Caçadores Caçados
Ken Grimes
Da "New Scientist"
Tradução de Clara Allain

Psicólogos evolucionistas sugerem que instintos e fobias de seres humanos modernos podem ter sido moldados há milhões de anos, quando os ancestrais da humanidade teriam sido presas de grandes carnívoros nas savanas do atual continente africano


Um dinossauro voraz persegue sua presa e a despedaça. Grandes felinos espreitam os rebanhos do Serengeti e depois avançam sobre uma gazela apavorada. Se alguma vez você já se indagou por que sentimos tanto fascínio por cenas horripilantes como essas, saiba que pode ser porque temos algo em comum com essas vítimas infelizes.

Podemos esquecer a idéia de que nossos antepassados hominídeos já emergiram da selva com armas nas mãos e dispondo de uma larga gama de táticas de caça. Um número crescente de cientistas acha que está na hora de rever o velho conceito segundo o qual os humanos primitivos seriam, na verdade, macacos de instinto assassino transformados em caçadores.

O psicólogo Richard Coss, da Universidade da Califórnia em Davis, argumenta que, longe de a humanidade ter passado tranquilamente para o estágio de caçadora, sua evolução foi moldada de maneira dramática por uma prolongada luta para levar a melhor sobre predadores que a vitimavam. Até o momento em que nossos ancestrais conseguiram derrotar os predadores, os humanos foram uma espécie caçada, e esse longo período da história passado na condição de potencial refeição moldou a maneira como somos hoje.

Se essa teoria estiver correta, a fase de nossa evolução em que fomos presas pode ajudar a explicar não apenas nossos temores e fobias, mas também algumas das características-chave que nos fazem humanos, incluindo nossa capacidade de intuir os pensamentos uns dos outros, nossos valores sociais de lealdade e amizade e, possivelmente, até mesmo nossa linguagem e tecnologia.

As versões populares da história dos hominídeos destacam a importância de nossa "queda" pré-histórica, ocorrida há cerca de 5 milhões de anos, quando mudanças climáticas de longo prazo levaram ao encolhimento das florestas tropicais africanas, obrigando nossos ancestrais a descer de seu éden no alto das árvores.

O que muitos relatos não esclarecem é a natureza infernal desse novo ambiente. Na floresta escondiam-se tigres dente-de-sabre, leopardos e ursos carnívoros gigantes. Ainda mais perigosa era a sempre crescente savana, percorrida por predadores que caçavam em bandos: hienas gigantes, cães com dentes como lâminas e do tamanho de lobos, leões e mais dentes-de-sabre.

Parece haver pouca dúvida de que esses predadores -que já tinham prática de caçar animais mais velozes, maiores e mais bem armados do que os hominídeos- teriam achado os humanos primitivos, que eram lentos, abundantes e fracos, uma refeição tentadora.

Os primatas atuais enfrentam os mesmos perigos. Os pesquisadores que estudam os padrões modernos de atividade predatória constantemente encontram restos de primatas nas fezes de carnívoros de grande porte. Ademais, Kim Hill e Anna Magdalena Hurtado, na Universidade do Novo México, em Albuquerque, descobriram que 6% das mortes de adultos jovens da tribo paraguaia dos aché eram causadas por onças.

Coss afirma que isso teria sido ainda pior com nossos ancestrais pré-históricos. "Uma vez que leopardos e leões aprendem com que facilidade a carne pode ser arrancada dos ossos humanos, eles se tornam matadores vorazes, com preferência quase exclusiva por humanos", diz ele.

O pesquisador recorre ao registro fóssil para respaldar seu ponto de vista. Em tocas de carnívoros datadas de 1 a 3 milhões de anos atrás em cavernas sul-africanas foram encontrados os fósseis de 324 babuínos e 140 australopitecos -prováveis antepassados dos humanos-, muitos deles ostentando marcas típicas de danos provocados pelas presas e as garras de felinos de grande porte e hienas predadoras.

O fato de fazer parte do cardápio de outro animal não poderia deixar de ter implicações evolutivas para o homem. Entre caçadores e caçados desenvolve-se uma "corrida armamentista" que pode levar a transformações no animal que é a presa, tais como aumento de tamanho, aumento da velocidade ao correr e habilidades sensórias aumentadas. Também pode provocar diversas adaptações comportamentais, como o agrupamento em rebanhos, o aumento da vigilância e o ataque aos predadores em grupos.

Marcas da evolução

Coss está convencido de que os humanos ainda ostentam as marcas dessa fase. Instintos herdados podem ficar gravados no cérebro por muito tempo, diz ele, mesmo depois de terem se tornado obsoletos. Isso talvez explique alguns resquícios comportamentais, tais como o reflexo de Moro -uma reação manifestada por bebês recém-nascidos quando se assustam, na qual eles tentam agarrar com os pés e as mãos.
É algo semelhante ao modo como um bebê macaco, quando assustado, se agarra à barriga da mãe.

À procura de mais evidências, Coss criou um penhasco rochoso virtual numa savana africana pré-histórica. Havia três esconderijos possíveis: uma pedra grande, uma fenda na rocha e uma árvore espinhosa. Ele levou um grupo de crianças em idade pré-escolar num "passeio" pelo local. Em seguida, acrescentou um leão virtual à cena e lhes pediu que escolhessem o lugar mais seguro.

A maioria das crianças optou pela fenda ou a árvore espinhosa. Apenas uma em cada seis crianças, mais ou menos, optava pelo penhasco -que seria a pior escolha, já que leões gostam de escalar penhascos desse tipo para tomar sol. Como se explica que a maioria das crianças urbanas de quatro anos de idade soubesse evitar esse perigo? Para Coss, a resposta está na pressão predatória intensa sofrida por nossos ancestrais.

Outros pesquisadores argumentam que alguns de nossos temores irracionais são resquícios evolutivos dos perigos presentes em nosso ambiente ancestral. "A fobia de aranhas, por exemplo, é muito mais comum do que a fobia de carros", diz o antropólogo Clark Barrett, da Universidade da Califórnia em Los Angeles.

"No entanto, a probabilidade de sermos mortos por um carro é muito maior, nos ambientes urbanos modernos, do que a de sermos mortos por uma aranha venenosa." Barrett acredita que, se predadores foram uma influência importante sobre nossa evolução, então deveríamos estar bem sintonizados para compreendê-los. E é exatamente isso o que ele está constatando.

Por exemplo, crianças de diferentes culturas -incluindo culturas urbanas- parecem possuir um apetite insaciável por informações sobre predadores, mesmo os extintos. Barrett chama isso de "síndrome de Jurassic Park".

Para entender isso, Barrett criou novas versões de um teste padronizado utilizado por psicólogos para avaliar a capacidade de uma criança de compreender o que outra pessoa está pensando. O teste Sally-Anne normalmente é representado com duas bonecas. Sally esconde uma bala na presença de Anne, e então, quando esta vira as costas, a coloca num lugar diferente. Uma criança dotada da sofisticação mental necessária para enxergar o mundo da perspectiva de outra pessoa entende que Anne vai procurar a bala no esconderijo original. Barrett queria ver o que aconteceria se ele realizasse a experiência com predador e presa de brinquedo, de modo que substituiu as bonecas por uma zebra e um leão de brinquedo. Ele aplicou os dois testes em dois grupos de crianças -um da zona rural da Califórnia e outro de uma tribo peruana chamada shiwiar- e descobriu que o entendimento que elas demonstraram da perspectiva do leão foi pelo menos tão bom quanto o que tiveram do pensamento de Anne. E mais: as crianças que passavam em apenas um dos testes acertavam o teste da zebra e do leão, mas erravam o outro.

Celia Heyes, psicóloga do University College de Londres, observa que, como as crianças modernas raramente encontram predadores pela frente, "esse conhecimento só pode vir de um lugar: a seleção natural".

Os humanos e alguns poucos outros animais altamente inteligentes possuem o que psicólogos chamam de uma "teoria da mente" -ou seja, a capacidade de colocar-se na posição de outro ser e atribuir a ele sentimentos e motivações. Isso ajuda os indivíduos a conviver em grupos sociais e é conhecido como inteligência maquiavélica, porque frequentemente é usado para passar à frente de outros.

Devido a essas vantagens, acredita-se que a leitura de mentes tenha evoluído como adaptação a um estilo de vida social. Mas, diz Barrett, "é pelo menos plausível que a "leitura da mente" de predadores tenha surgido antes entre nós".

Mas serão necessárias mais do que suposições para derrubar as teorias antigas. "Parece mais plausível que as pressões evolutivas para nosso tipo singular de teoria da mente sejam resultantes de interações cooperativas com membros de nossa espécie, não do medo de predadores", diz Michael Tomasello, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, Alemanha.

Não há dúvida, porém, de que a ameaça de sermos comidos afetou nossa vida social de maneira direta. "Ela constitui a força motriz que levou os primatas a viver em grupos", observa a primatologista Louise Barrett, da Universidade de Liverpool. Ao coletar em grupos, babuínos e chimpanzés aumentam sua capacidade de detectar predadores e escapar no meio da confusão.

Existe até mesmo a possibilidade de que duas das marcas registradas dos humanos -a linguagem e a produção de ferramentas- possam ter se desenvolvido como defesa contra predadores. Várias espécies 1africanas de macaco produzem chamados de alarme que identificam diferentes tipos de predadores, tais como águias, leopardos e cobras.

Embora as vocalizações sejam, em grande medida, inatas, há quem as veja como protolinguagem. Também existem registros de chimpanzés usando paus e pedras como armas em contra-ataques contra leopardos."Desconfio que os gritos de aviso e o comportamento de bando -em especial os gritos e atirar pedras- tenham sido anteriores ao andar ereto entre os humanos ancestrais", diz Coss.

Comprovação impossível

Muitos antropólogos, contudo, não aceitam a idéia de que a análise do ambiente em que os hominídeos antigos se desenvolveram possa revelar algo sobre nossas mentes hoje. "Sim, é verdade que nossos antepassadoseram vítimas de predadores, mas duvido que isso tenha alguma relevância substancial", diz Ian Tattersall, curador do Museu Americano de História Natural, em Nova York. "Embora esses ingredientes garantam uma história dramática, eles são impossíveis de ser testados. Como poderíamos provar que estão errados?"

Coss, Clark Barrett e Treves sabem que terão de fazer mais do que já fizeram para fortalecer sua idéia, mas também acreditam que ela possui grande potencial para aprofundar nossa compreensão da evolução humana. "Temos a tendência a pensar nos humanos pré-históricos como caçadores", diz Louise Barrett, "mas eles provavelmente passavam muito tempo escondidos em tocas."

 

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