A corrupção não é, portanto, do ponto de vista estritamente genético, um mal permanente
Rogério Cezar de Cerqueira Leite é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da “Folha de SP”, onde publicou este artigo:
Os 50 intelectuais brasileiros que compõem o conselho do Instituto DNA-Brasil reuniram-se gostosamente e discutiram durante três dias consecutivos alguns problemas brasileiros, sendo o tema dominante a questão "somos ou estamos corruptos?" (o debate foi recentemente publicado em livro com o mesmo título).
Não é preciso explicar que a motivação foi a estupefação provocada nos meios acadêmicos pela revelação de fraudes no governo e no PT, antes pelo conflito com expectativas relativas a um partido que tinha como bandeira a ética do que pelo inauditismo de ações, que eram reconhecidas como corriqueiras.
Metade dos presentes que responderam textualmente à questão acima tergiversaram. Um quarto deles consentiu, enquanto o derradeiro quarto negou peremptoriamente.
E uma respeitada especialista em genética recusou seguir a trilha teórica de sua especialidade. Vamos tomá-la, entretanto, irresponsavelmente, como se fosse uma fantasia.
A mais provocativa e impetuosa teoria comportamental da genética moderna é aquela do "gene egoísta", de Richard Dawkins, que parte do princípio de que o material genético atua como se seu único objetivo fosse a própria reprodução.
A primeira iniciativa para a adoção de um princípio primordial deve ser a demonstração de que não é incompatível com outros confirmados pela experiência.
Comecemos, pois, com o mais evidente, a seleção natural de Darwin. Esse preceito decorre naturalmente do conceito do gene egoísta, que estabelece a competição entre congêneres e mutantes.
Pode-se mesmo dizer que a seleção entre espécies é uma conseqüência direta do egoísmo genético.
Todas as vertentes da sociobiologia, desde aquelas à maneira de E. O. Wilson (preservação do indivíduo) até a etologia (preservação da espécie) de Karl Lorenz, podem ser teoricamente derivadas do princípio proposto por Dawkins.
Também a psicanálise que tem como base duas "pulsões" (os leigos diriam instintos), a de libido e a de morte, é compatível com o gene egoísta. Sem libido, não haveria reprodução do gene.
O impulso para a morte pode ser compreendido como gestão do gene para abrir para seus descendentes espaços ocupados por um portador deficiente.
É um esquema semelhante àquele usado pelos geneticistas da linha Dawkins-Wilson-Lorenz para explicar a filantropia como decorrente do interesse egoísta, seja do gene, seja do indivíduo, seja da espécie.
O conceito do gene egoísta é compatível até mesmo com dogmas religiosos. Casai e multiplicai-vos, diz a Igreja Católica.
Mas é preciso confessar que também há compatibilidade com impulsos bastante deploráveis, como o racismo e a xenofobia.
E é por isso que a intelectualidade de esquerda tem tanta aversão àquilo que chamam de determinismo biológico.
Algumas espécies biológicas, inclusive os primeiros homúnculos, em priscas eras, que bem longe vão, puderam sobreviver apenas quando cooperando em grupos, fosse para a caça, fosse para a defesa.
Foi no interesse do seu patrimônio genético que se gerou o instinto gregário e, conseqüentemente, as primeiras regras de convivência. Comportamentos foram filogeneticamente incorporados.
Outros são de expressão cultural. E assim foram gerados o Estado, as instituições, a urbanidade etc.
O homem, como muitas outras espécies, é assim um empilhamento de instintos (pulsações) e de continências (superego, diriam os psicanalistas) hierarquizados, mas acessíveis e mobilizáveis de acordo com as circunstâncias.
A tábua da lei de Moisés nasceu do interesse do gene egoísta, que não poderia procriar sem que seu portador, o indivíduo, sobrevivesse em sociedade.
Se um dia, seja por um cataclismo nuclear, seja devido ao aquecimento global, seja devido à gripe aviária, vier a sociedade a ser desestruturada, talvez tenha que descartar todos esses comportamentos politicamente corretos e recorrer aos mais primitivos instintos de sobrevivência.
Eis porque a natureza não suprime definitivamente aqueles comportamentos primitivos diretamente geridos pelo gene egoísta.
Corrupção pode ser entendida como qualquer ação promovida no interesse do gene primitivo que seja adversa àquelas regras que foram elaboradas também no interesse do gene quando, porém, prevaleceu a necessidade de convivência.
Com a urbanização, regras de convivência se institucionalizaram. Esse é um processo dinâmico e se chama civilização.
A corrupção não é, portanto, do ponto de vista estritamente genético, um mal permanente. A corrupção é conseqüência da fraqueza das nossas instituições.
E se hoje ela aflora no Brasil, e enfim a opinião pública a identifica e a combate, é porque estão começando a ser superados os interesses mais primitivos de nosso gene egoísta.
Isso é o que pensaria um geneticista radical.
(Folha de SP, 12/5)