Anatomia da personalidade
Veja - 11/9/2006 ,
Drawlio Joca ; Fabiano Accorsi; Lailson Santos


Anatomia da personalidade

Veja - 11/9/2006

A ciência descobre que a herança genética influi mais do que se pensava na formação das características e no comportamento das pessoas

HUMOR E ESPIRROS EM COMUM
As gêmeas univitelinas Bruna (à dir.) e Renata Alves de Souza, de 20 anos, provam que às vezes a genética influi mais do que a criação no comportamento. Desde que nasceram, sua mãe, Etienne, fez questão de criá-las para ser diferentes. "Evitava vesti-las com roupas iguais e cortar seus cabelos da mesma forma. Dava um jeito para que tivessem amigos diferentes", ela conta. Apesar dos esforços para diferenciá-las, as meninas cresceram e continuaram parecidas em muitos aspectos. Pesquisas com gêmeos univitelinos mostram que eles apresentam várias características em comum. Bruna e Renata têm facilidade para idiomas, o mesmo temperamento e a mesma turma de amigos. "Espirramos igual, comemos da mesma maneira e temos o mesmo senso de humor", diz Bruna. Na hora de dormir, ficam na mesma posição. "Quando uma está com a perna cruzada, a outra também está", espanta-se a mãe.

O que faz alguém de índole calma ter uma explosão de violência? Como surge a homossexualidade? Por que algumas pessoas se tornam líderes enquanto outras, igualmente inteligentes, têm um destino medíocre? Explicar o comportamento humano em seus diversos aspectos - no círculo de amizades, no trabalho, no amor, na fé religiosa - sempre foi um desafio para psicólogos e cientistas. Até hoje, as pesquisas sobre o tema produziram duas correntes antagônicas, que contrapõem a natureza e o ambiente social. De um lado estão os defensores da tese de que todos nascem iguais e a personalidade é formada pelo aprendizado e pelas experiências pessoais. Do outro lado, acredita-se que os traços da personalidade são definidos pela herança genética, assim como a cor dos olhos. Uma série de descobertas recentes enterra essa discussão. A idéia de que só o ambiente ou só o DNA forma a personalidade foi substituída por outra mais flexível. Todo comportamento tem um componente genético, mas sua manifestação depende de fatores ambientais. Sob essa visão, genética e sociedade interagem para moldar o jeito de ser de cada pessoa. "O gene carrega a arma e o ambiente puxa o gatilho", disse a VEJA o geneticista Matt Ridley, da Universidade de Oxford e autor do livro O que Nos Faz Humanos: Genes, Natureza e Experiência.

A revolução nos conceitos da chamada genética do comportamento, nome dado à ciência que estuda a influência dos genes na personalidade, ocorreu por causa dos avanços na engenharia genética e na biologia molecular. Os cientistas são capazes de fazer uma busca minuciosa em todo o genoma e encontrar regiões com genes capazes de influenciar o comportamento humano. Essas regiões podem ser identificadas em análises de amostras de sangue de irmãos ou familiares com os mesmos traços psicológicos. Já foram encontrados genes e regiões genômicas que tornam as pessoas mais vulneráveis a adotar comportamentos agressivos ou a sofrer transtornos psíquicos. Também já foram detectados genes relacionados à orientação sexual e a vícios como alcoolismo e tabagismo.

Os pesquisadores advertem que portar esses genes não significa que a pessoa necessariamente desenvolva o comportamento ligado a ele. Não existe determinismo genético, apenas predisposição. Diz Ridley: "Os genes podem se expressar ou não. Alguns são ligados ou desligados pela própria dinâmica do genoma. Outros, pelas experiências pessoais, familiares e pelo ambiente em que a pessoa vive". Um estudo do Instituto de Psiquiatria do King's College de Londres, divulgado no ano passado, encontrou dois genes que atuam na liberação de neurotransmissores no cérebro. Esses genes são responsáveis pela depressão e pelas atitudes anti-sociais, mas só se manifestam em pessoas expostas a situações de grande stress, como perda de emprego ou morte de familiares. Conclusão: ter predisposição genética à depressão não leva ninguém a ficar deprimido. O mesmo acontece com os distúrbios alimentares. Cientistas da Universidade da Carolina do Norte identificaram regiões genéticas similares em amostras de sangue de mais de 400 pacientes com anorexia ou bulimia. "Os mesmos marcadores apareceram em pessoas sem os distúrbios, o que comprova a ação do ambiente", diz a autora do estudo, a geneticista Cynthia Bulik.

Recentemente, pesquisadores do Instituto de Psiquiatria de Londres encontraram regiões do genoma que podem influenciar a inteligência. Um gene chamado LIMK1 produz uma proteína que ajuda a desenvolver a cognição espacial. As pessoas que têm esses genes levemente alterados também são inteligentes, mas não têm habilidades para desenho, por exemplo. Outro gene, o IGF2R, está associado à alta inteligência - sua existência acarreta 4 pontos a mais no QI do portador. A tendência ao suicídio também já foi identificada no genoma. Cientistas da Universidade de Ottawa, no Canadá, descobriram que pacientes portadores de uma mutação no gene responsável por codificar um dos receptores da serotonina, o neurotransmissor que causa sensação de bem-estar, apresentavam duas vezes mais risco de cometer suicídio.

A descoberta de genes que influenciam aspectos específicos da vida é o que há de mais novo na genética do comportamento. Grande parte das características humanas, porém, é produto de muitos genes - e não de apenas um, como ocorre com a maioria dos traços físicos e doenças. "Por causa dessa complexidade, o estudo com gêmeos é o que revela com maior precisão a natureza hereditária do perfil social dos indivíduos", diz o geneticista Renato Zamora Flores, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Além disso, pela observação de gêmeos em suas rotinas por longos períodos, esses estudos conseguem estimar quanto da personalidade de cada um é herança genética e quanto se deve ao ambiente familiar ou às experiências pessoais", ele completa.

 
Drawlio Joca

SURPRESA NO REENCONTRO
Terezinha Oliveira de Souza (na foto acima), agricultora, e Maria do Socorro da Costa, dona-de-casa, têm 59 anos e são gêmeas univitelinas. Nasceram em Tauá, no interior do Ceará. Tinham 1 ano quando a mãe morreu. Cada uma foi criada por um casal de tios. Terezinha continuou em Tauá. Maria do Socorro foi morar com a nova família em Parambu, no mesmo estado. As gêmeas se avistaram algumas vezes na infância, por poucas horas. Aos 19 anos, estiveram juntas num casamento, mas mal conversaram. Há dez anos, casada e morando no Tocantins, Maria do Socorro decidiu retomar o contato com a irmã. Reencontraram-se na cidade natal e, pela primeira vez, tiveram a oportunidade de se conhecer a fundo. Foi uma surpresa. As duas vestiam-se da mesma forma, tomavam os mesmos remédios e sabiam costurar bem. Casaram-se na mesma época e ambas têm sete filhos. Estudos com gêmeos separados no nascimento mostram que eles têm mais em comum do que os criados na mesma família - nesse caso, eles se esforçam para se diferenciar.

Fabiano Accorsi

Os estudos com gêmeos e famílias que incluem filhos biológicos e adotivos começaram na década de 70. Por meio deles, descobriu-se que as crianças adotadas têm traços de personalidade mais parecidos com os de seus pais biológicos do que com os dos pais adotivos. Se os pais verdadeiros têm histórico criminal, por exemplo, as crianças entregues para adoção tendem a apresentar desvios de conduta graves. O mesmo ocorre com o QI. As pesquisas com gêmeos univitelinos são ainda mais representativas porque eles possuem exatamente o mesmo código genético, são clones um do outro. Estudos revelam que gêmeos idênticos exibem aspectos da personalidade semelhantes. São muito parecidos no que diz respeito a inteligência e habilidades, comportam-se da mesma forma nos relacionamentos, têm a mesma predisposição ao stress e até o mesmo gosto musical - ainda que tenham sido criados em famílias diferentes desde muito cedo. "Os experimentos com gêmeos permitiram concluir que as principais características da personalidade - como introversão ou extroversão, neurose ou estabilidade, abertura ou não a experiências, atenção ou dispersão - são em média 50% herdadas", disse a VEJA o psiquiatra Robert Plomin, do Instituto de Psiquiatria de Londres.

Pesquisadores da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, há vinte anos acompanham 8.000 gêmeos, três centenas deles gêmeos idênticos e separados da família no nascimento. Os resultados dos mais de 129 estudos publicados pela equipe surpreendem ao mostrar que certos comportamentos avaliados como fruto do aprendizado ao longo da vida são fortemente influenciados pela genética. O conservadorismo político, por exemplo, é um traço que, segundo o estudo, tem 60% de influência genética. A herança genética da religiosidade gira em torno de 57%. "O grupo de Minnesota não tenta provar que há um gene para Deus e um gene conservador. Nem afirma que o ambiente não tem importância na religiosidade. Os cientistas apenas afirmam que, mesmo em características 'culturais' como a religião, o impacto dos genes não deve ser ignorado e pode ser medido", diz o geneticista Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Clínica.

 

Fabiano Accorsi

QUINZE VEZES SEMELHANTES
Os quinze filhos de Apparecida Dall'Ovo têm muito em comum. Todos nadam muito bem. A maioria surfa - só três não enfrentam as ondas. Na escola, tiravam notas altas em matérias ligadas às ciências exatas e abominavam história. Todos desenham ou trabalham em áreas que exigem inteligência espacial, como paisagismo. Alguns tocam violão sem nunca ter feito curso de música. O pai, Marcello, já falecido, também aprendeu a tocar o instrumento sozinho. Estudos mostram que habilidades atléticas e cognitivas têm forte influência da genética. O temperamento também. "Todos os meus filhos são teimosos e não aceitam ser contrariados. Como eu", diz Apparecida.

A busca por explicações para o comportamento humano mobiliza filósofos, sociólogos, médicos e cientistas desde a Antiguidade. Na Grécia, Hipócrates (460-377 a.C.), considerado o pai da medicina, classificava a personalidade em quatro tipos, de acordo com a presença de determinadas substâncias no organismo. No século XVII, o filósofo John Locke foi um dos primeiros a teorizar que a mente humana nasce vazia, como um papel em branco, e que a personalidade é fruto das experiências. Logo depois, o francês Jean Jacques Rousseau criou o conceito do bom selvagem inspirado nas descobertas de povos indígenas nas Américas. Para ele, os humanos nasceriam inocentes e pacíficos. Males como ganância e violência seriam produto da civilização. O primeiro cientista da era moderna a estudar seriamente a questão da natureza versus criação foi o inglês Francis Galton, no fim do século XIX. Pioneiro no estudo de irmãos gêmeos, ele pretendia mostrar que a inteligência e os talentos da elite intelectual inglesa eram passados de pai para filho.

 

Fabiano Accorsi

ÁLCOOL DE PAI PARA FILHO
A contribuição da genética para o desenvolvimento do alcoolismo é alta. A família de Luís Fernando, de 48 anos, vive esse drama há três gerações. Luís cresceu vendo o pai, já falecido, embriagar-se. Jurou que não faria o mesmo. Aos 13 anos, porém, começou a beber. Parou os estudos no ensino médio, quando a bebida passou a dominar seu dia-a-dia. Há dois anos em tratamento no Alcoólicos Anônimos (AA), Luís sofre duplamente. Em janeiro, descobriu que o filho Lucas, de 19 anos, bebia desde os 9. "Antes de beber, eu tinha certeza de que não seria como meu pai e meu avô", diz Lucas. O rapaz freqüenta o AA há cinco meses.

Por todo o século XX, muitos intelectuais tentaram impor a tese de que os seres humanos são produto apenas do ambiente. Em parte, esse posicionamento foi uma reação à série de atrocidades cometidas na década de 20, nos Estados Unidos, na Áustria, na Suíça e nos países nórdicos, com o intuito de promover limpezas étnicas. Em episódios cuja extensão só foi revelada há uma década, judeus, ciganos, deficientes físicos e homossexuais foram esterilizados ou mortos para evitar que transmitissem seus genes à posteridade. O apogeu trágico e brutal dessas experiências ocorreu na Alemanha nazista. É notório que o médico alemão Josef Mengele se utilizou das idéias de Francis Galton para torturar e matar inúmeros gêmeos em experimentos sobre hereditariedade de traços sociais. "A maior justificativa para os pensadores negarem a influência genética do comportamento é o medo do preconceito e da eugenia", diz o cientista Steven Pinker, da Universidade Harvard, autor do livro Tábula Rasa, a Negação Contemporânea da Natureza Humana.

A descoberta da estrutura do DNA por James Watson e Francis Crick, em 1953, e a divulgação do Projeto Genoma Humano, em 2000, abriram as portas para uma compreensão sem precedentes das raízes biológicas da personalidade. As revelações de que a genética pode influenciar comportamentos mudam a visão das pessoas sobre questões filosóficas e do cotidiano. "A idéia de que os bebês vêm ao mundo sem características inatas multiplica a angústia dos pais que dão aos filhos uma educação adequada e eles não correspondem às suas expectativas. Na verdade, muitas coisas não dependem dos pais, e sim da natureza", diz Steven Pinker. O biólogo Richard Dawkins, da Universidade de Oxford, e autor de O Gene Egoísta, vai além. "A genética do comportamento mudará muita coisa. Se partirmos do pressuposto de que nossa mente é regida por algo além dos conceitos éticos e morais aprendidos, como punir um assassino?", ele questiona. "Quando um computador não funciona, em vez de puni-lo, nós o consertamos."

 

Lailson San tos

MÚSICA E NEGÓCIOS NO SANGUE
"A genética aqui corre solta", diz o cantor Jair Rodrigues, de 67 anos, com seu eterno jeito brincalhão. Jair é pai do músico Jair Oliveira, 31 anos, e da cantora Luciana Mello, 27. "Todos na família cantam bem, mas só Jairzinho tem talento para tocar instrumentos", diz o pai. De Jair, os filhos herdaram a musicalidade. Da mãe, Claudine, o tino para os negócios - Jairzinho é dono do selo S de Samba e Luciana administra sua própria carreira. "Sempre fui organizada e tenho facilidade para lidar com finanças", diz Claudine.

A psicóloga americana Judith Rich Harris foi uma das primeiras pesquisadoras a tentar mensurar a importância da genética, da família, do círculo de amizades e das experiências pessoais na formação da personalidade. Em seu livro No Two Alike (Não Há Dois Iguais), lançado neste ano, Judith diz que a genética é responsável por no mínimo 40% do que somos. Em segundo lugar vêm os amigos, a maior influência que recebemos. Por último, a família. A maneira como somos vistos por nossos amigos faz com que passemos a investir em determinados comportamentos. Se o grupo costuma rir das brincadeiras de uma criança, ela se percebe como uma pessoa divertida e tenta repetir esse jeito de ser, incorporando-o para o resto da vida. "Se um menino for desde pequeno visto como líder pelos colegas, no futuro pode vir a ser um líder de verdade se tiver as características genéticas propícias", escreve Judith. Nem todos os traços de personalidade, porém, sofrem influência tão marcante das experiências pessoais. Já se comprovou que o desenvolvimento da inteligência depende em grande parte de um ambiente familiar que a estimule. Os geneticistas estimam que, em duas décadas, será possível rastrear regiões genômicas em quantidade suficiente para conseguir mais do que pistas sobre a influência dos genes no comportamento. Graças à associação da psicologia e da genética, está aberto o caminho para elucidar a anatomia da personalidade.

 

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