Padrões da história humana

REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de S.Paulo


À primeira vista, o caminho que conduziu o biogeógrafo americano Jared Diamond do estudo da evolução dos pássaros à busca de grandes padrões da história humana parece tortuoso. Na realidade, conta ele, foi uma volta às origens: "Cresci durante a Segunda Guerra Mundial, o que significava mapas na minha parede, nos quais meu pai punha alfinetes mostrando os eventos e linhas de combate no Pacífico --história e geografia por todo lado".

Desde o começo dos anos 90, o pesquisador da Universidade da Califórnia em Los Angeles assumiu uma tarefa ambiciosa: transformar a história humana numa ciência "de verdade" com a ajuda da biologia evolutiva, da linguística e da arqueologia. O esforço rendeu o badalado e polêmico "Armas, Germes e Aço - Os Destinos das Sociedades Humanas" (Editora Record), um inventário dos fatores que tornariam uma civilização capaz de triunfar. Grosso modo, diz Diamond, seria a sorte de estar nos continentes maiores, com recursos mais diversificados e menor variação climática --e não uma suposta superioridade racial ou cultural.

Agora, o biogeógrafo se volta para as raízes do declínio: seu novo livro tratará das grandes civilizações que desapareceram por causa de desastres ambientais causados por elas mesmas -- um risco que se aproxima cada vez mais do mundo moderno, caso algo não seja feito, diz o autor. De sua casa em Los Angeles, Diamond, 66, falou por telefone sobre o peso relativo da globalização diante dessas "condições iniciais" da história e sobre o potencial da arqueologia para ajudar a evitar desastres.

O sr. acha que está havendo uma mudança nos fatores que determinam o sucesso de uma sociedade, se os compararmos com os que se tornaram dominantes desde o fim da Era do Gelo, de acordo com seu livro, como a agricultura e a domesticação de animais?

Certamente há algumas mudanças em relação ao que determinava o sucesso há 10 mil anos. Nessa época, o sucesso dependia de ter plantas e animais selvagens em seu país que pudessem ser domesticados. E foi por isso que o Iraque se tornou o líder mundial em agricultura, escrita e tecnologia --porque o Iraque era o local onde viviam os ancestrais selvagens do trigo, das vacas, das ovelhas e das cabras. Bem, isso foi 10 mil anos atrás. Ora, é óbvio que hoje o Iraque não é um líder mundial em nada, certamente não em agricultura. Portanto, uma das coisas que mudaram é que ele e muitos outros países desceram muito a ladeira por causa de danos ambientais. O Iraque é uma área frágil e houve muitos danos ao ambiente por causa da derrubada de florestas e também por causa da salinização. Essa é uma das coisas que é nova. A outra, claro, é a globalização, no sentido de que coisas podem viajar pelo mundo de forma muito rápida. Por exemplo, depois de o transistor ter sido inventado nos Estados Unidos em 1948, ele foi absorvido a 8.000 milhas daqui [cerca de 13 mil km] pelo Japão, que se tornou o líder mundial em eletrônica. Ou, só para lhe dar um outro exemplo, os aviões, que foram inventados nos Estados Unidos. Quando faço uma viagem curta de avião nos Estados Unidos, o avião no qual vôo quase certamente foi fabricado no Brasil. Hoje o Brasil é um importante fabricante de aviões, não porque os tenha inventado, mas por causa da globalização.

Mas, mesmo assim, como o sr. diz em "Armas, Germes e Aço", o Japão só foi capaz de usar o transistor --enquanto o Paraguai ou o Zaire não foram- porque o país tinha uma boa tradição de economia desenvolvida, educação e governo estável. Então, mesmo levando a globalização em conta, a mão da história ainda pesa muito sobre algumas nações, certo?

Isso é verdade. Em resposta às suas perguntas, algumas coisas são diferentes, como a globalização e os danos ambientais, e algumas coisas são as mesmas, como a mão pesada da história. É verdade que países como Japão, Taiwan e Coréia do Sul foram pobres até 60 anos atrás, no caso da Coréia do Sul e de Taiwan, e agora eles são líderes mundiais. E eles foram capazes de adquirir coisas dos países industriais porque, por vários milhares de anos, eles tiveram reis, escrita, burocracias e mercados, enquanto isso não é verdade para o Paraguai ou para o Zaire.

A linha de argumentação de "Armas, Germes e Aço" (como o problema dos eixos continentais e o do número de espécies domesticáveis) parece funcionar bem para essas grandes áreas continentais. É possível aplicar os mesmos fatores para áreas menores, como o Reino Unido e Portugal e as sociedades que eles fundaram no Brasil e nos EUA? Ou é nessa escala que os fatores culturais e as escolhas dos indivíduos se tornam importantes?

Eu diria sim e não para isso. É uma pergunta extremamente interessante: por que, digamos, as histórias da América do Norte e da América do Sul se desenrolaram de maneira diferente. E é possível pensar tanto em razões geográficas quanto em razões culturais. As razões culturais óbvias são que a América do Sul foi colonizada por pessoas de Portugal e da Espanha, não por pessoas da Inglaterra. A outra parte da razão é que, geograficamente, a América do Norte é diferente da América do Sul. A América do Sul inclui enormes áreas tropicais, e a América do Norte não. A América do Norte é um continente maior, particularmente na zona temperada. Essas são algumas das razões óbvias. E aí a coisa fica ainda mais interessante: pode-se perguntar não apenas sobre a diferença entre países, mas sobre as diferenças dentro de países. Por que suas maiores cidades e seus Estados mais ricos estão no sul e não no norte? E exatamente a mesma coisa é verdadeira para os Estados Unidos, onde por muito tempo as cidades mais ricas e a região mais rica estiveram no norte: Nova York, Boston, Washington. Parte da explicação é o clima: as áreas da zona temperada são mais produtivas para a agricultura e têm menos problemas com doenças. Isso sugere que a geografia é importante mesmo numa escala menor.

Qual é o peso da história evolutiva sobre o comportamento humano, na sua opinião?

Há alguns sociobiólogos que diriam: "Os homens das cavernas eram agressivos há 40 mil anos, as pessoas ainda são agressivas hoje, então os humanos ainda têm seus instintos agressivos". Isso é provavelmente verdade, mas não me parece muito útil. Mesmo que nossos instintos agressivos tenham uma longa história, ainda temos de lidar com eles. Ou, para dar outro exemplo, há alguns sociobiólogos extremistas que diriam: "Animais do sexo masculino tentam passar adiante seus genes e farão muitas coisas para conseguir isso, algumas das quais não são bonitas, como colocar à força seus espermatozóides em fêmeas que não os querem --isso se chama estupro". Ou seja, o estupro tem uma longa história evolutiva. É útil dizer hoje, quando um homem estupra uma mulher, que ele só está seguindo o que seus genes foram programados para fazer 1 milhão de anos atrás? Bem, talvez sim, talvez não, mas ainda temos leis contra o estupro. A coisa mais importante da história humana nos últimos 10 mil anos consistiu em aprovar leis para nos impedir de fazer as coisas nojentas que costumávamos fazer.

O contato com seus amigos da Nova Guiné e com outras sociedades de caçadores-coletores parece ter sido muito importante para o desenvolvimento de suas teorias. O sr. acha que algo fundamental pode se perder se essas sociedades desaparecerem?

Bem, essas sociedades de caçadores-coletores estão desaparecendo. Acho que daqui a dez anos não restará nenhuma. O que perdemos com isso? Bem, algumas coisas -como as línguas. O mundo tem 6.000 línguas, e esses idiomas têm uma história muito longa, sua própria poesia e música. No ritmo atual, há pouca chance de sobrevivência intacta. Entendo que há políticas governamentais para impedir que esses grupos sejam contactados. Os missionários e comerciantes são proibidos de entrar lá. O risco é que mesmo esses últimos povos sabem o que acontece no mundo lá fora: eles vêem os aviões lá em cima, já viram camisas e barcos. Mesmo que o mundo não os force a adotar essas coisas, muitas vezes eles as querem e vão fazer a troca.

Certa vez, o sr. disse que ninguém deveria considerar que a arqueologia é um desperdício de dinheiro, porque ela é a melhor forma de aprender sobre desastres e de tentar evitá- los no futuro. Os humanos são capazes de aprender essa lição como espécie?

Espero que sim. Há 50 anos, pouca gente sabia do assunto, mas hoje, se você ligar a TV, é bem provável que veja algum programa sobre povos do passado. E é inevitável se perguntar por que essas sociedades tiveram sucesso ou não. Por exemplo, no Brasil de hoje, sei que o Amazonas não é o Estado mais rico nem o mais populoso. Mas, se você olhar para os resultados da arqueologia, descobrirá que, ao longo do rio Amazonas, há alguns milhares de anos havia populações realmente densas, que viviam da agricultura e que estavam entre as primeiras do Novo Mundo a fabricar cerâmica. Elas existiram por milhares de anos. Poderia ser útil para os brasileiros descobrir como foi que povos conseguiram ser tão bem-sucedidos e ricos à beira do Amazonas por tanto tempo.

Isso nos leva à pergunta seguinte: o que o sr. pode dizer sobre seu novo livro?

Meu novo livro, que espero publicar no começo de 2005, é sobre como as sociedades entram em colapso -como os maias no Yucatán, os antigos iraquianos e o povo da ilha de Páscoa, no oceano Pacífico. São sociedades que entraram em colapso como resultado de seu fracasso em resolver problemas ambientais similares aos que enfrentamos hoje. Por exemplo, na Amazônia brasileira de hoje, vocês têm grandes problemas com o desmatamento. Isso causa mudanças climáticas, e os maias e o povo da ilha de Páscoa desapareceram por causa desses problemas.

Um dos trechos mais tocantes de seu livro "O Terceiro Chimpanzé" é a descrição das extinções em massa causadas pelo homem no fim da Era do Gelo. O sr. acha que a humanidade está perto de repetir isso? E o que se perde com essa diminuição da biodiversidade?

No ritmo atual, metade das espécies animais e vegetais existentes estarão extintas ou ameaçadas quando meus netos forem velhos, daqui a uns 50 ou 70 anos. Pode-se dizer: Quem se importa? Que diferença isso faz? Bem, plantas e animais nos dão o que se chama de serviços ecológicos. Por exemplo, insetos e muitos pássaros polinizam nossas árvores e nossas colheitas. Quando você plantar trigo ou milho, terá de sair polinizando cada pé de trigo sozinho. Isso seria uma quantidade imensa de trabalho, que faria o trigo custar US$ 200 o quilo, enquanto insetos e pássaros fazem isso de graça.

Em "O Terceiro Chimpanzé", o sr. chamou de "ato de insensatez suicida" o envio de sinais de rádio da Terra para o espaço, para que alguma possível civilização alienígena os captasse. O sr. acha que todas as espécies inteligentes tentariam primeiro o caminho do conflito?

Talvez não todas, mas eu chutaria que 99 em cada 100 delas o fariam. O melhor exemplo é o que aconteceu na Terra. Temos uma espécie extremamente inteligente, Homo sapiens, e veja só o que ela fez a outros membros de sua própria espécie, quando os ingleses chegaram à América do Norte e quando os portugueses chegaram ao Brasil. Por acaso eles procuraram os nativos americanos, sentaram com eles e tentaram ser bonzinhos? Claro que não. Eles os exterminaram, infectaram e tomaram suas terras. Então eu diria que, se houver alguma espécie inteligente num planeta girando em torno da estrela Alfa Centauri, e se eles vierem para a Terra, é melhor nós corrermos para nossos abrigos antibombas, ou do contrário esses seres do espaço vão fazer conosco o que ainda estamos fazendo com macacos, chimpanzés e outros seres humanos.

O que falta para transformar a história humana numa ciência "de verdade", como o sr. propôs?

Já há muito trabalho sendo feito para transformar a história em algo que seja, em média, uma ciência preditiva. Digo "em média" porque as pessoas dizem, de forma bastante correta, que ninguém jamais será capaz de prever a história. E isso é perfeitamente verdadeiro, porque o que uma pessoa faz pode fazer a diferença e é difícil de prever. Um exemplo extremo: em 11 de setembro de 2001, 19 pessoas enfiaram aviões em três de nossos maiores prédios. Isso produziu grandes mudanças nos EUA, mudanças que entre outras coisas foram muito ruins para a economia. O que eu acho possível de prever em geral é que países do Terceiro Mundo podem ver o que acontece no Primeiro mundo, querem isso para eles e tentarão consegui-lo emigrando para os países do Primeiro Mundo, ou tentando construir honestamente suas economias, ou tentando construí-las desonestamente, ou se voltando para o terrorismo. Na média, pode-se predizer esse tipo de grande padrão.

O sr. se considera fundamentalmente otimista ou pessimista sobre o futuro do planeta e da espécie humana?

Eu me descreveria como cautelosamente otimista. Não acho que as coisas sejam sem esperança, porque se eu achasse isso iria pular da janela do segundo andar da minha casa agora mesmo e jamais teria tido filhos. Por outro lado, acho que temos grandes problemas e que temos de enfrentá-los. Se não os resolvermos, vamos estar numa grande encrenca. Além disso, os riscos que enfrentamos hoje, os grandes riscos, são todos riscos que nós mesmos criamos e, portanto, podemos contorná- los. Então, por exemplo, no Brasil, está completamente dentro das capacidades de vocês parar com o desmatamento da Amazônia. Não são alienígenas de Marte que estão destruindo a floresta --a escolha é de vocês.

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