"A Dor que não termina"
Extraído de: "Revista Época - Edição 200 18/03/2002"

A Dor que não termina

O drama dos pais que têm de lidar com a morte violenta de seus filhos – uma tragédia cada vez mais comum

Ana Cristina Rosa e Marize Muniz

Era fim de dezembro e faltava menos de uma semana para o Natal. A psicóloga Maria José Amaral se preparava para ir para o trabalho quando a filha Carolina, de 5 anos, pediu: “Fica comigo hoje, mamãe, não vai embora não!” Paciente, a mãe explicou que precisava trabalhar, mas a menina podia ir com ela ao escritório. Haveria uma festa com Papai Noel para os filhos de funcionários. Nos anos anteriores, Carolina havia participado, mas daquela vez se recusou. Preferiu ficar com a avó. Quando voltava para casa, após um dia como tantos outros, Maria José passou por um acidente de trânsito. Viu que havia um corpo no chão e comentou com a amiga ao lado: “Gente, é quase Natal, como vai ficar essa família?” Meia hora depois, com um telefonema do ex-marido, ela saberia a resposta. As vítimas do acidente, atropeladas por um ônibus, eram sua mãe e sua filha. “Foi como se o chão se abrisse debaixo de mim, não há tempo que apague essa sensação”, diz. Maria José voltou ao local do acidente, encontrou apenas o corpo da mãe, e chegou a sentir alívio. Correu para o hospital, fantasiando que a filha ainda estava viva. Procurou médicos e funcionários em busca de informações, mas eles desconversaram. Até que ouviu de um cirurgião a terrível frase: “Fizemos o que era possível”. A psicóloga saiu dali como um autômato. Cuidou da burocracia do IML e escolheu a roupa do velório da pequenina. Foi só depois do enterro que Maria José acordou para o vazio. Não conseguia estar em casa, diante do quarto da filha. Ficou duas semanas em casas de amigos. Não conseguia dormir, emagreceu, chorava e repetia o tempo todo que estava sozinha no mundo. Vendeu o carro, pensou em sair do país, mas percebeu que teria de enfrentar a situação. “A gente tem de resolver as coisas internamente. Não adiantaria ir embora e levar os problemas comigo”, diz. Decidiu continuar no mesmo apartamento. A psicóloga trabalhava na recuperação de pessoas atingidas pela violência na Baixada Fluminense. Passou a dar assistência a vítimas do trânsito. Lutou para que o motorista tivesse a carteira cassada, e conseguiu.

Como ela, milhares de pessoas no Brasil enfrentam a perda de um filho. As mortes violentas de crianças e jovens chegam a 53.000 por ano. O assunto, um tabu tão horrível que a maioria das pessoas se recusa até a pensar nele, vem sendo abordado em dois filmes de sucesso. O Quarto do Filho, do italiano Nanni Moretti, fala sobre um terapeuta que perde o primogênito e o esforço da família para se recuperar. O americano Entre Quatro Paredes, indicado para cinco Oscars, mostra pais buscando justiça por um filho assassinado. Na vida real, porém, não há roteirista para resolver os dramas dos personagens.

O luto de quem perde um filho é diferente de qualquer outro. Tem o poder de destruir uma família e tornar insuportável o peso de tocar a vida adiante. Carolina, a filha de Maria José, se foi, mas as bonecas permanecem no quarto da filha, decorado com retratos na parede. A psicóloga fala dela no presente. Num shopping, quase comprou um par de sandálias de menina antes de se dar conta de que não tinha mais em quem calçá-las. Certa vez comprou uma coleção de CDs infantis com a desculpa de que iria usá-los no trabalho. “Na verdade, eu sabia que eram para minha menina. Ela ia gostar muito daquelas músicas”, conta.

Lexotan, Lorax, Rohypnol e Rivotril

"Pode faltar de tudo aqui em casa, mas nunca vai faltar flor para meu filho", diz o jornalista Fausto Camunha, enquanto troca os cravos vermelhos e brancos de um vaso na sala. Ali, na parede há um verdadeiro altar com 18 fotografias do jovem Fausto Eduardo, que morreu num acidente de automóvel em 1997, aos 20 anos. Foi a maneira que o casal encontrou para homenagear o filho único, que não voltará mais. Após o acidente, Lídia, a mãe, ficou tão chocada que não conseguiu ir ao velório nem ao enterro. Só visitou o túmulo do rapaz um ano e meio depois. Para tocar a vida, até hoje ela toma oito remédios diferentes, entre antidepressivos e calmantes – sem os quais não consegue dormir –, como Lexotan, Lorax, Rohypinol e Rivotril. O casal faz terapia com uma psiquiatra especializada em luto, mas acha que nunca conseguirá se recuperar totalmente. "A vida perdeu o sentido", diz Fausto, que usa no pulso o relógio e a pulseira de ouro que pertenciam ao filho. Lídia sonha com o rapaz quase todas as noites. "Sinto como se ele pudesse voltar a qualquer hora", diz Lídia. Fausto não toma medicamentos nem sonha, mas visita o túmulo do filho todo mês e lembra dele constantemente. "Em situações como essa, quem fica tem a sensação de que não pode ser feliz nunca mais, porque seria desleal com o filho que se foi", diz a psiquiatra Marluce de Souza Pedro, que atende a família Camunha.

Para qualquer pai, os filhos são a continuação de sua história. “A criança sai do ventre da mãe para ficar no mundo depois que ela se for”, diz a antropóloga Renate Viertler, da Universidade de São Paulo (USP). Os pais escolhem seus carros, o lugar onde vão morar e, em muitos casos, até mesmo os empregos em função dos filhos. Perdê-los equivale a decretar o fracasso de tudo aquilo pelo qual se viveu. “A primeira coisa que se pensa é: nunca mais terei alegria na vida”, diz o psicanalista Renato Mezan. “Com um filho, morre também a esperança de imortalidade, que é um desejo primitivo e fundamental.” É bom saber que existem profissionais ocupados em confortar e consolar quem é vítima de uma dor como essa. Na prática, eles pouco podem fazer. A morte é sempre motivo de angústia e tristeza. Mas a perda de um filho é uma tragédia contra a natureza, um desastre além da razão.

Nessa situação, muitos emudecem. O publicitário Paulo Giovanni, dono da agência Giovanni FCB, uma das maiores do país, perdeu seus dois filhos, de 21 e 15 anos, no início do mês, num acidente de automóvel. A família sofreu tanto que, aos amigos que ligavam para dar os pêsames, pedia simplesmente que não fossem ao funeral. Giovanni passou uma semana trancado em seu apartamento. O mesmo se passou com o administrador de empresas Rodrigo Vilaça, pai da menina Vytória, de 6 anos, que morreu num acidente com um elevador num shopping de São Paulo. A pequena era filha única, nascida depois que a mãe passou por cinco anos de tratamento para engravidar. A recuperação só ocorre aos poucos. “A experiência do luto vem da infância”, explica a psiquiatra Marluce de Souza Pedro, especialista no assunto. O bebê, por volta dos 6 meses, se dá conta pela primeira vez que a mãe não está ali com ele, e acha que ela não voltará mais. É seu primeiro luto. A perda de um parente sempre traz de volta a angústia da criança sozinha no mundo, a vontade de se encolher, enfiar-se num buraco na terra e jamais sair dali. Quando a pessoa desaparecida é um pai ou uma mãe, o choque é de certa maneira esperado. Quando a perda é de um filho, porém, a cicatrização parece impossível. “O tempo só piora, a dor nunca acaba. Cada dia é mais um dia sem ele. A sensação do ‘nunca’ é a pior que se pode sentir”, conta Lucinha Araujo, mãe do roqueiro Cazuza, morto em 1990.

Carteira num dia, morte no outro

Rafael Bezerra da Fonseca acabara de fazer 18 anos e, no ritual típico de todo jovem de classe média, correu para tirar sua carteira de motorista. Assim que a habilitação chegou, 15 dias depois do aniversário, veio com ela o presente – um carro novo. Naquele fim de semana, Rafael morreu. O rapaz foi ao aniversário de uma amiga, num sítio perto de São Paulo, e quando voltava pela Rodovia Castelo Branco o automóvel capotou a 110 quilômetros por hora. Os dois amigos que viajavam com ele sobreviveram. No velório, seu pai só conseguia repetir uma frase: "Eu dei o carro que matou meu filho". A mãe, Luci Meire Fonseca, mandou fechar o caixão porque não conseguia olhar para o corpo. Pensava tanto em morrer que começou a escrever cartas para o filho falecido. Depois de quatro meses, dizia numa delas: "Amanhã serão 120 dias a menos para nos encontrarmos." Buscou consolo na religião e acabou transformando as cartas numa forma de terapia. Lançou um livro com elas, Nosso Amor É Imortal, e nele relembra toda a história de Rafael, desde a gravidez. "Não existem culpados, existem porquês. Existe somente uma vida em crescimento, em aprendizado, que chega ao fim aqui na terra", escreveu.

O ritmo de vida de nossa sociedade torna quase impossível lidar com a perda de uma pessoa da família. “A recuperação leva muito tempo, e simplesmente ninguém tem tempo”, diz a antropóloga Renate Viertler. Antigamente, as pessoas que entravam em luto passavam meses e meses afastadas do convívio social, e um tempo considerável longe do trabalho. Quando saíam à rua, vestidas de preto, deixavam claro seu estado de espírito. “Hoje todos têm de voltar rapidamente à vida produtiva. É um tal de dizer ‘não chora, passa logo por cima, vai em frente’”, diz Renate. Exige-se que as pessoas enlutadas cumpram regras, horários e cargas de trabalho que não têm condições de suportar. “É comum que os casais se separem, porque um passa a pôr a culpa no outro. Um culpado ajuda a aliviar a dor”, diz a psiquiatra Marluce Pedro.

Ao perder uma criança, não há pai que não ache que poderia ter feito algo para evitar a tragédia. Em geral, porém, isso é apenas uma ilusão. No fim de fevereiro, a pequena Kimberly Zaballa Bustios, de 7 anos, pulava amarelinha no quintal de seu prédio, num bairro de classe média de São Paulo, quando o muro que separa o condomínio do colégio vizinho desabou sobre ela. A menina morreu antes de chegar ao hospital. “Tentamos proteger os filhos de todas as formas e, de repente, os perdemos dentro de casa”, desespera-se o pai, Vicente Zaballa, de 52 anos. Para enfrentar a dor, ele e a mulher, Jorgelina, repetem que precisam cuidar dos outros três filhos.

O desespero da morte anunciada

Em 1995 a pequena Rebeca Peliz, de 2 anos, entrou numa sala de cirurgia em Brasília para extrair do cérebro um tumor maligno do tamanho de um limão. Ela estava desenganada, mas a operação era necessária para reduzir a pressão craniana. A menina saiu da sala consciente, mas de olhos fechados. "Ela nunca mais os abriu. Nunca mais vi os olhos da minha filha", conta a mãe, Ilda. "Eu perguntava se estava doendo e ela respondia 'tá', batendo a mãozinha na cabeça." Rebeca morreu em casa, dois meses depois. A agonia da caçula arrasou a família. As duas filhas mais velhas repetiram de ano, e uma chegou a acusar a mãe de não se preocupar mais com ela. O sofrimento era tanto que uma vez, no hospital, os pais souberam que uma criança havia morrido e torceram para que fosse Rebeca. "Levei quatro anos para abrir o armário de minha filha", conta Ilda. Hoje ela trabalha numa instituição que ajuda crianças com câncer.

As famílias de nosso tempo têm uma intimidade maior que as do passado, o que faz com que a carga de emoção depositada sobre cada filho aumente. Tempos atrás era diferente. Crianças não se sentavam à mesa com os adultos e filhos só podiam se dirigir aos pais chamando-os de senhor ou senhora. Durante muito tempo os herdeiros, principalmente nas comunidades rurais, eram vistos como mão-de-obra. Valia a pena ter uma família numerosa, porque assim haveria mais braços para a lavoura. O historiador francês Philippe Ariès conta que, até o final da Idade Média, não se guardavam sequer os retratos das crianças. Se elas cresciam e se tornavam adultas, a infância era um período sem importância em suas vidas. Se morriam cedo, “não se considerava que aquela coisinha desaparecida fosse digna de lembrança”, diz no livro História Social da Criança e da Família. No século XVI, o filósofo francês Montaigne julgava mais sofrido despedir-se de filhos adultos que dos menores: “Perdi dois ou três filhos pequenos, não sem tristeza, mas sem desespero”, escreveu. Em função de pestes, epidemias e doenças que ninguém sabia como tratar, a morte dos pequeninos era tão comum que as pessoas achavam normal ter vários filhos para que só alguns sobrevivessem. O mundo se desenvolveu, a mortalidade infantil reduziu-se. Com menos perdas, as famílias passaram a ter menos descendentes. Menos pessoas sob um mesmo teto se tornam mais próximas. A falta de alguém à mesa no domingo parece um peso insuportável.

O último telefonema

O cirurgião plástico Wagner de Moares estava numa festa em Friburgo, no Rio de Janeiro, quando o telefone celular tocou à 1h15 da madrugada. Ele viu no visor do aparelho o número da filha e atendeu - mas ninguém falou. Do outro lado da linha, ouvia-se apenas o barulho do trânsito. Antes que ele conseguisse retornar a ligação, o telefone voltou a tocar. Dessa vez, ouviu uma voz desconhecida. Era um PM. "Doutor, infelizmente sua filha acaba de ser assassinada." Michelle, de 22 anos, foi baleada dentro do carro por uma assaltante. A primeira ligação havia sido feita pela moça, ferida, que ainda tentou fugir e pedir socorro. "Em seu momento de maior dor, foi a mim que ela procurou e não pude fazer nada", lamenta Moraes. "Morri junto com ela." Para exorcizar a perda da filha única, o cirurgião fundou uma ONG dedicada à recuperação de drogados – a assassina, hoje presa, era uma viciada em cocaína que atirou porque estava fora de controle. Em homenagem à memória de Michelle, ele escreveu um livro e chegou a patrocinar um curta-metragem, dirigido pelo cineasta Neville D'Almeida e estrelado pela atriz Juliana Paes.

Nessas situações, o consolo sempre foi encarar a tragédia como vontade de Deus. Diante de uma determinação superior, restava apenas se conformar. Mas hoje até as pessoas mais fiéis, em caso de doença ou acidente, depositam suas esperanças nos médicos e nos hospitais. “Houve uma substituição da função religiosa pela medicina. Por isso, a morte é vista como um fracasso, e não como um fato natural”, explica a psicóloga Maria Júlia Kovács, da USP. Embora a maioria das pessoas se considere religiosa, enxerga o mundo com olhar científico, quase materialista. Não se acredita em encantamento, duvida-se de milagres. Isso torna a vida mais cruel. “Quanto menos se pensa de forma religiosa, mais absurda parece a morte”, diz o psicanalista Renato Mezan. Num mundo material, morrer é acabar, e pronto, algo muito mais chocante que pensar numa pessoa querida a caminho do Céu. Todas as religiões pregam que os mortos não se extinguem, mas mudam para um plano superior da existência.

Em busca de alento, a atriz Nair Bello procurou o médium Chico Xavier em 1977 para tentar fazer contato com o filho Manoel, morto em um acidente de carro. Recebeu uma carta psicografada, em que ele se dizia feliz em ver que a família enfrentava a tragédia com bravura. A carta ajudou Nair a erguer a cabeça novamente. “Estava tão abalada que ia à igreja e só pedia para voltar a rir outra vez”, recorda.

Forças para cuidar dos que ficaram

A família Frateschi seguia de Parati para São Paulo na volta do Carnaval. Como a família é grande, a viagem era feita em dois carros. Repentinamente, o automóvel dirigido pela mãe, Iolanda, saiu da pista e capotou várias vezes. Ela e a filha mais velha sofreram ferimentos leves, mas o pequeno Pedro, de 7 anos, e a caçula Beatriz, de 6, foram arremessados para fora do carro. O pai e os outros filhos, que viajavam mais à frente, atravessaram a pista correndo para socorrer os feridos. Pedro não resistiu aos ferimentos. Beatriz entrou em coma, passou quatro semanas no hospital e se recupera em casa. "Sepultar meu bichinho foi um pavor, uma coisa sem lógica", desabafa o pai, Paulo Frateschi, presidente do PT paulista. Para superar a dor, a família se uniu em torno da recuperação da filha. "Por mais contraditório que pareça, o que aconteceu com a Bia acabou nos ajudando a enfrentar a dor da perda do Pedrinho", acrescenta. "Não podemos nos entregar porque temos um objetivo, que é curá-la." Na casa, as lembranças de Pedro ainda estão por toda parte, do quarto aos bilhetinhos de amor à mãe espalhados pelos cantos. "Tenho certeza de que precisaremos de ajuda profissional para enfrentar essa dor."

Até 60 anos atrás, morrer antes da velhice era comum. Os antibióticos ainda não eram difundidos e doenças hoje curáveis eram fatais. Jovens eram consumidos por varíola, tuberculose ou tifo. Crianças eram levadas pela caxumba e pelo tétano. Com o progresso da medicina, a expectativa de vida aumentou, e hoje morrer antes dos 60 parece inconcebível. O que tem seus efeitos colaterais. “Nosso mundo se recusa a pensar na morte”, considera a antropóloga Renate Viertler. “A sociedade prega o ideal da eterna juventude e se apóia nos avanços da medicina para dar a ilusão de que o fim nunca chegará.”

Mas tragédias acontecem. No lugar das doenças, é a violência que hoje leva os jovens. As estatísticas mostram que, nas mortes entre os 10 e os 29 anos de idade, 70% são provocadas pelas chamadas “causas externas”, ou seja, fatores que não têm nada a ver com a saúde da vítima. Em primeiro lugar vêm os homicídios, que cresceram 109% em 18 anos. Em geral são brigas de fim de semana, resolvidas à bala, à faca, em tragédias cujas origens a própria polícia tem dificuldade para resolver. Depois, os acidentes de trânsito. Em seguida as mortes provocadas por substâncias químicas – categoria que engloba os envenenamentos e as overdoses de drogas. “O trauma desses casos é muito maior, porque não há tempo para a despedida. Quando alguém sofre de uma doença grave, as pessoas próximas têm tempo de se preparar para o pior. Uma das coisas que mais perturbam quem fica é a falta de uma despedida”, explica a psicóloga Maria Júlia Kovács. Foi o que ocorreu com o economista André Leal, de Brasília. Eram 3 horas da manhã quando ele recebeu uma ligação de um hospital avisando que seu filho João Cláudio, de 20 anos, estava morto. Ele havia sido espancado numa briga na saída de uma boate. “É como se ele tivesse morrido hoje”, diz a mãe do rapaz, Silvana. Um filme, uma música ou uma situação são suficientes para deflagrar uma crise. Recentemente, a família foi a um casamento. Na cerimônia, tocou a música preferida de João Cláudio. “Chorei tanto que tive de sair”, diz Silvana.

"Meu filho salvou minha vida"

A perda de uma criança pode simplesmente destruir uma família. Foi o que aconteceu em 1998 quando Maxwell Oliveira da Silva, de 12 anos, foi atropelado na frente de sua casa, em São Paulo. O pai, o entregador Benedito da Silva Filho, atravessou a Rodovia dos Bandeirantes com o garoto nos braços, praticamente se jogando na frente dos carros "para ver se morria junto com ele". Em quatro meses a mãe, Delma, entrou em depressão, deixou de se alimentar, ficou doente e morreu. Benedito, antes uma pessoa tranqüila e ponderada, ficou fora de si. Quinze dias após a morte da esposa, brigou no trabalho e foi demitido. Passou dois anos sem conseguir emprego fixo. Sentia que a vida não fazia mais sentido. "Quem me salvou foi meu outro filho, Brian", diz, abraçando o caçula, de 8 anos. "Não fizemos terapia nem procuramos ajuda em religião. Simplesmente nos agarramos um ao outro." No ano passado, Benedito conheceu uma jovem viúva. Já arranjou um emprego e agora pensa em casar e criar uma nova família.

Segundo os psicólogos, as famílias grandes, numerosas e estáveis de antigamente garantiam uma base mais sólida para quem precisava se recuperar de uma perda dolorosa. Com o aumento dos divórcios, a maioria das pessoas reparte seu cotidiano com um grupo cada vez menor de pessoas. Há menos apoio para suportar um baque. “Vive-se longe dos parentes, labutando na vida profissional. No passado a estrutura familiar era mais protetora”, diz Renate Viertler. Os especialistas consideram que procurar grupos de ajuda pode ser útil. Mas, em geral, há uma única receita para sobreviver à fatalidade: aproximar-se dos que vivem, e enfrentar a vida pensando neles. “Ainda me lembro do Leonardo dando tchauzinho no portão. É a última imagem que tenho dele”, diz a cantora Wanderléa, que perdeu seu filho de apenas 2 anos em 1984. O garoto andava de triciclo quando caiu na piscina e morreu. Leonardo tinha o hábito de acordar todos os dias e levar o urso de pelúcia com o qual dormia para a cama da mãe. Por causa da confusão do acidente, o brinquedo foi esquecido lá. Quando acordou depois do enterro, a primeira coisa que Wanderléa viu foi o ursinho. ”Pensei que não resistiria, meu marido pensou em se matar, achei que nunca mais teria um filho”, lembra. Seis meses depois, viu que estava errada. O quarto de Leonardo, até então arrumado, ganhou nova mobília para outro bebê. Com duas filhas adolescentes, Wanderléa superou a perda, mas nunca vai esquecê-la. “Léo era um anjo que ficou comigo algum tempo, mas eu tive de devolver a Deus.”

Como enfrentar a dor

O que os especialistas recomendam

Procurar orientação médica: auxílio profissional é imprescindível no processo de aceitação da perda. O gesto de falar sobre a dor com alguém de fora da família é benéfico, serve como uma espécie de ritual para aliviar o sofrimento.

Manter a rotina: as atividades do cotidiano – escola, trabalho, convívio social – não devem ser paralisadas. Isso só aumenta a sensação de que a vida acabou junto com a do filho.

Enfrentar a dor: falar sobre a tragédia, ver fotografias e chorar sempre que tiver vontade ajuda. O luto é elaborado na medida em que se entra em contato com a dor.

Evitar a culpa: quem se acha culpado julga também que poderia ter evitado a tragédia – o que é uma fantasia de onipotência. Esse pensamento impede que se viva a realidade da perda. A culpa é, em certa medida, uma forma de fugir da dor.

Tirar lições da morte: por mais dolorosos que sejam, todos os fatos da vida trazem alguma lição. Segundo os terapeutas, quem deixa de tirar lições da dor vai reviver a sensação de perda constantemente.

Encontrar uma válvula de escape: cada pessoa deve achar seu caminho. Para uns é a religião, para outros é assumir uma causa ou dedicar-se às artes. O importante é não ficar paralisado pela dor.

Falar a verdade: não esconder as circunstâncias ou causas da morte, independentemente de tabus e preconceitos. Quando isso não acontece, as pessoas correm o risco de repetir a história e entrar numa ciranda de perdas sucessivas.


Fonte: Instituto de Psiquiatria e Psicoterapia da Infância e Adolescência de São Paulo



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