a população cresce mais rapidamente que o alimento
disponível. Essa idéia é emprestada de Malthus, tal como o mesmo
Darwin o assinalava no início do A origem das Espécies.
O quarto elemento
é o suposto de que o mundo externo está dado, mas, longe de ser neutro
é, ele mesmo, quem permite que os indivíduos portadores de
peculiaridade mais favorável, ou mais aptos, sobrevivam e se reproduzam.
A mudança evolutiva
estaria dada pela adaptação ao meio; o mecanismo seria a seleção natural
que permitiria que os mais aptos se reproduzissem mais. Com isso, resultava
desprezada a teoria lamarckiana da evolução, que sustentava que os traços
que eram adquiridos durante a vida dos indivíduos (como resultado do
uso e desuso de diferentes partes do corpo) podiam ser transmitidos à
descendência.
A força da teoria
de Darwin está em sua contrastação com os avanços da biologia em diversos
campos. À medida que o conhecimento das leis da herança e do papel dos
genes e do DNA complementavam, mas não rechaçavam, as predições de Darwin,
sua teoria se fortalecia.
Mendel, o
descobridor das leis da herança, foi contemporâneo de Darwin, apesar
de este, ao que tudo indica, não haver conhecido seus trabalhos. A herança
mendeliana diz que cada indivíduo recebe, para cada traço, um par de genes,
um de cada progenitor. Quando o indivíduo produz uma célula germinal (únicas
que se transmitem hereditariamente), um de tais genes (eleito pelo acaso)
se incorpora e transmite, assim, à descendência. Com isso estavam se
dando as bases para explicar a replicação dos indivíduos pela herança,
e abandonar as idéias lamarckianas do uso e desuso. Durante a década
de 30 do século XX se logrou avançar no conhecimento dos mecanismos da
herança e se chegou a reunir sob uma só teoria da evolução a teoria
darwinista e a da herança mendeliana. A genética se constituiu, então,
na ciência básica da teoria da evolução. Um dos traços da teoria genética
é a distinção entre fenótipo e genótipo. O fenótipo é o organismo
em seu conjunto, enquanto estrutura e também comportamento. O genótipo
é sua estrutura genética, aquela herdada de seus progenitores. A essa
síntese da teoria darwinista e da herança mendeliana se chamou teoria
sintética, ou neodarwinismo.
O peso da genética
foi contundente. Permitiu um modelo, elementos distinguíveis e medíveis,
e até a experimentação. Mas, a mesma força da genética conduziu a
dois pressupostos que não foram considerados por Darwin, e, inclusive,
o segundo que vamos assinalar contrariava os postulados darwinistas. O primeiro
pressuposto foi considerar a herança genética como o único tipo de herança
para os fins evolutivos. Deixava-se de fora, por exemplo, a herança que
pudesse ser resultado da cultura – como na sociedade humana, a herança
de bens materiais. Como essa cultura não está programada geneticamente,
não há forma de que essa seja transmitida à descendência por essa via,
e, portanto, não entra na evolução, por mais que jogue um papel destacado
na vida cotidiana dos indivíduos e espécies. Dissemos que Darwin não
restringiu a herança à herança genética porque não conheceu o que
eram os genes nem o papel que tinham na reprodução; portanto, seu conceito
de seleção natural como mecanismo evolutivo não podia restringir-se
à herança genética.
Nesse momento
nos vemos abrigados a fazer uma digressão, para que o leitor não se
sinta surpreendido. Hoje em dia, o conceito de herança está tão
ligado ao de genética que parece um contrasenso falar de uma herança não
genética, ao menos na teoria evolutiva. Mas, se o que a teoria
evolutiva deve explicar é a "descendência com modificação",
em caso de que exista outro mecanismo, não genético, que cumpra a função
de garantir um caminho à descendência, devemos aceitar esse outro
caminho como parte da teoria da evolução. Desde já adiantamos que
existe outro caminho, complementar à herança genética, que chamamos
de herança ecológica. Mais adiante voltaremos a essa questão. Fica
claro, não obstante, que Darwin não reduziu a seleção à herança
genética – não teria podido fazê-lo ao não reconhecer a herança
mendeliana. Essa restrição foi realizada pela teoria sintética.
O segundo
pressuposto foi o de converter a seleção natural no único mecanismo
de variação (se excluímos o acaso). Aqui o pressuposto está
explicitamente contra os postulados darwinistas. O mesmo Darwin derivou
sua teoria da seleção natural da seleção artificial que realizavam
os criadores de pombas, agricultores, pecuaristas etc. E, ainda que
reconhecesse a grande diferença entre a seleção natural, que gerava
espécies totalmente novas, da seleção por crias, que somente
aprofundava as variedades já existentes na natureza, o fato é que
partiu do reconhecimento da existência de outro mecanismo evolutivo
diferente da seleção natural, ou seja, a artificial, ou feita pelo ser
humano. Essa foi a segunda restrição realizada pelo neodarwinismo.
Nosso objetivo
agora é mostrar como essas restrições impostas pela teoria sintética
à original teoria da seleção natural de Darwin significaram, da
perspectiva metodológica e filosófica, um reducionismo. Ao mesmo
tempo, interessa-nos mostrar que existe outra corrente dentro da
biologia evolutiva, que resgata um mecanismo complementar à herança
genética que também tem efeitos evolutivos. A diferença entre ambas
as concepções tem raízes no papel atribuído ao fenótipo na evolução.
Segundo a
teoria sintética, a única herança evolutiva é a genética; o fenótipo
não cumpre outra função que a de ser o veículo ou meio através do
qual se transmitem genes. Por isso, podemos dizer que a teoria sintética
é Genética quanto à evolução. Segundo o neodarwinismo, o fenótipo
poderia contribuir de duas formas para a evolução: a) sendo o portador
ou veículo dos genes; b) mediante o comportamento (ou cultura), os fenótipos
podem modificar o meio ambiente; esse novo meio ambiente modificado
constituiria novas restrições ou vantagens para os organismos.
No primeiro
caso, os organismos são selecionados pelo ambiente, e assim vão
conseguindo uma adaptação cada vez maior. O fenótipo não cumpre
nenhuma função na evolução, salvo a de ser portador de genes. No
segundo caso, o fenótipo, por meio de seu grau de liberdade de ação,
modifica o meio ambiente. O novo ambiente volta a selecionar organismos
(genes), que, por sua vez, modificam novamente o ambiente, e assim
sucessivamente. Aqui o fenótipo cumpre não somente a função de
portador de genes, mas também a de modificar o meio. Mas, ainda nesse
caso, o fenótipo não tem nenhuma função direta na evolução, já
que é o novo meio o que, uma vez mais, seleciona os genes. De qualquer
forma, poderíamos falar de uma função indireta na evolução. Como
escreve Bonner,
"Pela
cultura, é possível mudar o meio ambiente, e é o meio ambiente
que controla a direção da seleção dos genes" (Bonner,
1983:36 Grifo nosso).
E também,
"A
outra conseqüência é que a seleção de um meme poderá, em última
instância, afetar a direção das mudanças gênicas, à medida
que favorece o êxito reprodutivo em certos fenótipos"
(Bonner, 1983:36-37).
Em síntese,
quando o meio seleciona os organismos, estamos diante de um determinismo
ambiental direto (alternativa a); quando o fenótipo, mediante sua
liberdade de ação, corrige o meio, o novo meio volta a selecionar os
genes (alternativa b), e estamos diante de um determinismo ambiental
indireto. Dito de outra maneira, para a teoria neodarwinista a relação
entre o organismo é o meio e unilateral —do meio ao organismo— ou
bilateral —incluíndo o processo do organismo ao medio—.
3. A teoria
Fenogenética da evolução
A partir dos
anos sessenta, Waddington começou a criticar essa visão da evolução.
Ele sustentou que os fenótipos podiam cumprir um papel mais decisivo
que tão-somente modificar o meio. Podiam eleger o meio e as pressões
seletivas. Em 1978, Lewontin escreveu um artigo seminal sobre o tema.
Ele utilizou a metáfora da fechadura e a chave para explicar o papel do
fenótipo na evolução. Escreveu que, segundo a teoria sintética, o
meio era a fechadura fixa, à qual os organismos (chaves) deviam se
adaptar. Porém, argumentou, os organismos elegem e modificam o ambiente
segundo os seus interesses. Nesse sentido, se se utilizar a metáfora da
fechadura, devemos considerá-la maleável, e não apenas que a chave o
seja (Brandon, 1988). A essa nova teoria da evolução tem se chamado
Fenogenética, construtivista, ou da co-evolução organismo-nicho ecológico.Assim,
a relação entre ou organismo e o meio não é somente bilateral, mas
eles coevoluem conjuntamente. O papel ativo pasa do meio ambiente para
ou organismo.
Lewontin (1978)
assinala que o conceito de adaptação ao meio supõe que o meio
preexista ao organismo que se adapta, mas como o nicho ecológico em que
cada organismo se desenvolve está formado por outros seres vivos e pela
atividade do mesmo organismo e espécie em momentos precedentes, não
pode haver nicho que preexista ao organismo. O nicho ecológico é
resultado da atividade dos organismos. Nesse sentido, o conceito de
adaptação ao meio perde força.
A teoria
Fenogenética não nega o papel da herança genética na evolução.
Mas, ao contrário, sustenta que essa herança genética funciona simultânea
e complementarmente à modificação do meio ambiente pelos organismos.
Os organismos selecionam o meio, o alimento, os refúgios, as inter-relações
com os congêneres e com as outras espécies.
"O
fato geral e fundamental dos fenogenetistas é que o fenótipo dos
organismos é uma conseqüência de uma inter-relação não
trivial entre o genótipo e o meio ambiente durante o
desenvolvimento. Tudo o que os genes fazem é especificar uma
norma de reação sobre os ambientes" (Lewontin, 1983:277).
Esse papel
ativo dos organismos sobre seus ambientes faz com que os ambientes sejam
modificados por eles. Assim, os organismos deixam à sua descendência
um meio ambiente modificado. Odling-Smee escreve:
"[...]
os fenótipos fazem uma dupla construção a essas relações recíprocas.
Eles reatuam afetando as pressões de seleção natural de seus
ambientes mediante a sobrevivência e reproduzindo-se
diferencialmente, contribuindo assim para as conseqüências da
seleção natural. Também ativamente selecionam e perturbam seus
próprios ambientes locais, contribuindo assim para as causas da
seleção natural (Odling-Smee, 1994:168).
Dessa
perspectiva, o fenótipo não é tão-somente um veículo de transmissão
de genes, tampouco é um modificador do meio para que este volte a
selecionar os organismos, mas joga um papel na evolução ao selecionar
o meio, construí-lo segundo seus interesses e, em definitivo, deixar um
meio construído para suas futuras gerações.
O organismo
seleciona o entorno dentre diversos meios físicos, que, por sua vez, o
transforma e se transforma a si mesmo. O resultado são dois mecanismos
evolutivos entrelaçados. Odling-Smee (1988) argumenta que os pais podem
incrementar a viabilidade de seus filhos de duas maneiras. Por um lado,
transmitindo melhores genes para um ambiente futuro; por outro,
transmitindo um melhor ambiente para os genes vindouros. Nesse último
caso, o meio é alterado pelo comportamento dos pais. Ao ter incidência
na viabilidade da descendência, converte-se em um mecanismo evolutivo,
ainda quando seja exterior ao organismo mesmo.
As diferenças
entre a alternativa "b" e a alternativa "c" podem
ser visualizadas mais claramente mediante o seguinte quadro comparativo:
Quadro
Comparativo dos Mecanismos Evolutivos
|
Itens
|
Herança Genética
|
Herança Ecológica
|
1
|
Nível de atuação
|
Genótipo
|
Fenótipo
|
2
|
Elemento que transmite
|
Genes selecionados naturalmente
|
Pressões seletivas modificadas
do nicho ecológico
|
3
|
Mecanismo
|
Reprodução
|
Pressões seletivas modificadas
do nicho ecológico
|
4
|
Momento da transmissão
|
Uma vez no ciclo vital, durante
a concepção
|
Continuamente, durante todo o
ciclo vital
|
5
|
Direção
|
Vertical: de pais a filhos
|
Vertical, horizontal e/ou oblíqua
|
6
|
Organismos evolvidos
|
Progenitores (ou parentes quando
"altruísmo")
|
Qualquer um que compartilhe o
nicho ecológico, inclusive outras espécies
|
7
|
Âmbito que se vê afetado
|
Interior (corpo)
|
Exterior: nicho ecológico
|
8
|
Alcance
|
Indivíduos e populações da
espécie
|
Populações, indivíduos,
grupos. Diversas espécies
|
Fonte: Elaboração
a partir de Odlin-Smee (1988, 1994); Lewontin; Rose; Kamin (1991).
A primeira
linha (1) se auto-explica. A herança genética se realiza no plano do gênico,
enquanto a herança ecológica se dá no plano do comportamento do
organismo, ou atuação do fenótipo. A segunda linha (2) se refere ao
que se transmite como herança. No caso da herança genética, são
genes. No caso de herança ecológica, é o nicho ecológico, ou as
pressões seletivas modificadas. A terceira linha (3) mostra que,
enquanto na herança genética o mecanismo é a reprodução, na herança
ecológica o mecanismo é a modificação do nicho ecológico. A quarta
linha (4) mostra a importante diferença entre a transmissão da informação,
uma vez na vida, durante a concepção, no caso da herança genética,
para uma transmissão de informação permanente, no caso da herança
ecológica. A Quinta linha (5) estabelece as diferenças de direção.
Para a herança genética, a informação somente pode ser transmitida
verticalmente, de pais a filhos. Para a herança ecológica, pode ser
vertical, horizontal no âmbito da mesma geração, ou oblíqua, entre
gerações em diferentes momentos. A sexta linha (6) se refere aos
atores. Na herança genética, são os progenitores (ou os parentes no
caso de altruísmo, em que um indivíduo se sacrifica para que os
parentes próximos sobrevivam e transmitam mais genes próprios para a
descendência que aquele que tivesse sido resultado da reprodução do
"sacrificado"). Em sétimo lugar (7), vemos que, enquanto a
herança genética se realiza no interior do corpo do organismo, a herança
ecológica se realiza no exterior do corpo. Por último (8), enquanto na
herança genética o alcance abarca indivíduos e populações de uma
espécie, na herança ecológica o alcance é muito maior, já que, além
dos indivíduos e das populações, pode chegar a abarcar grupos dentro
de uma espécie e diversas espécies.
De uma
perspectiva metodológica, as diferenças entre ambas as teorias
evolutivas são bem marcadas. O quadro a seguir ilustra a situação.
Quadro
Comparativo do Caráter Metodológico das Teorias Evolutivas
Características
|
Teoria Genética
|
Teoria Fenogenética
|
Enfoque
|
Reducionista
|
Organicista
|
Relações
|
Mecânicas
|
Dialéticas
|
Perspectiva
|
Unilateral,
determinismo ambiental
|
Múltiplas
determinações
|
Privilegia
|
Contradição
|
Unidade
contraditória
|
A primeira
linha mostra o enfoque reducionista, que considera os genes como únicos
determinantes da evolução, no caso da teoria Genética; o que o
distingue do enfoque organicista, que reivindica a atuação do
organismo como um todo em sua relação com o ambiente. A segunda linha
dá conta do caráter mecânico das relações da teoria Genética, à
medida que a "adaptação ao meio" é o único caminho
evolutivo, seja diretamente (alternativa a), ou indiretamente
(alternativa b). Ao contrário, na teoria Fenogenética, a relação
entre organismo e meio é dialética. O nicho ecológico é uma construção
conjunta tanto das pressões externas como da atuação do organismo
para fora e em seu interior. A terceira linha menciona a perspectiva
unilateral da teoria Genética, já que é sempre o meio que atua com
fins evolutivos sobre o organismo. Quando o organismo atua sobre o meio
não o faz com fins evolutivos, mas, em todo caso, pode contribuir
indiretamente; porém, logo o meio ambiente modificado volta a
determinar a seleção natural. Para a teoria Fenogenética, não há
uma orientação, mas são todas a múltiplas determinações que
explicam o processo evolutivo. Por último, a teoria Genética é
hobbesiana, ou seja, reivindica a luta e a concorrência entre indivíduos
como o caminho até o ponto ótimo. A aliança (altruísmo) somente pode
se dar como extensão da luta, e entre parentes. A teoria Fenogenética
considera a unidade (alianças) contraditória (luta); ambos os
elementos são parte de um mesmo processo. Por momentos pode ser mais
importante um ou outro. As alianças, assim como as lutas, podem se dar
entre não parentes.
Quando
analisamos o comportamento humano, as diferenças entre a versão da
teoria sintética da evolução e a teoria Fenogenética se fazem mais
marcadas. Como a teoria sintética explica a cultura humana? Dizendo,
por exemplo, que as pressões seletivas levaram ao desenvolvimento de
certas capacidades, como a linguagem articulada, a liberação das mãos
etc. Conseqüentemente, o ser humano desenvolveu uma cultura mais
sofisticada que outros animais. Tratou-se de um processo lento, cujas
formas protoculturais, ou culturais mais elementares podem ser
rastreadas em muitas espécies de seres vivos (Bonner, 1983). Essa
poderia ser uma explicação neodarwinista para a cultura humana. O
problema desse tipo de explicação é que ela perde de vista a característica
mais importante da cultura humana: a acumulação de informação
extracorporal em coisas materiais.
Tomemos o caso
de uma atividade como a produção de automóveis. Como qualquer outra
esfera da divisão social do trabalho, as fábricas de automóveis
precisam de um acúmulo de coisas materiais que foram e são, a cada
momento, obtidas de outros produtores anteriores (por exemplo, robôs,
soldadores, equipes de eletricidade, produtos plásticos, materiais de
diversos tipos etc.). O mesmo ocorre, com um grau de complexidade menor,
se tomamos o caso de criadores de pombas, que tanto interesse
despertaram em Darwin. Como qualquer outra esfera da divisão social do
trabalho, os criadores de pombas também necessitam, para poder exercer
seu trabalho, de um acúmulo de coisas materiais que foram obtidas de
outros criadores e produtores anteriores. Estamos pensando em jaulas,
recipientes de alimentação, argolas, cereais e outros alimentos e também,
obviamente, nas próprias pombas previamente cruzadas. Assim, nem sequer
um sociobiólogo estaria disposto a afirmar que a divisão social do
trabalho está determinada geneticamente, que aqueles que se dedicam a
fabricar automóveis ou a criar pombas têm essa atividade como
resultado de sua expresão genética. O que fazem o sociobiólogos é,
em primeiro lugar, derivar universais humanos que possam ser atribuídos
a qualquer esfera da divisão social do trabalho, e a qualquer momento
histórico. Esses universais são o egoísmo, a habilidade, a inteligência,
a maior atividade, a coragem etc. A seguinte citação de E.O.Wilson é
expressiva a respeito:
"[...]
concorrem pelos escassos recursos localizados em seu campo de ação.
Os sujeitos ativos melhores e mais empreendedores obtêm
habitualmente uma parte desproporcional das recompensas, ainda que
os menos afortunados sejam deslocados a posições menos desejáveis
(Wilson, citado por Lewontin, et al., 1991:94).
O segundo passo
é atribuir uma função adaptativa a cada "meme" cultural,
utilizando o termo cunhado por Dawkins para referir-se ao que os antropólogos
chamam "pauta cultural". Por exemplo, se o próprios homens
enganam suas mulheres com outras, isso é devido ao impulso para
transmitir seus próprios genes o mais possível. Aqueles pais que matam
seus filhos são estatisticamente padastros, ou pais não biológicos, o
que se explica, tal como ocorre com outros primatas, por força
inconsciente para evitar a concorrência masculina. A maior inteligência
faz que uns sejam ricos, enquanto outros pobres, e assim por estilo.
Com esses dois
atos de prestidigitação científica, o ultradarwinismo ou
sociobiologia, que é a expressão mais recalcitrante do darwinismo,
"mata dois pássaros com um só tiro". Por um lado, oculta o
papel central e decisivo que tem a acumulação de coisas extracorporais
para entender a cultura humana. Por outro, oculta o papel da economia
sob o da reprodução.
A diferença
que existe entre a cultura humana e a "cultura" dos demais
seres vivos tem raiz na acumulação de informação extracorporal.
Muitos animais fabricam instrumentos, mas o ser humano é o único que
fabrica instrumentos que são, por sua vez, meios para fabricar outros
instrumentos (Beck, 1980). Essa distinção é essencial. A fabricação
de instrumentos para fabricar instrumentos representa uma dupla mediação
entre a criação do instrumento e sua aplicação para satisfazer uma
necessidade. Requer um conceito de tempo que distinga entre passado
(utilização de instrumentos realizados anteriormente), presente
(atividade de fabricação de novos instrumentos) e futuro (destino de
outros novos instrumentos em fabricação). Mas, também requer que os
instrumentos sejam acumulados (materialmente falando) no tempo, passados
de uns a outros, e de geração a geração, como informação acumulada
extracorporalmente. O fato de que essa informação esteja depositada em
coisas materiais é de uma importância fundamental, já que permite sua
apropriação e monopólio segundo regras sociais que não têm nada a
ver com a informação genética de seus possuidores. Ao acumular coisas
através do tempo, o ser humano conseguiu privilegiar a herança ecológica
sobre a herança genética como caminho na evolução. Não somente para
sua própria espécie, mas para todas aquelas espécies cuja seleção
natural já não depende da "adaptação ao meio", mas para as
quais o meio é construído para que se adapte ao organismo. Isso ocorre
com todas as espécies domésticas, e também com aquelas que se "a
cloparam" à sociedade humana como resultado não buscado ou
imprevisto (Crosby, 1988).
A acumulação
de coisas, dentre as quais a acumulação de meios de produção é a
mais importante, já que permite produzir todas as demais coisas, é a
base das relações econômicas. A economia estuda, precisamente, a
produção, distribuição e consumo das coisas produzidas. Mas, do
ponto de vista biológico, a produção implica o metabolismo do
organismo, e, por extensão, da sociedade. Quando o neodarwinismo
subordina as relações econômicas a uma função reprodutiva, está
privilegiando a reprodução sobre o metabolismo sem nenhuma
justificativa. Ao contrário, existem biólogos que consideram que o
metabolismo (economia em sentido vulgar) é ainda mais importante que a
reprodução. O conceito de autopoíesis exemplifica isso. A autopoíesis
se refere à contínua produção de si mesma, que caracteriza a vida;
seria, segundo Maturana e Varela, o signo inequívoco da vida. Margulis
e Sagan, seguindo essa proposta, consideram que a autopoíesis ou
metabolismo é mais importante que a reprodução. Escrevem:
"Já
temos dito que o DNA é uma molécula de inquestionável importância
para a vida; mesmo assim, não está viva em si mesma. As moléculas
de DNA se replicam, mas não metabolizam e, portanto, não são
autopoiéticas. A reprodução não é, nem muito menos, um traço
vital tão fundamental como a autopoíesis. Consideremos o exemplo
da mula, um híbrido de asno e cavalo. É estéril, motivo pelo
qual não pode "reproduzir-se", mas metaboliza com tanto
vigor como qualquer de seus pais; é autopoiética, logo está
viva" (Margulis e Sagan, 1995:23,. Grifo nosso).
Na sociedade
humana não há autopoíesis possível sem a utilização de meios e
coisas produzidas e acumuladas extracorporalmente. Essas coisas são
parte da herança ecológica e não podem ser explicadas a partir da
herança genética, como pretende a sociobiologia.
O preço que
paga a teoria neodarwinista em sua versão da sociobiologia ao
subordinar a economia à reprodução e a cultura ao genes é muito
alto, e tem duas facetas. Primeiro, porque converte em um resultado dos
"universais humanos", como o egoísmo, a habilidade, a inteligência,
a maior ou menor atividade, a coragem, aquilo que é um fato material,
resultado de uma apropriação de coisas materiais. E, apesar de esses
"universais humanos" supostamente terem um pretexto genético,
isso nunca foi demonstrado. Eles deduzem que se uma pessoa é rica é
porque é mais hábil, inteligente etc. (ou o foram seus antepassados).
Essa dedução é arbitrária. Não existe nenhuma relação necessária
entre êxito social e genes. Bem pode ser devido a regras sociais,
resultado de violência direta, ou até do acaso. Com isso, em lugar de
atribuir as causas das diferenças sociais humanas às formas históricas
de apropriação da riqueza material, atribuem essas causas a supostas
características individuais que, curiosamente, somente podem estar
depositadas na mente, como o egoísmo, a inteligência etc. Com isso, e
contra sua vontade, a sociobiologia resulta idealista.
O exposto
anteriormente pode se colocado de outro ângulo. O argumento que utiliza
o neodarwinismo para explicar a cultura humana é aquele que o situa
dentro de um continuum, ao mostrar que diversas formas de vida têm
cultura, apresentam cultura humana como parte desse continuum. A partir
dessa perspectiva, parece um argumento sólido e materialista. Porém,
ocorre que a questão central para entender o comportamento humano não
está em um grau maior de complexidade de seu processo de
ensino/aprendizagem (essa é a essência da cultura para o
neodarwinismo), porque com isso não podemos explicar a divisão social
do trabalho nem o nível de desenvolvimento da produtividade do trabalho
humano. A questão central está no fato de que os seres humanos
conseguiram, por meio do trabalho, acumular informação extracorporal
na forma de meios de produção. Ao tratar de explicar todo o
comportamento humano como uma função para seu êxito reprodutivo, e,
portanto, como um efeito de seus genes, a distinção entre cultura
humana e a dos animais não pode mais que centrar-se no grau de
liberdade ou flexibilidade que sua mente lhe outorga, ou naqueles
"universais" que explicam as diferenças entre os humanos. É
nesse sentido que, em última instância, a explicação neodarwinista
do comportamento humano é idealista. Ao contrário, se outorga igual
importância para a economia que à reprodução, poderia reconhecer a
função das formas de apropriação da riqueza extracorporal como
resultado necessário do metabolismo social ou da produção da vida,
independentemente de seus resultados hereditários.
À diferença
do neodarwinismo, a teoria Fenogenética reconhece o papel do fenótipo
na evolução para todos os seres vivos. De uma perspectiva Fenogenética,
existe uma identidade e uma diferença no comportamento do ser humano
com seu ambiente com respeito ao restante dos seres vivos. Identidade,
porque todos os seres vivos transformam o meio segundo seus interesses.
Nesse sentido, o ser humano somente continua um processo originado nas
primeiras formas de vida. Diferença, porque o ser humano, ao fabricar
instrumentos que fabricam instrumentos, deu um salto qualitativo em sua
transformação do meio, ao poder acumular essas transformações através
do tempo.
A segunda
faceta de reduzir a economia à reprodução e a cultura aos genes é
que o neodarwinismo explica o comportamento humano em relação a seu
ambiente de forma superficial e individual: os humanos se relacionam
como um todo com seu entorno, tal como ocorre com qualquer outra espécie
de ser vivo. Ao desmerecer o papel central dos meios de produção
acumulados, tem-se como resultado que cada geração de humanos nasce em
igualdade de condições; isso se fazemos abstração das diferenças
genéticas que supostamente explicam os "universais humanos".
Mas, a realidade o desmente. No caso dos seres humanos, cada geração não
parte do zero, em igualdade de condições, ou com bagagem genética
similar, como acontece com qualquer outra espécie. Ao contrário, nasce
com um acúmulo de meios de produção, ou seja, de acesso à riqueza
passada e de relacionamento com os congêneres diferentes. Isso faz com
que o relacionamento com o meio não seja homogêneo, mas que dependa
das contradições intra-específicas.
Entretanto, uma
visão a partir da teoria sintética poderia mostrar as relações ecológicas
do ser humano da seguinte forma:
Uma visão
Fenogenética teria de refletir de outra forma, na qual a espécie
humana estivesse cruzada por relações intra-específicas que
determinam seu relacionamento com o entorno.
Ao
desconsiderar as diferenças entre congêneres devido à herança ecológica
desigual, a teoria neodarwinista trata a todos os seres humanos como
iguais, quando de fato são diferentes. Como o ser humano tem a
peculiaridade de poder acumular informação extracorporalmente, cada
geração não inicia em igualdade de condições, como qualquer outra
espécie viva. As gerações de humanos começam com uma bagagem
desigual de coisas produzidas. Essas desigualdades criam classes e
setores sociais diferentes.
O resultado é
que, enquanto a teoria evolucionista neodarwinista não apresenta
elementos para explicar o comportamento humano em relação a seu
ambiente, a teoria evolucionista Fenogenética pode explicar o
comportamento humano dentro da teoria do papel do fenótipo na evolução.
A cultura humana implicaria um salto qualitativo, mas sem a necessidade
de criar qualquer "universal humano" com bases genéticas para
sua explicação, ao contrário, permitiria sua convergência com as
teorias das ciências sociais.
4. Conclusões
A primeira
surpresa quando se lêem os escritos da moderna corrente neodarwinista
em biologia é que, ao menos em sua forma mais explícita, a biologia se
reduz à genética. O conceito de Dawkins (1979) de que o corpo é tão-somente
o veículo de transmissão dos genes não é gratuito, mas exemplifica
uma história de avanços contundentes no campo da genética. Não
obstante, sentimo-nos mais próximos da corrente Fenogenética em
biologia, que sustenta que o fenótipo adapta (dentro de suas limitações
genéticas) o meio a suas necessidades e, com isso, afeta o destino da
evolução.
A biologia
evolutiva noedarwinista é incapaz de considerar o papel dos organismos
e espécies na transformação do meio com sentido evolutivo. Dessa
forma, sua visão é unilateral. Quando se estende esse raciocínio ao
comportamento do ser humano com relação a seu ambiente, a conseqüência
é perder de vista o elemento central, qual seja, a acumulação de
informação extracorporal. Conseqüentemente, não se pode compreender
o acesso diferencial, por classes e setores, à riqueza acumulada e a
seus efeitos sobre o entorno. A corrente Fenogenética, ao contrário,
ao reconhecer o papel do fenótipo na evolução, tem instrumentos analíticos
para compreender o comportamento humano diante de seu ambiente e seus
efeitos na evolução, com bases materiais.
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