Raizes
Biológicas da Monogamia
Por: Drauzio Varella
Folha de São Paulo, 03 de novembro de 2001
Monogamia social é uma coisa, monogamia genética
é outra. A social acontece quando dois indivíduos de sexo
oposto se unem para formar um casal. Já a genética é
a monogamia sexual; para ocorrer, cada membro do par precisa garantir
exclusividade de acesso sexual ao outro.
Monogamia social é fenômeno raríssimo
entre os animais. Monogamia genética, então, nem se fala.
Até nos pássaros que formam pares amorosos, como o joão-de-barro
(acusado injustamente de emparedar no ninho a fêmea infiel), o
DNA dos filhos muitas vezes não bate com o do pai social.
Na evolução, o enorme esforço
exigido na construção do ninho conferiu vantagens reprodutivas
aos pássaros que dividiam essa tarefa com suas fêmeas.
Os folgados, que deixavam a fêmea trabalhar sozinha, podiam não
ter o ninho pronto no momento propício ou serem preteridos por
machos mais cooperativos. Por isso os cientistas acreditavam que um
macho só investiria energia na arrumação do ninho
na certeza de que seus genes seriam transmitidos aos descendentes. Estudos
recentes de DNA abalaram essa convicção, entretanto.
Um trabalho conduzido na Universidade da Georgia com
180 espécies diferentes de pássaros cantores acasalados
mostrou que apenas 10% deles eram sexualmente monogâmicos. Para
a surpresa dos pesquisadores, nem os pássaros azuis americanos,
tradicionais modelos de fidelidade conjugal, escaparam: 15% a 20% dos
filhotes são concebidos em encontros fortuitos das fêmeas
com machos da vizinhança.
Nos mamíferos, diferentemente do que ocorre
com os pássaros, a própria monogamia social é um
acontecimento inusitado: apenas 3% a 10% formam casais que repartem
os cuidados com a prole. No entanto os estudos de DNA mostram que, mesmo
entre estes, casamento não é sinônimo de monogamia
sexual.
Para usarmos um exemplo próximo da espécie
humana, vejamos o caso dos chimpanzés, animais que formam grupos
sociais e possuem mais de 98% de genes iguais aos nossos. Em todas as
comunidades de chimpanzés já estudadas, os testes de DNA
demonstram que boa parte dos filhotes é concebida por machos
de comunidades alheias. A discordância genética entre pais
sociais e genéticos chega a mais de 60%, em alguns casos. O fato
é relevante não apenas pela proximidade genética
conosco mas pelos riscos que as fêmeas correm nessas escapadas
às comunidades vizinhas numa espécie machista como a dos
chimpanzés.
A fêmea se arrisca, porque os chimpanzés
costumam matar premeditadamente os membros de grupos estranhos -única
espécie, além do homem, capaz dessa façanha. As
fêmeas que conseguem se afastar disfarçadamente do grupo
natal e se aproximar dos vizinhos sem despertar reação
violenta levam duas vantagens reprodutivas: acesso a genes que aumentarão
a diversidade da prole (portanto a probabilidade de sobrevivência)
e proteção em caso de ataque (chimpanzés não
costumam matar fêmeas com quem mantiveram relações
sexuais).
Fenômeno raro, mas disperso na escala animal,
a monogamia sobreviveu até nossos dias. Quando um acontecimento
natural persiste por tanto tempo e em espécies tão diversas
quanto a nossa e as dos passarinhos, é porque está apoiado
em sólida base bioquímica. De fato, esse é o caso
da monogamia.
Existe nas montanhas da Califórnia um pequeno
roedor, pouco maior do que um rato, que contraria a regra geral de poligamia
dos mamíferos. Durante dois anos, um grupo da Universidade do
Texas testou o DNA de 28 famílias
desses roedores em liberdade e não encontrou um só caso
de discordância do DNA paterno.
Nesses roedores, o trabalho conjunto do casal é
absolutamente imprescindível para a sobrevivência dos descendentes.
A mãe dá à luz sempre na época mais fria
do inverno, e os dois ou três filhotes que nascem de cada
vez precisam ser aquecidos dia e noite pelo pai e pela mãe ao
mesmo tempo, para não morrerem de frio. Se o macho sai de perto,
a fêmea abandona imediatamente o ninho ou mata as crias.
Um grupo da Universidade de Maryland estudou a bioquímica
envolvida no relacionamento sexual desses roedores monogâmicos.
Seu comportamento sexual é caracterizado pelo grande número
de relações mantidas no primeiro encontro amoroso. Como
consequência dessa atividade frenética, os ovários
da fêmea produzem um hormônio chamado ocitocina (existente
em todos os mamíferos), ligado à lactação
e ao comportamento maternal.
Na circulação dos machos, é liberado
outro hormônio, a vasopressina (presente em todos os mamíferos),
associado à agressividade e ao comportamento paternal.Ao chegarem
ao cérebro, esses hormônios vão-se ligar a minúsculos
receptores situados em estações de neurônios que
ficam nas áreas que controlam as emoções e o comportamento
sexual. Injeções de bloqueadores da produção
de ocitocina e da vasopressina impedem que os casais formem laços
de união depois do acalorado encontro inicial. Administração
de drogas que impedem o acesso dos hormônios citados aos seus
receptores cerebrais provoca exatamente o mesmo efeito.
Embora faltem pesquisas sobre a dissonância entre
monogamia social e genética em seres humanos de diferentes culturas,
os laboratórios que estudam a incidência de doenças
hereditárias nos países ocidentais têm demonstrado
que pelo menos 10% das crianças não foram concebidas por
aqueles que se consideram pais delas.