Robert Nozick e a Natureza da Racionalidade
Por: Sara Bizarro,
Revista Intelectu nº 9
No livro, The Nature of Rationality Robert Nozick apresenta uma visão evolucionista da racionalidade fazendo o que ele apelida de uma "revolução copernicana de Kant ao contrário", na medida em que não é a razão que dá forma aos factos, mas sim o mundo exterior, através da selecção, que escolheu a razão como instrumento adequado para lidar com o mundo. Esta visão evolucionista explica a evidência imediata de certas crenças, como a crença na existência do mundo exterior ou das existência de outras mentes - indivíduos que não tinham estas crenças não sobreviveram, incapazes de interagir com o mundo e com o meio ambiente. Por outro lado, a concepção evolucionista da racionalidade explica também a natureza essencialmente maleável da razão, sendo que as suas conclusões e as suas próprias regras estão sempre abertas a escrutínio. Esta maleabilidade é necessária porque o mundo está em alteração constante, e os elementos assumidos num raciocínio podem ser válidos hoje e não amanhã, assim como determinadas regras podem funcionar em certas circunstâncias e não noutras. Por este motivo não é possível nem desejável criar uma teoria demasiado especializada da racionalidade, nem instituir regras demasiado fixas. A capacidade que a racionalidade tem de se reinventar em novas circunstancias, é uma das suas características essenciais.
Esta visão da racionalidade não implica, Nozick defende, uma concepção instrumentalista da razão em que os meios mais eficazes para atingir determinados fins são sempre os mais racionais. Um dos factores essenciais sublinhado por Nozick é o da utilidade simbólica das acções, aquilo que cada acção simboliza para nós. Este tipo de utilidade explica como determinadas acções podem ser escolhidas racionalmente mesmo que não sejam as mais eficazes para o fim que se pretende. O conceito de racionalidade de Nozick admite também vários graus de racionalidade, sendo que um indivíduo pode ser considerado racional, mesmo que algumas das suas escolhas sejam "menos" racionais. Isto também faz parte da eficácia da faculdade da racionalidade, em muitos casos seria menos eficaz para o indivíduo, na sua interacção com o ambiente, ter que confirmar ao pormenor a racionalidade de todas as suas escolhas, actividade que o deixaria de certo imobilizado. Ao incluir a utilidade simbólica no seu conceito de racionalidade Nozick consegue analisar problemas como o Problema de Newcomb e o Dilema do Prisioneiro de uma forma nova e esclarecedora, ultrapassando em certa medida as dificuldades que uma teoria puramente instrumentalista da decisão tem com estes problemas.
Neste texto vou fazer uma apresentação sucinta do livro de Nozick, sublinhando os pontos que me parecem mais interessantes. Como já referi, em The Nature of Rationality Nozick não apresenta uma estrita "teoria" da racionalidade, apenas propõe algumas sugestões criando uma visão original, uma nova maneira de ver a racionalidade humana. O livro em si é um exercício exímio do que é descrito como sendo a racionalidade, Nozick analisa e reanalisa razões a favor e contra a sua noção de racionalidade, a forma como outras sugestões dão conta ou não dão conta de determinadas situações, etc. Neste sentido o livro de Nozick é a racionalidade em acção, tal como ela é normalmente exercida pelos filósofos, no seu estado mais puro.
A racionalidade foi identificada pelos Gregos como a característica essencial da espécie humana, a característica que por excelência, separa os homens dos outros animais. Numa concepção evolucionista da racionalidade, esta ideia é invertida, no sentido em que a racionalidade é vista como um entre muitos outros traços humanos seleccionados, com uma determinada função limitada. Esta concepção vê a racionalidade como um entre outros produtos da evolução humana e não exclui outras formas eficazes de interagir com o meio ambiente. Uma das críticas feitas recentemente à racionalidade é que ela é baseada numa concepção masculina ocidental do homem, e como tal é ela mesma parcial. Esta crítica não é aceitável nestes termos, segundo Nozick, pois uma das funções essenciais da racionalidade é exactamente a de evitar preconceitos e excluir atitudes parciais. Se acusamos a racionalidade em geral de ser parcial, então ficamos num limbo, sem instrumento para avaliar a acusação em questão. Podemos criticar determinadas regras usadas pela racionalidade como sendo masculinas e ocidentais, mas temos de usar a racionalidade em geral para exercer esta crítica, usando a metáfora de Neurath, temos de reconstruir o barco sem o destruir, doutro modo morremos afogados.
Antes de iniciar os vários tópicos que constituem o livro, Nozick anuncia que vai tentar evitar uma análise demasiado técnica da racionalidade, tornando o tema acessível ao público em geral, e não apenas aos especialistas. A forma excessivamente técnica com que o tema da racionalidade tem sido tratado exclui o público em geral destes debates, o que só pode ser prejudicial para a saúde intelectual da nossa sociedade. Por esse motivo, Nozick reduz o mais possível o recurso detalhes técnicos, tentando manter a discussão no âmbito público. No entanto, Nozick apresenta várias sugestões técnicas sofisticadas na área da teoria da decisão, sugestões essas que não vou analisar neste texto, mas que o leitor interessado deverá procurar no livro de Nozick. Aqui vou apenas apontar alguns detalhes interessantes da concepção de racionalidade de Nozick, de modo a estimular a curiosidade do leitor.
1. Princípios
Os princípios são regras gerais de acção às quais chegamos através de razões e crenças; os princípios de cada pessoa podem ser reconhecidos olhando para as acções passadas dessa pessoa, e têm uma função social essencial, na medida em que nos permitem prever o comportamento dos outros de uma forma mais ou menos fiável. Os princípios que cada um defende fazem parte da sua identidade e dão uma determinada coerência à nossa vida, permitindo também a nós próprios fazermos previsões sobre o nosso comportamento futuro. A estas características e funções gerais dos princípios Nozick acrescenta uma a que dá um relevo especial: os princípios permitem-nos ultrapassar tentações quando tentamos atingir determinados objectivos.
A racionalidade é deparada com o problema das tentações quando existe um objectivo que se quer alcançar a longo prazo que é incompatível com outras coisas desejáveis mais imediatas. Alguns estudos mostram que nós preferimos muitas vezes recompensas mais imediatas, mesmo que sejam mais pequenas, a recompensas maiores no futuro. Nestes casos o tempo faz alterar a atribuição de utilidade que fazemos a uma acção menos desejada mas mais imediata quando comparada a uma acção menos imediata mas mais desejada. Para contrariar esta tendência utilizamos vários princípios que nos guiam na nossa tentativa de atingir o objectivo desejado, evitando as tentações que nos desviam desse objectivo. Uma vez adoptado o princípio evitamos quebrá-lo, porque mesmo uma só instância em que o princípio é quebrado pode simbolizar para nós o abandono total do princípio. Nalguns casos é possível sucumbir à tentação e manter o princípio de uma maneira geral, mas em muitos casos os princípios funcionam por nos ajudarem a excluir completamente a execução do cálculo de utilidade perante a recompensa imediata, são uma forma de "traçar uma linha" para lá da qual não são admitidos cálculos de utilidade.
A discussão acerca da forma como os princípios evitam tentações leva Nozick a introduzir o tópico do valor simbólico de determinadas acções. Algumas acções têm um valor simbólico associado a elas, de forma que o cálculo de utilidade não pode ser feito claramente. Acções do foro da Ética são deste tipo, assim como em geral acções que quebram princípios, sejam eles éticos ou não. Esta utilidade simbólica atribuída às acções pode ter tanto resultados positivos, por exemplo no caso em que estamos a tentar chegar a um objectivo de valor, como resultados negativos, quando "traçamos a linha" sem compreender as consequências e circunstâncias que nos levam a fazê-lo. Um caso que me ocorre é o do Patriotismo, um princípio que muitos cidadãos dos Estados Unidos hoje em dia levam tão a peito que recusam considerar sequer uma acção que possa ser de alguma forma apelidada de anti-patriótica. Assim, a nossa capacidade de seguir determinados princípios pode ser utilizada de uma forma positiva, mas também pode ser usada de uma forma negativa.
Um princípio deve assim ser avaliado a dois níveis: a um nível ele é bom na medida em que ajuda o indivíduo a atingir o objectivo pretendido; a outro nível ele é bom quando se mostra que o objectivo que se quer atingir tem também valor. Para analisar um princípio a este nível temos de ver até que ponto o objectivo a que ele se propõe é compatível com outros objectivos aos quais damos valor. A forma como um princípio foi utilizado no passado pode levar-nos a suspeitar dele e a pô-lo de lado no futuro. Um exemplo tradicional são os princípios de hegemonia propostos pela Alemanha Nazi, que não serão por nós considerados como bons, independentemente do fim que se quer atingir com eles. A história de como os princípios foram usados no passado tem assim influência no valor e utilidade que eles podem ter para nós no presente.
2. Problema de Newcomb e o Dilema do Prisioneiro
A teoria da decisão, com a sua concepção puramente instrumentalista da razão, depara-se com problemas como o Problema de Newcomb e o Dilema do Prisioneiro. Estes problemas podem ser analisados de uma forma diferente se for tido em conta o significado simbólico das acções e não apenas o cálculo dos resultados desejados e dos melhores meios para os atingir.
O problema de Newcomb foi apresentado pela primeira vez em 1969 por Nozick em "Newcomb's Problem and Two Principles of Choice". O problema consiste na seguinte situação: apresentam-se duas caixas a um indivíduo, a da direita tem $1,000 e a da esquerda tem $1,000,000, ou não tem nada. O indivíduo pode escolher as duas caixas, ou escolher só a caixa da esquerda. Depois existe um outro indivíduo que vai prever a escolha do primeiro e se fizer a previsão de que o primeiro vai escolher as duas caixas, então não põe nada na caixa da esquerda, se ele prever que o indivíduo vai escolher só a da esquerda põe lá um milhão de dólares. O que vai escolher entre as caixas não sabe qual a previsão que foi feita. A pergunta é então, que caixa deverá ser escolhida racionalmente?
Segundo Nozick há dois argumentos possíveis perante esta situação. Um diz que é melhor escolher a do milhão e arriscar, porque se escolhermos as duas de certeza que foi essa a escolha prevista pelo outro indivíduo, mas se escolhermos só a caixa do milhão de dólares é provável que o indivíduo tenha previsto essa escolha e nesse caso ganhamos um milhão. O outro argumento diz que é melhor escolher as duas caixas porque em qualquer caso a previsão já foi feita e se se previu que escolhíamos as duas então ganhamos ainda mil dólares, mas se se previu que escolhíamos só a do milhão ganhamos um milhão e mil dólares. Segundo Nozick de início as pessoas tendem a escolher uma destas linhas de raciocínio de uma forma mais ou menos rígida. No entanto, se depois as confrontarmos com uma alteração dos valores que se encontram nas caixas as suas opções alteram-se. Por exemplo, se em vez de mil dólares estiverem 900,000 as pessoas que usam o primeiro argumento e arriscariam a escolher exclusivamente a caixa de um milhão desistem do risco e escolhem as duas. Por outro lado, se em vez de mil dólares estiver um dólar, as pessoas que seguem o segundo argumento desistem dele e preferem arriscar num milhão. Esta mudança de posição não faz sentido do ponto de vista da teoria da decisão, pois ao seguir um argumento ele deveria ser válido independentemente da diferença de valores porque mais dinheiro esperado deveria ser sempre preferível a menos, independentemente de quanto mais ou menos dinheiro está em causa.
Este problema pode ser resolvido se considerarmos a utilidade simbólica das acções, e não apenas a sua eficácia instrumental. As escolhas em cada caso são feitas não apenas pela sua eficácia geral, mas por aquilo que simbolizam. Para algumas pessoas escolher só a caixa que poderá ter um milhão simboliza que elas gostam de correr riscos para ter grandes recompensas e essa acção reafirma a sua identidade como "aventureiras". Mas quando os valores são alterados escolher um milhão já não seria bem ser "aventureiro", talvez fosse ser "idiota". No caso oposto, a escolha das duas simboliza uma certa sensatez, mas se o valor da primeira caixa for reduzido a um dólar a sensatez passa a ser "picuinhice". Assim, a inclusão da utilidade simbólica das acções explica perfeitamente ambos os comportamentos. Note-se aqui que a utilidade simbólica não é redutível à utilidade simples, pois é difícil atribuir um valor preciso à utilidade simbólica de uma acção. Por esse motivo a utilidade simbólica não é apenas mais uma variante para inserir no cálculo na previsão de acções, é uma utilidade de outro tipo que tem de ser considerada separadamente.
O Dilema do Prisioneiro é outro problema com o qual a teoria da decisão normalmente se confronta. No caso do dilema do prisioneiro a situação é a seguinte: dois criminosos foram presos por terem cometido um crime juntos, cada um está numa cela separada sem qualquer contacto com o outro. A polícia sugere-lhes as seguintes opções: se um confessar e o outro não o primeiro pode sair em liberdade e o segundo tem 12 anos de prisão. Se ambos confessarem cada um tem 10 anos de prisão. Se nenhum confessar cada um cumpre 2 anos de prisão. O problema neste caso é que para cada um dos prisioneiros individualmente faz mais sentido confessar, pensam assim, se o outro confessou então mais vale eu confessar senão fico com 12 anos de prisão; por outro lado, se o outro não confessou mais vale eu confessar e vou em liberdade. Assim, do ponto de vista individual faz sempre mais sentido confessar. No entanto, se ambos pensarem assim e ambos confessarem acabam por ficar 10 anos na prisão enquanto que se ambos não confessassem ficavam com 2 anos cada. Assim, o que parece fazer mais sentido do ponto de vista individual acaba por prejudicar ambos os prisioneiros.
Este paradoxo representa uma certa incompatibilidade entre aquilo a que os filósofos chamam a escolha entre a "acção dominante" e a "acção de cooperação". As acções dominantes, embora possam parecer vantajosas para o indivíduo podem acabar por ter consequências piores do que as acções de cooperação. É nestes casos que se compreende o valor e utilidade da Ética, ao escolhermos acções de co-operação por princípios Éticos, estamos a por de lado o cálculo instrumental individual simples e a incorporar outras razões nas nossas decisões. No caso dos prisioneiros, a acção de cooperação (com o outro prisioneiro, não confessando) pode ser preferida porque o indivíduo tem como principio Ético não denunciar os seus amigos, e se ambos os indivíduos tiverem este princípio, no fim acabam por ambos beneficiar. Aqui de novo as razões Éticas não podem ser reduzidas a um valor instrumental porque não há forma de quantificar estes princípios, nem de saber até que ponto os outros os vão seguir (por exemplo, se o prisioneiro sabe que o outro não tem princípios éticos ele pode duvidar se valerá a pena seguir o seu neste caso, mas nesta decisão ele terá que pesar a perda do seu princípio ético contra dois anos de prisão, será um teste para a solidez deste seu princípio).
Nestes dois exemplos Nozick mostra como a inclusão da utilidade simbólica nas acções pode ajudar a compreender situações como as descritas no problema de Newcomb e no Dilema do Prisioneiro, e a explicar a "racionalidade" das várias escolhas possíveis em cada situação. Aqui a noção de racionalidade está a ser ampliada, o conceito de razão instrumental está a ser abandonado por Nozick em favor de uma concepção mais abrangente da razão.
3. Regras da Racionalidade
No capítulo sobre a crença racional Nozick apresenta as características gerais da racionalidade. A racionalidade instrumental das acções está ligada aos objectivos que se querem atingir com essas acções. Uma acção é racional quando permite atingir os objectivos que se pretendem, mas isso não é suficiente, é necessário também que os meios usados para atingir determinados fins possam ser usados de uma forma fiável (um objectivo pode ser atingido por acaso e isso não torna a acção racional). Uma das formas de fazer com que os meios sejam fiáveis é procurar a ligações causais reais entre os meios e os fins que se pretendem atingir, ou seja procurar a verdade. O interesse pela verdade pode ser considerado como tendo uma origem "instrumental" na medida em que a eficácia das crenças verdadeiras terá ajudado à adaptação do homem ao seu meio ambiente. Esse interesse mais tarde expandiu-se para a verdade em geral, mesmo quando não está a servir nenhum fim determinado. A racionalidade em geral vai além da procura da verdade e não depende de um só método ou sistema, como a evidência empírica por exemplo. As razões são constituídas numa rede interligadas umas às outras, de modo que uma crença tem de ser avaliada tendo em conta não só razões a favor e contra essa crença, mas também outras crenças de vários níveis. A filosofia é um exemplo excelente da racionalidade em acção, quando um filósofo propõe uma teoria analisa razões a favor e contra, o seu poder explicativo, como ela se encaixa noutras hipóteses comummente aceites, etc. Estes são os traços gerais que Nozick atribui à racionalidade.
De seguida Nozick propõe seis regras da racionalidade, que devem ser vistas como caracterizando formas fiáveis de exercer determinados processos cognitivos racionais. Estas regras não são para ser entendidas num sentido rígido, elas próprias estão sujeitas a revisão, são apenas traços gerais que caracterizam os nossos processos cognitivos racionais. Para além disso um sistema pode ser considerado racional sem seguir todas estas regras de uma forma perfeita. As regras propostas por Nozick são as seguintes:
1. Não se deve acreditar em h se existe uma asserção alternativa a h que tem mais credibilidade.
2. Só se tem que acreditar em h se a utilidade de acreditar em h não é menor do que a de não ter qualquer crença sobre h.
3. Deve-se acreditar em h só se o nível de credibilidade é suficientemente elevado tendo em conta o tipo de asserção a ser tomada em conta.
4. Deve acreditar-se em h se h não é excluído pelas três primeiras regras.
5. Deve acreditar-se em h se o valor de decisão de acreditar em h é pelo menos tão elevado como o de não se acreditar em h.
6. De forma a excluir a multiplicação de crenças falsas devemos acreditar nas premissas de uma crença independentemente da validade da sua conjunção. (pp. 85-93)
Destas seis regras as primeiras três são as básicas e as últimas duas são tentativas de clarificar certos pontos e problemas na teoria da decisão. Por outras palavras as primeiras regras dizem que devemos acreditar naquilo que tem mais credibilidade, mas que só temos que acreditar nisso se a credibilidade for suficientemente elevada para o facto em questão e se tivermos alguma razão ou motivo para acreditar nesse facto. Assim por exemplo, eu não tenho que acreditar na origem extraterrestre dos OVNIS porque mesmo que não existissem melhores explicações para os objectos estranhos que se diz aparecerem nos céus, se a crença em OVNIS extraterrestres não tem qualquer influência na minha vida e nas minhas decisões, então não sou forçada a ter ou não ter essa crença. Mas, se me pedem para escrever um artigo sobre a credibilidade da origem extraterrestre dos OVNIS vou ter que investigar e tomar uma posição. O nível de prova necessário para eu admitir extraterrestres a voar em naves com a forma de pires tem de ser muito mais elevando do que o testemunho de pessoas cuja sanidade mental desconheço. Assim, as regras 1 e 3 teriam de ser aplicadas na minha investigação acerca da existência de OVNIS (o exemplo é meu). A última regra, a regra número 6, serve para evitar que as crenças falsas se "espalhem" pela nossa rede de crenças, de forma que quando temos uma crença falsa e ela se espalha e se associa com outras tornando a sua falsidade evidente, podemos recusar-nos a assumir a nova conjunção de crenças e parar a avalanche de crenças falsas, deixando em suspenso as crenças duvidosas.
Estas regras não são rígidas, não determinam claramente o que é e o que não é uma crença racional. A credibilidade que atribuímos a uma crença, a forma como a comparamos com outra, a utilidade que ela tem para nós, todos estes elementos são maleáveis e podem incluir um grande leque de possibilidades no âmbito das crenças racionais. Isto é assim propositadamente, porque uma das funções principais da racionalidade é a de ajudar o indivíduo a adaptar-se a um ambiente que muda constantemente. O que hoje é considerado inacreditável pode amanhar ser credível, o que hoje não afecta as minhas decisões pode amanhã afectá-las. O mundo, as circunstâncias, alteram-se constantemente, e a racionalidade é um instrumento útil precisamente porque permite uma adaptação a essa inconstância do mundo.
Uma das características essenciais da racionalidade é a de ser um instrumento para identificar preconceitos e parcialidade nos argumentos. Uma pessoa racional não aceita razões sem considerar se elas são parciais ou imparciais, se elas são relevantes para a situação em questão, se elas poderão ser fabricadas, se a origem da informação nelas incorporada é fiável, etc. Um exemplo é a credibilidade dos media, a maior parte da nossa informação sobre o que se passa no mundo chega-nos através dos media, mas essa informação pode ser parcial e é necessário analisar a sua credibilidade antes de tomar uma posição sobre um determinado acontecimento noticiado. Uma forma de fazer isto é procurar fontes de informação alternativas e comparar as várias notícias de forma a ter uma visão mais imparcial dos acontecimentos.
Podem existir também vários níveis de parcialidade. No livro The Nature of Rationality, Nozick apresenta um exemplo de um estudo feito sobre a percentagem alta de mulheres não aceites na universidade de Berckley nos anos 70. Nessa altura na Universidade de Berkley eram aceites muitos mais candidatos do sexo masculino do que candidatos do sexo feminino, no entanto quando se analisou a situação departamento a departamento, concluiu-se que não havia descriminação porque cada departamento aceitava o mesmo número de homens e mulheres. Esta conclusão não é no entanto válida, de facto não havia descriminação a um primeiro nível, mas se olharmos para o motivo pelo qual muito menos mulheres eram aceites descobrimos que muitas mulheres se candidatavam para cursos de humanidades com menos vagas do que os cursos aos quais os homens se candidatavam. Aqui existe parcialidade a outro nível. Porque é que os cursos aos quais tantas mulheres se candidatam tinham tão poucas vagas? Os departamentos de humanidades eram pequenos porque não tinham financiamento para se expandir, muito embora existissem candidatos interessados em seguir esses cursos, porquê então essa falta de financiamento? Se ao investigar isso descobríssemos que as decisões, acerca de que departamentos recebem o quê, são feitas de uma forma discriminatória, então existiria uma parcialidade de segundo nível. Este tipo de parcialidade passa muitas vezes despercebida, mas uma vez identificada pode ser rectificada.
Isto leva-nos à questão posta frequentemente pelas feministas, a de saber se a racionalidade é ela mesma parcial. Ser racional, diz-se, é uma característica do homem ocidental, as mulheres são mais emocionais e os orientais mais espirituais na sua relação com o mundo. A isto Nozick responde que a racionalidade não exclui a emoção e a espiritualidade, até pode criar argumentos que defendem a utilização destes instrumentos na relação com o mundo que nos rodeia. Em muitos casos, ser emocional é mais adequado, por exemplo na relação com os amigos e a família, e por vezes a espiritualidade ajuda onde a racionalidade falha. Mas a racionalidade enquanto instrumento, tem de ser mantida, sob pena de se perder a própria capacidade de identificar imparcialidade e descriminação. Uma feminista pode defender que a razão do tipo instrumental por exemplo, é um meio masculino por excelência, mas usa a própria racionalidade nesta defesa. Em suma, a crítica das feministas só faz sentido se for dirigida a uma determinada forma de exercer a racionalidade, não à racionalidade em geral.
4. Razão e Evolução
A razão é apresentada por Nozick como uma capacidade humana seleccionada pela evolução. Isto permite explicar a racionalidade a dois níveis: por um lado as suas regras são suficientemente maleáveis de forma a poderem adaptar-se a um meio ambiente inconstante, por outro lado existem certos princípios tomados como evidentes que foram eles mesmos seleccionados, princípios como o da existência do mundo exterior e das outras mentes são exemplos por excelência. Estes princípios podem ser questionados pela razão, e analisados, tal como os filósofos têm feito (sem grande sucesso). No entanto, podemos confiar neles pelo menos na medida em que sabemos que foram seleccionados pela sua eficácia. Esta concepção evolucionista da racionalidade é aquilo que Nozick chama a "revolução copernicana" de Kant ao contrário. Isto significa que não é a razão que dá forma aos factos como em Kant, mas são os factos, o mundo, que formaram a racionalidade tal como nós a exercemos hoje. Esta concepção não pretende fundar a razão, justificá-la, apenas pretende explicar a origem do instrumento a que chamamos racionalidade.
Segundo a teoria da evolução, os traços seleccionados são aqueles que permitem a reprodução com sucesso, reprodução essa que é facilitada por determinadas características. No entanto, uma vez seleccionada, a racionalidade pode ser utilizada para outros fins. Um exemplo semelhante é o da curiosidade, a curiosidade pode ter sido seleccionada por ajudar os homens pré-históricos na sua procura pela caça adequada para alimentar a família, mas hoje é utilizada de outra forma por cientistas, por exemplo na investigação acerca das origens do universo. No mesmo sentido a racionalidade ajudou os homens a descobrir causas de acontecimentos que os afectavam e a precaver-se ou alterar esses acontecimentos, mas hoje é utilizada por filósofos nas suas investigações sobre a ética, metafísica, etc. Dizer que a racionalidade pode ser explicada através da teoria da evolução não implica assim denegrir ou limitar o seu exercício, apenas permite dar conta das suas origens e compreender melhor algumas das suas características.
5. Limites da Razão Instrumental
Defender uma razão instrumental é defender que os meios mais eficazes para atingir os fins que se pretendem são sempre os mais racionais. A teoria da decisão utiliza a razão instrumental e esta é útil na medida em que permite quantificar razões e fazer cálculos na previsão das escolhas dos indivíduos. Nozick, no entanto, defende de uma forma convincente que a racionalidade inclui uma utilidade simbólica que não pode ser reduzida à utilidade instrumental. Esta utilidade simbólica, o valor simbólico das nossas escolhas, explica as várias possibilidades em situações como o problema de Newcomb e o Dilema do Prisioneiro, entre muitas outras situações que todos enfrentamos diariamente. Para além da utilidade simbólica, Nozick acrescenta também a ideia de que as nossas escolhas são racionais dependendo daquilo que esperamos que aconteça, por exemplo, o melhor meio para atingir um determinado fim pode ser desconhecido para mim, e nesse caso a acção racional é aquela que usa os conhecimentos que tenho disponíveis, e não o meio ideal, o qual desconheço. Este tipo de casos mostra também a necessidade de outra faculdade, a faculdade da imaginação. Sem a imaginação o nosso conhecimento evoluiria muito mais devagar, ela é essencial como apoio à eficácia da racionalidade. Todas estas características estão para lá de uma visão puramente instrumental da razão.
Outra função essencial da racionalidade é a sua vertente social. A racionalidade permite a convivência social, a escolha de regras suportadas por razões que a maioria está disposta a aceitar. Neste sentido, a racionalidade funciona a um nível público, o que justifica a preocupação de Nozick de apresentar uma discussão da racionalidade acessível ao público em geral, eliminando discussões técnicas desnecessárias. Foi seguindo essa ideia que tentei apresentar o livro de Nozick de uma forma clara e acessível - o que aqui apresentei foi o essencial da proposta de Nozick, espero que este "cheirinho" seja suficiente para estimular a leitura integral do The Nature of Rationality para todos os que se interessam pelo tema da racionalidade.
Bibliografia:
Nozick, Robert (1993) The Nature of Rationality, Princeton University Press, Princeton New Jersey.
Nozick, Robert (1969) "Newcomb's Problem and Two Principles of Choice", in Essays in Honor of C. G. Hempel, ed. N. Rescher et al., Dordrecht, Reidl, pp. 114-146
Campbell, Richmond & Sowden, Lanning eds. (1985) Paradoxes of Rationality and Cooperation: Prisoner's Dilemma and Newcomb's Problem, Vancouver, University of British Columbia Press.
Lacey, Alan (2001) Robert Nozick, Princeton University Press, Princeton New Jersey, Cap. 6 "Rationality", pp. 133-159
Schmidtz, David ed. (2002) Robert Nozick, Cambridge University Press, Cambridge