A evolução segundo Eva
Por: Vange Leonel Folha,
fev/2002
Na sexta-feira, dia 8 de março, foi comemorado o Dia
Internacional da Mulher e, por isso, tomo a liberdade de ocupar esta
página inteira. Muitos acreditam que não há mais razão para a
existência desta data especial e que a luta feminista já garantiu às
mulheres os mesmos direitos reservados aos homens. Será que é verdade?
O sexismo costuma se apresentar sob vários disfarces. Por exemplo:
quando descobriram que o cérebro da mulher era menor que o do homem,
alguns estudiosos usaram a descoberta para atestar a inferioridade
intelectual das mulheres. Mas alguém perguntou: se tamanho é
documento, então a baleia deveria ser mais inteligente que o ser
humano! Ora, responderam esses estudiosos, é preciso antes fazer uma
relação entre o tamanho do cérebro e a massa corporal: relativamente
ao seu corpo, o cérebro do homem é maior que o cérebro da baleia.
Daí, alguém inventou de fazer o mesmo cálculo para as mulheres (que
são, em média, menores que seus parceiros). Resultado: descobriu-se
que, em relação à sua massa corporal, o cérebro da mulher é maior
que o do homem! Aqueles primeiros estudiosos, então, mudaram seu
enfoque e concluíram que, já que o homem "é" mais
inteligente que a mulher, então tamanho não tem, mesmo, nada a ver com
inteligência!
Episódios como esse -e o ambiente que os geraram- sempre fizeram com
que as feministas fugissem da biologia como o diabo da cruz. Mas as
coisas estão mudando. A primatologista Sarah Blaffer-Hrdy, por exemplo,
há 20 anos adiciona um certo viés feminista a uma área fascinante da
ciência: a Teoria da Evolução.
Tendo que sair a campo ao mesmo tempo em que cuidava de sua filha, ela
percebeu aspectos no comportamento das macacas que nunca haviam chamado
a atenção dos seus colegas homens.
Em 1981, Hrdy publicou um livro de título sugestivo ("A Mulher que
Nunca Evoluiu"), em que derrubou a velha noção de que as fêmeas
são "naturalmente" mais recatadas que os machos. Entre os
macacos langur que observava, notou que as fêmeas eram bastante
promíscuas, copulando não só com os machos a quem eram ligadas, mas
também com estranhos de outros bandos (essa observação foi confirmada
recentemente em outros estudos, através de exames de DNA).
Mais surpreendente é sua interpretação: Hrdy sustenta
que essa "promiscuidade" é uma estratégia para a
sobrevivência de seus filhotes. Isso porque, famosos por cometerem
infanticídio, os machos dessa espécie ficam mais dóceis com os filhos
daquelas com quem copulam, mesmo que não sejam seus. As mais
namoradeiras, portanto, levam vantagem. Segundo Hrdy, "selecionar o
melhor macho entre os pretendentes disponíveis,como Darwin imaginou que
a escolha feminina funcionasse, não é nem de longe a história
toda".
Outras vezes, a cientista chega a flertar com uma possível explicação
evolutiva para a homossexualidade nas macacas bonobo. Nesta espécie,
caracterizada por uma alta atividade bissexual, as macacas fazem sexo
entre si, "frente a frente e roçando seus clitóris". Isso,
segundo Hrdy, ajudaria a "cimentar as alianças entre elas e a
trocar comida por favores sexuais". Essas alianças aumentariam a
possibilidade de suas crias chegarem à idade de se reproduzir. As
atividades homossexuais, então, poderiam incrementar as chances de uma
macaca passar seus genes adiante. Em seu recente livro "Mãe
Natureza", Hrdy toca em outro ponto nevrálgico da sexualidade
feminina: o controle da reprodução. Descrevendo como as fêmeas, em
várias espécies, exercem um controle ativo sobre seu
"timing" reprodutivo, ela afirma que até o aborto
(espontâneo ou não) poderia ser uma estratégia evolutiva, por mais
paradoxal que possa parecer.
Não vou incorrer na falácia de achar que o que é, é o que deve ser.
Mas é inegável que os estudos antropológicos de Blaffer-Hrdy podem
contribuir para algumas questões caras ao feminismo. Desmistificado o
"recato natural" da fêmea, recordo que, até o ano passado,
nosso Código Civil punia o adultério feminino, mas não o masculino.
Por outro lado, a afirmação de que as fêmeas controlam o seu próprio
"timing" reprodutivo
promete enriquecer, para não dizer incendiar, as discussões sobre a
legalização do aborto.
Dada a subjetividade inevitável que acompanha o fazer
científico, as mulheres estão, finalmente, acrescentando seu tempero
à mistura . Mas quando sentiremos o efeito dessa nova ciência, feita
também por mulheres? Não sei: essas coisas levam tempo. O mundo não
foi feito em um dia nem em sete, como quer a Bíblia. E, cá para nós,
qualquer mãe sabe que são precisos nove longos meses para gestar um
filho e outros tantos anos para formá-lo e joga-lo no mundo. É preciso
ter muita paciência e isso nós, mulheres, depois de 8.000 anos sob
jugo patriarcal, temos de sobra!
Saiba mais
"The Woman That Never Evolved", de Sarah Blaffer Hrdy
Harvard University Books, London, 1999; "Mother Nature", de
Sarah Blaffer Hrdy Balantine Books, New York, 2000.