O Chip Humano
Carlos Graieb, Revista Veja


O chip humano
O cientista canadense defende a tese de que a mente é uma
espécie de computador programado pela seleção natural

Carlos Graieb

Em 1859, o inglês Charles Darwin abalou o edifício intelectual do
Ocidente ao afirmar que os homens não foram criados diretamente por
Deus, mas evoluíram de ancestrais primatas, parentes dos atuais macacos,
graças ao processo que ele batizou como "seleção natural". No final de
sua obra clássica, A Origem das Espécies, Darwin asseverou que sua
teoria poderia explicar não apenas a existência e a complexidade do
corpo humano mas também nossa forma de pensar e sentir. "A partir daqui,
a psicologia se assenta sobre novas bases", disse ele. Mais de 100 anos
depois, a psicologia evolucionista começa a ganhar forma e já encontrou
um expositor à altura das dificuldades que apresenta e das polêmicas que
provoca. Seu nome é Steven Pinker. Canadense, 44 anos, diretor do Centro
de Neurociência Cognitiva do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (o
respeitado MIT), Pinker ganhou celebridade fora dos círculos acadêmicos
por causa de seus livros, escritos com excepcional clareza. O mais
recente deles tem o título ambicioso de Como a Mente Funciona e acaba de
sair no Brasil. Nesta entrevista a VEJA, o autor apresenta algumas de
suas idéias, transitando entre a teoria e as questões do dia-a-dia.

Veja — O que o senhor entende por "mente"?

Pinker — De um ponto de vista teórico, a mente é a atividade do cérebro
que processa informações. É uma espécie de computador. A mente não é
nosso espírito ou nossa alma, como acreditam os metafísicos, nem pode
ser entendida como um mero mecanismo fisiológico de liberação de
substâncias químicas no cérebro. Afinal de contas, no que se refere aos
tecidos cerebrais, um homem e uma vaca não são assim tão diferentes.

Veja — E por que, então, o comportamento humano não é igual ao
comportamento de um bovino?

Pinker — A mente humana atingiu sua forma atual graças à seleção
natural. Ela evoluiu biologicamente no decorrer de milhares de anos e
seus traços gerais são determinados por nossa carga genética. Isso não
significa, entretanto, que sejamos marionetes indefesas nas mãos de
nosso DNA. Não existe um gene para cada sentimento, um gene que me faça
gostar de ópera e outro que me faça gostar de rock. Essa é a primeira
parte da resposta. A segunda é que não devemos imaginar a mente como uma
unidade — ela é um conjunto de módulos especializados, cada um deles
responsável por funções como manipular objetos, raciocinar
abstratamente, amar ou odiar. Os comandos enviados de cada um desses
módulos freqüentemente são bastante conflitantes, e nossas reações
imediatas são determinadas por qual deles fala mais alto em certo
momento. Uma mesma emoção talvez não se traduza num único comportamento
se uma ou outra parte da mente evitar que isso aconteça. Por exemplo: no
passado, a maioria das pessoas tendia a usar a violência para responder
a uma injúria. Nos dias que correm, em vez de assassinar um desafeto no
meio da noite, podemos processá-lo ou escrever uma carta-denúncia para
nossa revista preferida. Temos as mesmas emoções de nossos ancestrais,
mas as respostas a elas passaram a ser diferentes porque, se a mente
humana evoluiu segundo as leis da seleção natural, hoje ela obedece
também a regras da sociedade e da cultura.

Veja — Um caso interessante de comportamento moldado socialmente, que
"foge à natureza", é a decisão de não ter filhos.

Pinker — Essa é uma prova de que não somos joguete de nossa carga de
DNA. Como notou o cientista Richard Dawkins, a propagação de genes é o
imperativo máximo de nossa existência biológica. Existo hoje porque os
genes de meus ancestrais se propagaram, sobreviveram e chegaram até
aqui. Segundo essa lógica, desistir de ter filhos é quebrar uma regra de
ouro. É um crime, uma aberração. E é exatamente o que eu, por exemplo,
venho fazendo até agora. Não tenho filhos, e se meus genes quiserem
saltar da ponte por causa disso o problema é deles. Como disse antes, o
comportamento é resultado de um conflito entre nossos módulos mentais.
Com a invenção de métodos contraceptivos, uma parte de minha mente pode
perfeitamente fazer com que eu tome uma decisão anti-reprodutiva, por
mais estranha que ela pareça quando imaginada no cenário de nossa evolução.

Veja — O que a psicologia evolucionista tem a dizer a respeito das
diferenças entre homens e mulheres?

Pinker — De maneira geral, as diferenças entre machos e fêmeas nas
espécies animais são muito bem explicadas pelo que chamamos de "teoria
do investimento paterno". Em outras palavras, o que diferencia os sexos
é o tamanho de seu investimento em tempo, energia e cuidados com relação
à prole. A regra básica que decorre daí é a seguinte: as fêmeas, que
investem mais, normalmente são as que escolhem seus parceiros; os
machos, que investem menos, são os que competem pelas melhores
parceiras. Em grande medida a diferença entre homens e mulheres ainda
decorre dessa norma. É preciso lembrar, afinal de contas, que nossa
mente se formou num mundo primitivo em que não havia camisinha nem
pílula, em que o homem caçava e a mulher colhia e no qual os bebês eram
muito mais um problema da mãe. Em outras palavras, a idéia de que os
homens seriam mais competitivos, mais violentos, "piores", tem boas
razões evolutivas para fundamentá-la. É curioso notar que até agora não
há estudos científicos a respeito das estratégias de competição e
atração que as mulheres usam.

Veja — Do ponto de vista da evolução da espécie, há alguma razão para os
homens serem mais infiéis do que as mulheres?

Pinker — Digamos que os homens são mais volúveis. Quando uma mulher é
infiel, normalmente é porque seu parceiro ocasional é sexualmente mais
desejável que o habitual. No caso masculino, a infidelidade ocorre
apenas porque uma parceira é diferente da outra. Os homens buscam muitas
parceiras apenas pelo prazer de tê-las — o que não deixa de ser um
comportamento que guarda semelhanças com o do caçador primitivo.
Lembre-se do caso do ator Hugh Grant, pego no carro com uma prostituta.
Certamente um homem rico e famoso, casado com uma beldade como Elizabeth
Hurley, não estava interessado nas qualidades intrínsecas da moça. É
como diz a piada que cito no meu livro: os homens não pagam pelo sexo
com as prostitutas; pagam para elas irem embora depois.

Veja — Como o senhor vê os livros de auto-ajuda que prometem reprogramar
a mente dos leitores?

Pinker — Algumas abordagens são inofensivas, mas há muita bobagem por
aí. É lixo puro tudo que tem a ver com regressão a vidas passadas, tudo
que tem a ver com carma, tudo que tem a ver com aconselhamento sobre a
criação de filhos. Os conselhos para pais despreparados normalmente são
muito ruins, sobretudo quando sugerem que detalhes mínimos do
comportamento paterno acabam moldando a personalidade das crianças. São
destituídos de qualquer valor os livros que dizem: "Trate sua criança
desse ou daquele jeito, fale com ela assim ou assado, pois dessa forma
ela crescerá inteligente e honesta".

Veja — Alguns estudiosos afirmam que uma criança é muito mais
influenciada pelos colegas e amigos de sua idade do que pelos próprios
pais. O senhor concorda com essa tese?

Pinker — A idéia de que os pais moldam a personalidade dos filhos é tão
arraigada que normalmente se acredita que ela não precisa de provas. Os
estudos mais recentes mostram, no entanto, que cerca de 50% das
variações de personalidade têm causas genéticas. Assim, gêmeos idênticos
criados separados costumam ser tão parecidos em caráter e temperamento
quanto gêmeos idênticos criados juntos. E quanto aos outros 50%? A
surpresa está aí: não mais do que 5% da personalidade de uma criança é
determinada pelo tipo de educação que ela recebeu. Assim, as outras
crianças, ou "pares", são em vários aspectos mais importantes na
formação de um jovem do que os pais. A influência na linguagem é a mais
evidente: as crianças utilizam o vocabulário de seus colegas e amigos,
não o da mamãe.

Veja — O senhor aborda, em seu livro, um famoso paradoxo da biologia,
segundo o qual a mente humana parece ter um desenho complexo demais para
o que seriam as necessidades do homem primitivo. No cenário de nossa
evolução, precisávamos apenas caçar e coletar, mas nossa mente se tornou
capaz também de compor sinfonias.

Pinker — Você deu o exemplo das sinfonias, mas vamos pensar em outra
coisa estranha: nossa capacidade de resolver equações matemáticas
complicadas com as quais nossos antepassados nem sequer sonhavam. Como
podemos ser tão bons nessa tarefa abstrata? Bem, o que eu gostaria de
dizer é que, na verdade, não somos tão bons quanto pensamos. Por mais
brilhante que seja uma pessoa, ela sempre desenha um gráfico quando
começa a falar sobre variáveis matemáticas diante de um quadro negro.
Nenhum computador desenha gráficos enquanto trabalha para resolver uma
equação. Para que transformar um problema numa linha quebradiça se o
computador pode simplesmente realizar os cálculos e ponto final? Mas os
humanos fazem gráficos. E isso ocorre porque, sendo primatas, ou seja,
animais visuais, necessitamos da ajuda de nosso "computador ocular" para
alcançar conclusões num campo abstrato. Ao traduzir relações matemáticas
em desenhos, os homens adaptam recursos que foram originalmente
desenvolvidos para finalidades mais primitivas. Nessa capacidade de
adaptação está a resposta para o paradoxo.

Veja — A mente de um gênio é muito diferente da de uma pessoa comum?

Pinker — As pessoas que chamamos de gênios talvez tenham alguma vantagem
genética em comparação com os mortais comuns. Mas eu não sou romântico
sobre esse assunto, não acredito que as grandes obras artísticas ou os
maiores achados científicos surjam do nada, depois de um raio fulminante
de inspiração. Para ser reconhecida como gênio, uma pessoa
excepcionalmente dotada precisa desenvolver seu talento em pelo menos
dez anos de treinamento obsessivo. Veja o caso de Mozart, cuja
capacidade para tocar e compor manifestou-se muito cedo. Ainda assim,
ele não produziu nada de valor duradouro antes de estudar por longos
anos. Da mesma forma, é um erro imaginar que um intrincado problema
matemático possa ser solucionado instantaneamente, a partir dos abismos
do inconsciente. Ao investigar a correspondência e as anotações dos
gênios, os historiadores invariavelmente descobrem que eles avançaram
devagar para atingir seus objetivos. O momento de triunfo normalmente é
apenas a modificação de uma idéia que eles estiveram ruminando no
decorrer do tempo.

Veja — Como explicar a atividade artística nos termos da psicologia
evolucionista?

Pinker — A arte é um subproduto de várias capacidades. Para começar, do
fato de termos um sentido "estético" cuja função adaptativa primária é
nos atrair para ambientes benéficos e pessoas desejáveis. Gostamos de
altitudes de onde podemos observar um belo panorama, gostamos de
paisagens com água e vegetação. Assim, em boa medida a arte é a produção
de estímulos artificiais que visam fornecer o mesmo prazer que ambientes
naturais nos dariam. É mais uma daquelas atividades que, do ponto de
vista de nossos genes, são pura idiotice.

Veja — O senhor utiliza exemplos relacionados à arte acadêmica. E a arte
de vanguarda, que tantas vezes é agressiva?

Pinker — Os chamados vanguardistas são impulsionados por uma psicologia
diferente. Na maioria das vezes, buscam o que é impopular apenas para se
diferenciar da massa. O caso do escritor irlandês Oscar Wilde, que
gostava de ofender para sobressair, é típico. Essa é uma dinâmica que
pode ser notada em várias formas de expressão artística contemporânea, e
uma das razões para isso é que neste século muitas pessoas podem pagar
por objetos antes exclusivos de uma minoria. Ficou mais difícil, assim,
se diferenciar do resto da humanidade. Quem deseja fazê-lo é obrigado
agora a procurar caminhos alternativos, como fazer arte que ninguém
entende ou fustigar as pessoas.

Veja — A mente humana ainda está evoluindo?

Pinker — Uma boa aposta é dizer que não. Certamente o processo de
evolução não apresenta o mesmo ímpeto de cerca de 100.000 anos atrás,
quando surgiram os primeiros crânios modernos. A indagação que
precisamos fazer é: como a posse de uma mente mais poderosa se
traduziria, no decorrer dos séculos futuros, em maiores chances de
procriação para os donos desses cérebros, em maiores chances de ter
filhos que herdassem essa mente "evoluída"? Para nossos antepassados,
que viviam da coleta e fugindo de predadores, a vantagem era clara.
Aqueles que tinham a mente mais poderosa, que faziam as melhores
ferramentas ou concebiam as melhores estratégias de caça, conseguiam
sobreviver. Hoje, essa relação não é mais evidente. Tomamos conta de
toda a Terra e criamos redes sociais que protegem também os mais fracos
em termos biológicos. Ninguém precisa mais matar um mamute para
sobreviver. Uma evolução mental teria de levar em conta, ainda, os
custos associados a um cérebro grande e uma mente complexa como a nossa.
O tecido cerebral consome um monte de energia. Além disso, cérebro
grande significa cabeça volumosa, o que aumenta os riscos para o bebê e
para a mãe na hora do parto.

Veja — Estaríamos próximos, assim, do limite de nosso desenvolvimento
cultural e tecnológico?

Pinker — Não, ainda há muito a explorar na mente humana, e é certo que
nossa cultura e tecnologia evoluirão drasticamente. Só é bastante
provável que tenhamos atingido o nosso limite biológico. De todo modo,
nenhum de nós estará aqui para assistir a um "salto evolucional".
Lembre-se: a evolução biológica é um processo que envolve muitas e
muitas gerações, num período longuíssimo. Só os heróis das histórias em
quadrinhos ganham superpoderes de repente.


home : : voltar