O Direito sob a Ótica da Biologia Evolucionária
Por: Atahualpa Fernandez

A proposta deste trabalho é oferecer, sob uma perspectiva evolucionista, uma (re)interpretação crítica sobre a gênese e a evolução, o objeto e o propósito, assim como os métodos criteriais úteis para a interpretação, justificação e aplicação do direito prático moderno. Tudo com vistas a pôr o pensamento filosófico e a teoria formal contemporânea da racionalidade ao serviço da hermenêutica e da argumentação jurídica.

A tese substancial consiste no fato de que o direito não é um fim em si mesmo, senão um instrumento ou artefato cultural, uma invenção humana, que deveríamos procurar modelar e utilizar inteligentemente para alcançar propósitos etico-políticos que vão mais além do próprio direito: uma certa paz, uma certa liberdade, igualdade e fraternidade, enfim, uma certa justiça.

O direito não é mais — nem menos — que uma estratégia socio- adaptativa — cada vez mais complexa, mas sempre notavelmente deficiente — empregada para articular argumentativamente — de fato, nem sempre com justiça —, por meio da virtude da prudência, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social. Isto é, para organizar e aperfeiçoar eticamente a vida política e social de tal modo que nenhum cidadão livre — pobre ou rico — tenha de temer a interferência arbitrária dos demais atores sociais em seus planos de vida.

A intenção é mostrar que a resposta a uma antiga pergunta — como o direito se tornou e é possível? — está ao nosso alcance graças às revelações da biologia evolucionária, das ciências cognitivas e da psicologia evolutiva (Barkow, Cosmides e Tooby, 1992; Wilson, 1998; Pinker,2000; Fiske, 1991; entre outros). A sociedade não é invenção de pensadores. Ela evoluiu como parte da nossa natureza. É, tanto quanto nosso corpo e forma de vida, produto dos genes e dos memes. Para compreendê-la devemos olhar dentro do cérebro, para os instintos (próprios de nosso complicado desenvolvimento mental) de criar e explorar vínculos sociais relacionais que lá estão (de comunidade, de autoridade, de proporcionalidade e de igualdade).

Dizendo de outro modo, estamos realmente convencidos de que as ciências jurídicas, sociais e humanas obteriam mais benefícios partindo de uma visão biologicamente vinculada à natureza humana, da transformação da filosofia da mente, da biologia evolucionária e da psicologia evolutiva em sua base conceitual, do que, entre outras, da psicanálise, do jusnaturalismo, do utilitarismo, do marxismo e da metafísica.

Afinal, se parece seguro que nossa evolução se deu por mecanismos darwinianos e de acordo com limitações darwinianas, o tipo de natureza humana implicado em uma determinada proposta teórica define e circunscreve não somente as condições de possibilidades das sociedades humanas como, e muito particularmente, o caráter das normas e dos valores produzidos pelo homem no percurso do incessante processo de adaptação (darwiniana) ao complicado e cotidiano mundo em que plasma sua existência.

Pois bem, o núcleo argumentativo deste trabalho pretende demonstrar, precisamente, de que modo a biologia evolucionária, a ciência cognitiva e a psicologia evolutiva oferecem razões poderosas que dão conta da falsidade da concepção comum da psicologia (e da racionalidade) humana. Pretende demonstrar, também, que alcance isso pode chegar a ter para o atual edifício teórico e metodológico da ciência jurídica, para a concepção acerca do homem enquanto causa e fim do direito e, conseqüentemente, para a tarefa do jurista-intérprete de dar "vida hermenêutica" ao direito positivo.

Para concluir, ainda que uma perspectiva evolucionária e biológica não determine se o câmbio é adequado nem que medidas devem ser adotadas para criar uma desejada mudança, seguramente poderá servir para informar sobre uma questão de fundamental relevância prático-concreta: quem "realiza o direito" pode procurar atuar em consonância com a natureza humana ou bem em contra a mesma. Mas é mais provável que alcance soluções eficazes modificando o ambiente em que se desenvolve a natureza humana do que empenhando-se na impossível tarefa de alterar a própria natureza humana.

 

Atahualpa Fernandez é pós-doutor em Teoria Social, Ética e Economia; doutor em Filosofia Jurídica, Moral e Política; mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas e especialista em Direito Público. Também professor titular da Unama e da Cesupa, procurador do trabalho aposentado e advogado.
Inserido neste site em Out/2003

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 16 de setembro de 2003.
http://www.mct.gov.br/legis/Consultoria_Juridica/artigos/direito_biologia_evolucionaria.htm

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