Ciencia e Religiao : Inimigos Naturais
Por: Judith Hayes, novembro de 2002.
A ciência e a religião não precisam entrar numa
guerra aberta; mas reduzir o alto padrão das provas, que é a marca
registrada do método científico, a fim de acomodar a religião é
pagar um preço alto demais pela paz.
Há um motivo por que há canções chamadas de espirituais. É
porque são canções sobre Jesus, paraíso e outras coisas
espirituais. A tendência recente de redefinir essa palavra,
espiritual, é perturbadora porque há
um grande número de cientistas supostamente céticos e racionais que se
juntaram ao movimento para fazer com que a palavra signifique algo que
ela não significa. Sustento que nós céticos não podemos reivindicar
tal título se nós formos levianos com tais palavras. Parecemos estar
buscando, desesperadamente, por uma posição conciliatória em face da
agressiva imprensa judiciária iniciada recentemente pela Direita
Religiosa. Estamos cedendo terreno.
Recentemente pude escrever para a revista Skeptical Inquirer de
Julho/Agosto de 1999. Fui direto ao ponto (todas as citações e referências
são desse artigo, com exceção de algumas de Carl Sagan). Meu artigo
foi dedicado à controversia; controversia esta sobre a ciência e a
religião, perguntando se elas podem ou não coexistir pacificamente
lado a lado. Elas não podem. Se vamos permitir que as palavras
signifiquem o que elas realmente significam, religião e ciência não
podem esperar nada além de uma trégua armada.
O Problema da Definição
A palavra espiritual é um exemplo proeminente do atoleiro de
definições no qual parecemos estar afundando. Há muitas outras
palavras que estão começando a ser redefinidas de uma forma
religiosa-sem-significado; fé e crença entre outras. Mesmo meu herói,
o falecido Carl Sagan (1995) discutiu a palavra espiritualidade dizendo
que Espírito vem da palavra latina respirar. O que
respiramos é ar,
que é certamente matéria, ainda que fina. Apesar de seu uso em contrário,
não há nenhuma implicação necessária na palavra
espiritual de que estejamos falando de qualquer outra coisa além
da matéria
(incluindo a matéria da qual o cérebro é feito), ou qualquer coisa além
do reino da ciência. Não conheço nenhuma pessoa que pense que
espiritualidade signifique respirar o ar ou que a associe a qualquer
outra coisa além da religião.
Fraudulento pode ser uma palavra muito forte para se usar, mas tais
interpretações confusas são no mínimo enganadoras. Da mesma forma,
ao listar modelos diferentes de entendimento de como a religião e a ciência
interagem, Eugenie Scott referiu-se a domínios não-materiais como
se eles existissem. Mas o que é um domínio não-material? Alguém já
viu algum? Mesmo o suposto vácuo do espaço intergaláctico contém moléculas,
que são certamente materiais.
Nos nossos esforços para sermos conciliatórios, nos recusamos a
aplicar palavras como paranormal e místico para religiões organizadas
- pro vudu sim, pras religiões organizadas não. Mas por que? Apelar
para espíritos invisíveis e incognoscíveis que dêem a nós, mortais,
uma mãozinha, pertence ao reino do sobrenatural, o que significa alguma
coisa existindo fora do mundo natural, o que significa algo que, para um
cético, não existe. O invisível e o inexistente se parecem muito.
Barry Palevitz apresentou uma descrição racional e perspicaz de como
ele lida com a insistência, de alguns de seus estudantes de ciências,
de fazerem uma conciliação, permitindo que um pouquinho de Deus seja
incorporado em teorias científicas. Mas no final ele faz a afirmação
desqualificada de que a espiritualidade não só é possível [na ciência],
mas até vantajosa.
Obviamente precisamos definir espiritual e espiritualidade. Uma estratégia
bem sucedida é procurar no dicionário. Se você procurar
espiritualidade encontrará todos os tipos de definições como
religioso, sagrado, sobrenatural e transcendental; de, ou relacionado a,
coisas imateriais, a alma, Deus; fantasmagórico; etéreo; sacro e assim
por diante. Em nenhum lugar você encontrará Do, ou pertencente ao,
maravilhoso assombro em contemplar o universo. Sagan novamente
(1995): Apesar do uso contrário&.a ciência não é apenas compatível
com a espiritualidade; ela é uma fonte profunda de
espiritualidade. [Grifo meu.]
Mas o nosso uso define nossas palavras e determina como elas aparecem em
nossos dicionários. Por exemplo, a palavra forsooth costumava
significar indeed (de fato) ou in truth (na verdade); mas a
nossa falta de uso a relegou a peças Shakespearianas e versos. Não
podemos simplesmente dispensar o uso com um aceno só porque isso pode
nos ajudar a evitar uma confrontação filosófica desagradável. Se as
palavras devem
ter algum significado, devemos vê-las como elas são usadas comumente e
compreendidas hoje em dia. Se alguém diz Ela é uma mulher
profundamente religiosa, não há confusão sobre o significado.
O inglês [idioma original no qual este ensaio foi escrito] é um idioma
rico, cheio de tantas nuances, tons muito sutis de significado. Temos
palavras como maravilhado, assombro, amor, compaixão, ardor, reverência,
respeito, espanto, carinho e assim por diante, quase que
indefinidamente. Não há necessidade de cooptar palavras como
espiritual para fazer duplicidades oblíquas e contorcidas na
tentativa de sustentar a ilusão de que os religiosos e os não-crentes
têm visões de mundo semelhantes. O golfo que divide essas duas visões
de mundo, dependendo da força das crenças religiosas envolvidas, pode
ser medido em anos-luz. Eu era uma cristã fundamentalista e posso te
assegurar que, de um ponto de vista fundamentalista, essa vida terrena,
juntamente com as luzinhas bonitinhas do céu noturno são inteiramente
desimportantes. A vida é apenas um lugar para esperar a morte, após a
qual a vida de verdade começa.
Então, tomado no contexto correto o contexto honesto, cru, sem
truques, não maquiado não há nada de científico na
espiritualidade e nada de espiritual na ciência.
Ultrapassando Limites
Stephen Jay Gould referiu-se à ciência e à religião como disciplinas
não sobrepostas. Não sobrepostas? Dificilmente! A tradição
judaico-cristã abrange, como verdades, coisas como animais falantes, um
arbusto em chamas falante, a abertura do Mar Vermelho, o sol ficando imóvel
no céu para Josué, comida caindo do céu, um ser humano andando
sobre a água, pessoas voltando de seus túmulos e vários indivíduos
ascendendo em corpo aos céus. Tais verdades exigem a suspensão
das leis da natureza; se isso não é se sobrepor ao campo da ciência,
não consigo imaginar o que poderia ser.
Definir o ceticismo é outra tarefa árdua, embora não devesse ser. A
definição clássica de ceticismo é que nenhum conhecimento absoluto
é possível, seja devido às nossas próprias limitações, seja devido
à inacessibilidade ao objeto sobre o qual buscamos o conhecimento.
Artigos inteiros, capítulos de livros e tratados foram escritos sobre
esse pequeno sofisma, que é absurdo. A definição por si só é uma
contradição
óbvia. Se não há meio de saber algo com certeza, então não há meio
de saber que não há meio de saber nada com certeza. Não é necessário
dizer mais nada sobre esse assunto. Eu gostaria de ver essa definição
desaparecer no horizonte para sempre. Sei, com certeza, que essa definição
me dá dor-de-cabeça.
A definição em geral mais aceita de ceticismo, de
que todas as afirmações devem ser questionadas e testadas para avaliar
sua confiabilidade, deveria ser aplicada a todos os cientistas. E
geralmente ela é. Mas quando é para se testar as afirmações da
religião em busca de sua confiabilidade, muitos cientistas, como o
restante de nós, foge do assunto como um todo, como gatos escaldados.
Criticamos os videntes, mas não as orações. Por que? Qual a diferença?
Rimos dos leprechauns e fadas no jardim, mas não dos anjos da guarda.
Por que? Questionamos a idéia de alguém ter sido levado a Júpiter por
alienígenas, mas não a idéia de almas invisíveis serem levadas para
um paraíso igualmente invisível após a morte. Por que?
A fim de serem coerentes e de manterem a sua credibilidade, os céticos
devem lidar com todas as afirmações de fenômenos sobrenaturais. A
religião não deveria desfrutar de uma posição privilegiada só
porque muitas pessoas são religiosas. Houve uma época em que a maioria
das pessoas acreditava que o Sol orbitava a Terra. Copérnico deveria,
portanto, ter abandonado suas buscas em deferência àquela maioria? O
conhecimento científico não pode ser obtido por uma votação e o
questionamento cético não deveria deter-se ao grito de alto! por
temer ofender aos Verdadeiros Crentes.
Também me sinto sempre frustrada quando ouço pessoas dizendo Deus
como se houvesse um entendimento universal sobre essa palavra. Nada
poderia estar mais longe da verdade. O Deus dos judeus não enviou Jesus
como Salvador do mundo, mas o Deus cristão o fez. O Deus mórmon
inspirou Joseph Smith, mas o Deus muçulmano inspirou Maomé. E então há
Brahma, Vishnu e Shiva o mundo está cheio de Deuses mutuamente
exclusivos. Esse fato, por si só, parece tornar todas as religiões
controversas. E quando Einstein fez sua declaração sobre Deus ser
sutil, embora não malicioso, você supõe que ele estava falando de
Brahma?
O Poder Papal
Tanto Richard Dawkins quanto Gould expressam apreciação pelo
reconhecimento da evolução pelo Papa em 1996 Dawkins brevemente
e de má vontade, Gould mais amplamente e com entusiasmo. Estou com
Dawkins nesse assunto, embora eu nem sequer vá tão longe quanto ele
foi. Por que um cientista se importa com o que o Papa diz? Pensei que a
religião e a ciência fossem disciplinas não sobrepostas. Teria
havido aclamação mundial se o Papa tivesse anunciado que agora se
poderia reconhecer a existência da tabela periódica dos elementos?
Rastejar finalmente para fora do século XIV não merece um aplauso
exuberante. E dizer que a posição de João Paulo sobre a evolução é
um grande avanço em relação àquela de Pio XII é como dizer que ter
três pneus furados todos ao mesmo tempo é um grande avanço em relação
a ter quatro. Pra mim não.
Igualmente não posso concordar com a declaração de Gould de que
nenhuma dessas religiões [catolicismo e judaísmo] mantém qualquer
tradição ampla de se ler a Bíblia como verdade literal... Isso
deve ter sido uma surpresa para todos os católicos ortodoxos a quem foi
dito ser um pecado praticar o controle de natalidade. E de onde vem a
autoridade para essa doutrina? De uma interpretação literal das
palavras no Gênesis: crescei
e multiplicai-vos. Será que o Papa não percebeu que, não só nos
multiplicamos, mas que a superpopulação é um dos problemas mais sérios
do mundo? O sofrimento humano causado pelo repúdio ao controle de
natalidade é incalculável. E bem recentemente João Paulo II
santificou o repúdio ao controle de natalidade colocando-o na Lei Canônica,
garantindo mais miséria humana. Num planeta que há muito está vergado
sob o peso de sua carga humana, tal édito é uma terrível crueldade.
Eu sou atéia, obviamente. Tendo dito isto, eu
realmente respeito os direitos dos outros de venerar como quiserem
contanto que não tentem forçar suas crenças sobre mim ou sobre nossas
cortes de justiça pagas
com nossos impostos ou nas escolas públicas. E é aqui onde a batalha
entre a ciência e a religião é travada. O assim chamado criacionismo
científico está avançando rumo às nossas salas de aula, em
parte devido à falta de oposição veemente de cientistas com
credenciais. A posição conciliatória que mencionei acima ainda é
procurada por pessoas demais, cujas vozes imporiam respeito se elas
fossem altas o bastante para que
as ouvíssemos.
As histórias do Jardim do Éden e da Arca de Noé são
bizarras, infantis e positivamente inacreditáveis. A idéia delas serem
apresentadas aos nossos estudantes, lado a lado com a evolução, como
uma explicação alternativa, mas igualmente válida para a diversidade
e a localização de toda a vida animal na Terra, é quase inconcebível.
Nem é pouco assustadora. Mas, a não ser que todos nós revidemos, isso
irá acontecer, sem dúvida. Medidas inconstitucionais estão
acontecendo nas escolas de muitos estados, a Assembléia Legislativa
votou a favor de exibir os assim chamados Dez Mandamentos em
propriedades públicas, todos no Congresso estão cantando Deus Abençoe
a América e assim por diante. Repito, o que falta para que os
Estados Unidos se tornem uma teocracia é apenas os não-crentes, os
cientistas e os céticos não fazerem nada.
Fazer de conta que não vemos as afirmações místicas
e mágicas da maioria das religiões não muda a natureza dessas afirmações
místicas e mágicas. Os cientistas são treinados na arte do pensamento
crítico, exigindo escrupulosamente indícios convincentes antes de
adotarem qualquer hipótese como teoria. Enquanto tenho dificuldade para
entender como alguns pensadores, normalmente céticos, podem
"compartimentalizar" seus pensamentos para acomodar a crença
num Deus invisível e incognoscível, cuja existência não pode ser
provada ou refutada, reconheço inteiramente seu direito de fazê-lo.
Temos sorte de viver numa sociedade que permite liberdade completa de
religião. Giordano Bruno, Galileu e centenas de milhares de outros não
tiveram essa sorte. Entretanto, a liberdade de crer em algo não valida
essa crença. Não há escapatória do fato de que a ciência e a religião
entram em conflito se o método científico for aplicado às crenças
religiosas.
Referências
Sagan, Carl. 1995. The Demon-Haunted World. New York: Random House, 29.
Dawkins, Richard. 1999. You can't have it both ways: irreconcilable
differences? SKEPTICAL INQUIRER 23 (4): July/August, 64.
Gould, Stephen Jay. 1999. Non-overlapping magisteria. Ibid., 55-61.
Palevitz, Barry A. 1999. Science and the versus of religion. Ibid., 32-35.
Scott, Eugenie C. 1999. The science and religion movement. Ibid., 30.
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© 2002 Judith Hayes. Da The Happy Heretic, novembro de 2002.
Texto Extraido de :
http://www.str.com.br/Scientia/inimigas.htm