Espiritismo
Por Leandro Sarmatz, Revista Superinteressante
O "passe" é um dos elementos mais fortes do Espiritismo.
Durante a sessão, o médium transmitiria a outras pessoas forças
consideradas benéficas para sua saúde física e espiritual
Criado por um pedagogo, o Espiritismo surgiu na França no século XIX.
Hoje, o Brasil possui a maior comunidade espírita do mundo. Saiba tudo
sobre a religião que considera a morte apenas uma etapa da evolução
pessoal e que acredita na vida em outros planetas
Jesus Cristo não é o enviado de Deus à Terra. É
apenas um espírito mais evoluído que serve de guia para toda a
humanidade.
A morte de um ente querido, por mais dolorosa que seja, não deve ser
encarada de forma absolutamente negativa. Muitas vezes, é apenas o
encerramento de uma missão no mundo dos vivos.
Vivemos cercados de espíritos, alguns bons, outros ruins.
As afirmações acima – que batem de frente com os princípios
fundadores de muitos credos, entre eles a fé católica e todas as
demais religiões dela derivadas – costumam ser proferidas de maneira
desassombrada pelos espíritas em centenas de centros espalhados pelo
Brasil. Pudera. Fazem parte das idéias básicas de uma religião
professada por 2,3 milhões de brasileiros, segundo o último censo do
IBGE.
A enorme receptividade do Espiritismo no Brasil é mais um dos inúmeros
paradoxos da fé em terras tupiniquins. Embora a pátria-mãe do
Espiritismo seja a França – país de Allan Kardec, o homem que, no século
XIX, compilou e decodificou os princípios que até hoje orientam os 15
milhões de adeptos no mundo todo –, foi no Brasil que essa religião,
gestada numa era em que a ciência se desenvolvia vertiginosamente,
encontrou terreno fértil para se alastrar do Oiapoque ao Chuí. Por quê?
A resposta está tanto no Espiritismo quanto no povo brasileiro.
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O QUE É
Religião ou doutrina? Se você perguntar a algum freqüentador assíduo
de centro espírita, provavelmente receberá a seguinte resposta: o
Espiritismo é uma doutrina revelada pelos espíritos superiores a Allan
Kardec, que a codificou em cinco obras: O Livro dos Espíritos (1857), O
Livro dos Médiuns (1859), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1863), O Céu
e o Inferno (1865) e A Gênese (1868).
Mas isso explica muito pouco. Doutrinas há de todas as cores e matizes
ideológicos. O Marxismo também é uma doutrina baseada em um livro
fundamental (no caso, O Capital, de Karl Marx), mas nem por isso deve
ser encarado como uma religião. A Psicanálise, também. Assim ocorre
com outras filosofias. A diferença básica está na forma de encarar a
realidade. "Se você explica a realidade social pela realidade
transcendente, sua visão é religiosa", afirma Maria Laura
Viveiros de Castro Cavalcanti, professora do Departamento de
Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
estudiosa do Espiritismo no Brasil. Isso quer dizer que, sim, o
Espiritismo é uma religião – pois apresenta toda uma série de
explicações espirituais e divinas para eventos tão comezinhos quanto
o mau humor do seu vizinho e tão devastadores quanto a morte de alguém
em sua família.
Típico rebento do século XIX – o mesmo das teorias
evolucionistas de Charles Darwin, da Tabela Periódica, da redescoberta
das filosofias orientais e do Positivismo de Auguste Comte –, o
Espiritismo consegue a proeza de mesclar Catolicismo primitivo
(caridade), Budismo (reencarnações), Darwin (evolucionismo) e um
caldeirão de credos esotéricos que estavam em plena voga nos anos 1800
– e que geraram filosofias tão diversas como o Espiritualismo de
Emannuel Swedenborg e a Teosofia de Madame Blavatsky. "É uma
religião de síntese", afirma Maria Laura.
E só poderia ser assim mesmo. Seu iniciador, Allan Kardec (1804-1869),
era um pedagogo que fundou na própria casa um curso gratuito de Química,
Física, Anatomia e outras ciências que galvanizaram as mentes curiosas
do século XIX e ajudaram a preparar o terreno para as revoluções
científicas da nossa era. Kardec inclusive chegou a estudar Medicina,
mas logo abandonou os planos de atuar nessa profissão. É por essa razão
que, desde o início do movimento espírita, ele sempre fez questão de
apresentar, com um vocabulário inspirado nas ciências, eventos como
comunicação com espíritos e o movimento de objetos sem ação humana
aparente. Num texto bastante famoso, o iniciador do Espiritismo explica
seu método: "Apliquei a esta nova ciência, como tinha feito até
então, o método de experimentação; nunca elaborei teorias
preconcebidas: eu observava atentamente, comparava, deduzia as conseqüências...".
A identificação explícita com o método de dedução
científica foi uma tentativa de livrar o Espiritismo da pecha de
irracionalidade num tempo em que a Razão era um verdadeiro dogma. E
também foi – numa estratégia inversa – uma afirmação do
Espiritismo como reunião de doutrinas religiosas, científicas e filosóficas
para fazer frente às verdades incontestáveis da Igreja Católica. E
essa, logo iria mostrar seu desagrado com a nova religião. Porque a
afirmação do Espiritismo foi uma luta difícil e demorada, como se verá
a seguir.
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COMO SURGIU
Um dia, andando pelas ruas de Paris, Hippolyte Léon Denizard Rivail
encontrou-se com um amigo de nome Carlotti, que lhe descreveu uma série
de eventos extraordinários, supostamente provocados pela ação direta
de espíritos.
Curioso e ainda descrente, Rivail começou a freqüentar algumas reuniões
– e teria visto seu ceticismo virar picadinho ao observar mesas e
outros objetos ganharem movimento sem a ajuda de qualquer pessoa ou
mecanismo especial. Disposto a entender esses fenômenos, Rivail
mergulhou no estudo de várias correntes do misticismo e começou (num
gesto que viria confirmar suas inclinações científicas) a
experimentar e repetir vários daqueles que seriam fenômenos de
comunicação com o mundo dos mortos.
Numa das sessões que presenciava, Rivail ouviu de um médium
que ele já fora um celta chamado Allan Kardec. E que, como Kardec, ele
deveria reunir os muitos ensinamentos e conclusões dos últimos séculos
numa doutrina que propagasse os ideais de Cristo e trouxesse alívio
para os corações dos homens. Imbuído desse espírito (sem
trocadilhos), Kardec começou a trabalhar na síntese que gerou o
Espiritismo.
Em 1857, Kardec trouxe à luz O Livro dos Espíritos. É
a partir dessa obra que se pode falar em Espiritismo (a palavra, aliás,
é um neologismo cunhado pelo próprio Kardec para diferenciar a nova
religião dos inúmeros espiritualismos que estavam na moda). E –
outro elemento de diferenciação com as demais religiões – tinha a
retórica livremente inspirada no vocabulário e no método expositivo
dos livros de ciências naturais do século XIX. Uma linguagem sintética,
facilmente compreensível e nada hermética.
Contudo, a nova religião iria despertar a fúria da
Igreja Católica. Os motivos dão força a um debate que, mesmo hoje,
mais de cem anos depois, ainda inflamam adeptos e estudiosos acadêmicos.
Primeiro motivo: no Espiritismo, Cristo não é o filho de Deus – mas
um espírito mais evoluído. Segundo motivo: a Redenção no Catolicismo
é um evento único, total, universal. No Espiritismo ela se dá em
conta-gotas, a cada passo da evolução de cada um dos espíritos.
Só essas duas diferenças já serviriam para provocar uma cisão. Sem
falar na possibilidade de reencarnação, que não existe no
Catolicismo. Mas – pelo menos entre os espíritas – a identificação
com a fé cristã é total. "A fé espírita é baseada nos
ensinamentos de Jesus: logo, é uma religião cristã", afirma
Durval Ciamponi, presidente da Federação Espírita do Estado de São
Paulo.
"O Espiritismo não é uma religião cristã", diz Antônio Flávio
Pierucci, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São
Paulo (USP) e um dos maiores estudiosos da religiosidade brasileira.
"Os espíritas utilizam o Cristianismo para se legitimarem."
Pierucci vai mais longe. Afirma que esse vínculo com a Igreja Católica
pregado pelos espíritas serviu, durante décadas, para lutar contra a
discriminação: "O Espiritismo faz força para não parecer uma
religião exótica".
Esse alinhamento com os evangelhos pode ser explicado
pelas perseguições sofridas pelos adeptos do Espiritismo. Já em 1861,
o bispo de Barcelona, na Espanha, promoveu um auto-de-fé com livros espíritas.
Uma enorme fogueira queimou os livros de Kardec. Junto com a Igreja,
nessa mesma época cientistas e políticos europeus (influenciados pela
Igreja ou não encontrando na doutrina o rigor que ela declarava ter)
iniciaram uma poderosa campanha de difamação do Espiritismo.
No final das contas, grande parte dos estudiosos acadêmicos do
Espiritismo considera a religião uma espécie de neocristianismo.
"Jesus Cristo é um elemento comum entre as duas religiões. As
diferenças não apagam as semelhanças", afirma Maria Laura.
E assim, identificado com o Cristianismo, o novo credo se alastrou pelo
mundo. Chegando ao Brasil em 1860, o Espiritismo logo foi adotado por
intelectuais, militares e funcionários públicos. Porém, o rastro de
perseguição também chegou até aqui. O Código Penal de 1890
classificava o Espiritismo como crime. Apesar disso, a religião se
fortalecia e expunha à população um dos seus lados mais meritórios:
a caridade. E o ato de fazer bem às comunidades próximas dos centros
espíritas se tornou uma marca tão forte no Espiritismo brasileiro que
ajudou a transformar a religião e a lhe emprestar uma face tipicamente
verde-amarela. É isso, em parte, que ajuda a explicar o salto
quantitativo do Espiritismo no Brasil.
Há até uma cidade fundada exclusivamente por espíritas. Palmelo, a
200 quilômetros de Goiânia, GO, surgiu a partir da criação de um
centro espírita, em 1929. Recebendo cerca de 50 000 visitantes todos os
anos, que ali procuram consolo para inúmeras aflições físicas e
espirituais, Palmelo (que foi emancipada em 1953) não permite a venda
de bebidas alcoólicas e, em suas ruas, placas apresentam "pílulas"
de ensinamentos espíritas extraídos dos livros de Allan Kardec.
A cidade goiana, porém, é um fato isolado. No resto do Brasil, os
agrupamentos espíritas distinguem-se pela sobriedade e pelos baixos níveis
de proselitismo. E mesmo com sua enorme difusão em terras brasileiras,
a religião continua sendo, até hoje, uma fé professada pela classe média
urbana (que, por receio de discriminação, não costuma ostentar traço
algum da sua opção religiosa). "O Espiritismo difundiu-se entre
profissionais liberais e pessoas da classe média dos centros urbanos
porque exige leitura e instrução", afirma Marcelo Camurça,
professor de Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), em Minas Gerais.
Quem já freqüentou um centro espírita sabe disso. A atmosfera lembra
ligeiramente um congresso universitário. Um auditório atento, muitas
vezes municiado de algum dos livros de Kardec, escuta as leituras e os
comentários feitos por um ou mais "palestrantes" reunidos em
uma mesa. Tudo de um modo sóbrio e nada espetaculoso. "A
sobriedade é uma das maiores fontes de identificação do Espiritismo
entre a classe média", afirma Maria Laura Viveiros de Castro
Cavalcanti.
A disciplina é outra exigência não assumidamente
declarada. Vai daí o grande número de militares que, desde os primórdios,
mergulhou nos ensinamentos de Kardec. Um dos mais famosos espíritas
fardados do Brasil é o general Alberto Cardoso, ministro-chefe do
Gabinete de Segurança Institucional e líder de um centro espírita na
capital federal.
Por causa de suas origens declaradamente científicas e pelo discurso
que prega a racionalidade, o Espiritismo vem atraindo médicos – céticos
diplomados e profissionais – nas últimas décadas. Fundada em 1968, a
Associação dos Médicos Espíritas do Brasil (Amebrasil) reúne cerca
de 1 200 médicos que estudam e tentam transpor para a prática diária
da Medicina alguns dos princípios do Espiritismo.
É uma questão polêmica. O Espiritismo prega o tratamento homeopático
e são célebres na trajetória brasileira da religião os casos de médiuns
(como o mineiro José Arigó, que incorporava um suposto doutor Fritz e,
inspirado por ele, fazia escatológicas cirurgias em milhares de pessoas
entre os anos 50 e 70) que reúnem multidões de desvalidos em operações
de fundo de quintal. Está-se falando de dois elementos que configuram
prática ilegal da Medicina: receitar remédios e operar doentes sem
licença para isso.
No entanto, esses aspectos não são levados em conta pelos médicos espíritas.
"Sempre usei a alopatia e o próprio Chico Xavier sempre se operou
pela Medicina tradicional", afirma Marlene Rossi Severino Nobre, médica
aposentada pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São
Paulo e presidente da Amebrasil. Marlene – que trabalhou com Chico em
Uberaba no início da década de 60 e com ele chegou a psicografar
algumas obras – não divisa conflito algum entre Medicina e
Espiritismo. "O médico espírita leva aos seus pacientes os ideais
de caridade da doutrina Espírita", diz. "A Medicina é muito
reducionista", afirma. Para ela, a única explicação para a vida
biológica, para o surgimento das células e para a evolução do Homem
é a ação de forças superiores, ainda pouco compreendidas pela
humanidade.
Nos próximos anos, os médicos da Amebrasil pretendem intensificar uma
série de experimentos para comprovar eventos como campo magnético e
experiências de quase-morte, até hoje inexplicados pela ciência
tradicional. Sem contar com aval universitário algum, nem com qualquer
tipo de estímulo de órgãos tradicionais de fomento à pesquisa como
Capes e CNPq, a Amebrasil equilibra-se numa corda-bamba entre ciência e
fé. É uma polêmica que promete esquentar os meios médicos e espíritas
brasileiros num futuro próximo.
Mas um comportamento sóbrio, a prática da caridade e a adesão
crescente de setores da Medicina não explicam totalmente o ibope do
Espiritismo no Brasil. A fé espírita germinou aqui mais do que em
qualquer outro lugar porque encontrou um terreno fértil para grande
parte de seus princípios. Uma mistura muito brasileira de crenças católicas
populares herdadas de Portugal, adoração aos mortos e religiosidades
indígena e negra ajudou a alastrar o alcance da fé (leia mais).
E foi no Brasil que surgiu o maior médium desde Allan Kardec. Francisco
Cândido Xavier (1910-2002), franzino e modesto, com uma saúde
combalida desde sempre, encarnou como ninguém os ideais de comedimento,
benevolência e austeridade do Espiritismo. Sua adesão à fé obedeceu
aos insondáveis princípios de uma predestinação.
Órfão ainda na infância, Chico teria começado a se comunicar e a se
aconselhar com o espírito da mãe. Na escola, durante as comemorações
do Centenário da Independência, em 1922, a turma de Chico deveria
escrever uma redação sobre o acontecimento nacional. Durante a aula, o
menino teria se perturbado com a presença de um homem ao seu lado,
ditando-lhe o texto – que obteve menção honrosa.
Com 18 anos e buscando uma explicação para os fenômenos que o teriam
acompanhado desde a infância, Chico já é um freqüentador de centros
espíritas. E logo fica bem claro para todos que aquele rapaz de saúde
frágil é um médium destinado a limpar as últimas nódoas de
marginalidade que ainda recobrem o Espiritismo no Brasil. É a partir
desse momento que ele teria entrado em contato com as primeiras
manifestações do espírito Emmanuel – o que lhe renderia o posto de
"co-autor" de nada menos que cerca de 400 títulos por ele
psicografados sob inspiração do espírito e que venderam 25 milhões
de livros em todo o mundo.
Com Emmanuel (que teria sido o senador romano Publius, depois um escravo
cristão dilacerado por leões e, finalmente, o padre Manuel da Nóbrega,
já em terras brasileiras), Chico realizou vários avanços na doutrina
formada por Kardec, alastrando a sabedoria espírita para outros campos,
como ciências sociais e economia. Imbuído do espírito de caridade,
Chico destinou toda a renda a entidades sociais e aposentou-se com um
modesto salário de funcionário público.
Quando morreu, em 30 de junho deste ano, deixou uma multidão de
seguidores e leitores em todos os cantos do planeta e uma lição de
humildade e amor ao próximo que transcende os limites do Espiritismo.
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O QUE PREGA
Para entender o Espiritismo, é preciso saber que a base de toda a
religião está exposta nas cinco obras seminais de Allan Kardec. Desde
esse nascimento na França oitocentista, o Espiritismo reivindica não
apenas um status de religião, mas também de ciência e de filosofia.
Ou seja: é uma fé e uma doutrina cujas manifestações – contato com
espíritos, regressões a vidas passadas e textos psicografados –
poderiam ser comprovadas através do método dedutivo herdado da ciência.
Segundo o Espiritismo, todo homem é um médium, um
canal de comunicação entre os vivos e os espíritos. Por isso, não
existe um papa espírita nem qualquer tipo de hierarquia dentro da
religião (a ausência de paramentos e cerimoniais também é uma
característica "racionalista" dentro da fé espírita). Nos
centros espíritas, por exemplo, a função de liderança geralmente está
reservada ao médium mais experiente ou ao próprio fundador do centro.
A simplicidade pregada pelo Espiritismo também estaria explicitada pela
inexistência de grandes rituais de passagem como casamentos, batismos e
enterros. Isso porque os espíritas acreditam ser desnecessário o vínculo
com Deus – "a inteligência suprema", como prega Allan
Kardec. Céu, inferno e diabo virtualmente não existem no horizonte espírita.
Isso porque o Bem e o Mal podem estar dentro de cada um, sem que haja a
necessidade de uma localização para cada um.
Os médiuns comunicam-se com os espíritos das mais diversas maneiras.
Houve um tempo em que a comunicação se dava por meio de batidinhas na
parede, mas hoje, na maioria dos centros espíritas, as principais
formas de comunicação costumam ser a psicografia e a incorporação.
Em sessões chamadas de "desobsessão" (quando um espírito
cheio de más intenções incomoda uma pessoa), os médiuns incorporam
essas entidades chamadas "obsessoras" e procuram convencê-las
da falta de sentido em assombrar a vida dos "encarnados".
O Espiritismo acredita que os espíritos são criados numa espécie de
"ponto zero", onde todos são imperfeitos e devem chegar –
ao longo de várias e sucessivas encarnações – à perfeição. A
cada encarnação o espírito aprende um pouco mais sobre bondade, tolerância
e caridade. Claro que nem todos são "santos": o livre-arbítrio
(a capacidade de cada um escolher o seu destino) é um elemento
importante da religião. Por isso, haveria espíritos deliberadamente
"maléficos" fadados a intermináveis (e sofridas) encarnações
na Terra. Os espíritos só se tornarão mais iluminados e superiores na
medida em que forem eliminando seus maus hábitos, os aspectos ruins do
seu caráter e passarem a praticar o bem.
Um fato curioso é a crença dos espíritas na vida em outros planetas.
"Os espíritos são intergalácticos", afirma Durval Ciamponi,
da Federação Espírita de São Paulo. Isso não significa,
necessariamente, a existência de ETs pilotando discos voadores pelo
espaço sideral: mas formas de vida – inclusive minerais – que são
habitadas por espíritos em diferentes estágios de evolução em
lugares tão inóspitos quanto Saturno ou Plutão. Essa crença numa força
divina interplanetária fez do Espiritismo, desde a década de 1960, um
dos elementos que ajudaram a compor as religiões new age. "O
Espiritismo antecipa toda essa onda de religiões e doutrinas da Nova
Era", afirma Marcelo Camurça, da UFJF.
Kardec fatiou o homem em três porções básicas: espírito ("essência
imortal"), corpo ("invólucro material") e perispírito
("corpo" que reveste o espírito). Quando uma pessoa morre,
sua alma e seu perispírito libertam-se do corpo e passam a seguir um
trajeto rumo à reencarnação. Um espírito irá encarnar tantas vezes
quantas forem necessárias para atingir a perfeição. O mundo material,
portanto, seria uma espécie de universidade onde os espíritos aprendem
com as provações.
É nesse mundo que nos coube viver que cada ação seria avaliada como
mais um aspecto da evolução pessoal. O velho adágio "aqui se
faz, aqui se paga" recebe, no Espiritismo, uma validade bastante
concreta. E são essas "dívidas"que explicariam, por exemplo,
o nascimento de uma criança sem cérebro ou a paralisia de um adulto:
tragédias pessoais que, do ponto de vista da doutrina, seriam necessárias
para que o espírito refletisse e compreendesse que todos os reveses
acontecem para seu benefício durante a evolução.
Temas incandescentes como aborto, eutanásia e suicídio são condenados
– como na maior parte das religiões –, mas sua possibilidade existe
porque cada um conta com o livre-arbítrio.
O percurso evolutivo de cada um explica as diferenças sociais, de saúde
ou de capacidade intelectual. As benesses ou tragédias de cada um fazem
parte do carma – que pode ser revertido graças a ações meritórias.
Pois fazer o bem para os outros, no Espiritismo, é fazer o bem para si
mesmo. Por isso a caridade é um dos elementos mais importantes da
religião: ela serve para amenizar o sofrimento alheio e "conta
pontos" na evolução de quem a pratica.
"Fora da caridade não há salvação", prega a mais famosa
frase de Allan Kardec. Pode-se discordar ou mesmo refutar
desdenhosamente os princípios do Espiritismo. Porém, é virtualmente
impossível fazer troça ou ignorar o legado de respeito ao próximo
difundido por essa religião. Um princípio que, tranqüilamente, pode
ser seguido por qualquer um que habite o nosso planeta. Acredite em Deus
ou não.
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ABENÇOADO POR DEUS
Paradoxos do país tropical: a maior nação católica do mundo (cerca
de 125 milhões de praticantes, segundo o censo do IBGE) ofereceu, desde
os primórdios da colonização, um terreno fértil para a mistura de
credos e favoreceu o surgimento de modalidades de fé genuinamente
brasileiras. Religiões tão diversas quanto Candomblé, Catimbó,
Pajelança, Tambor de Mina, Umbanda e a face nacional do Espiritismo
formaram-se a partir de elementos comuns.
Uma das maiores explicações para o sincretismo brasileiro estaria no
Catolicismo legado pelos portugueses. A fé católica que veio de além-mar
é muito mais "íntima" e "pessoal" do que a de
outros países cristãos da Europa.
Em Portugal e, em seguida, no Brasil, a relação dos homens com Deus
geralmente é filtrada pelo santo da predileção de cada um. Antes de
recorrer a Deus, portugueses e brasileiros vão bater na porta do santo
mais próximo.
A profusão de anjos da guarda, de rezas particulares e de toda uma
sorte de benzeduras favoreceu a mescla de elementos cristãos com outros
originários dos rituais indígenas e africanos.
Outro elemento do Catolicismo popular que iria ser combinado com práticas
religiosas nativas é a adoração aos mortos. Procissões populares e
mesmo o hábito de "conversar" ao pé do túmulo de um ente
querido favoreceram a penetração de credos em que o contato com o
mundo dos mortos é um dos elementos básicos - como o Espiritismo.
Assim como, no campo racial, a mestiçagem serviu para anestesiar certos
conflitos, a Igreja portuguesa soube incorporar – ou, no mínimo
estrategicamente, não quis condenar – algumas manifestações
religiosas inspiradas no Catolicismo que surgiram ao longo da história
brasileira. Festas populares repletas de elementos de outros credos,
divindades africanas que poderiam ser "permutadas" por
equivalentes na fé cristã (Oxalá Jovem = Menino Jesus) e o saudável
livre-trânsito, tipicamente nacional, entre mundos religiosos paralelos
(milhões de brasileiros comparecem às quartas no terreiro e aos
domingos na missa), forjaram a democracia religiosa nacional.
"O Catolicismo no Brasil sempre favoreceu a mistura", diz a médica
e pesquisadora Eneida D. Gaspar, autora do Guia de Religiões Populares
do Brasil. Eneida afirma que foi graças a essa postura mais flexível
da Igreja que religiões como Umbanda – uma mistura de elementos cristãos,
espíritas e africanos – ganharam forma no início do século XX.
Mas nem tudo são flores na trajetória das religiões
brasileiras. A maior parte delas foi condenada no início justamente
porque apresentava forte influência africana. Terreiros de Candomblé
eram sistematicamente fechados pela polícia ainda nos anos 50. A forma
encontrada para o fim da discriminação diz muito sobre a alma
brasileira: quando brancos de classe média, com conhecimento do
Espiritismo, ingressaram nos terreiros, a nuvem de preconceito
rapidamente se dissipou.
A Umbanda é um caso exemplar dessas transformações da religiosidade
brasileira. Mesclando os principais ensinamentos do Espiritismo com o
ritualismo e a força teatral do Candomblé, a Umbanda fez com que o
preconceito contra práticas africanas – no idioma da discriminação,
todas as religiões negras são "macumba" – fosse diminuindo
com o passar dos anos graças à freqüência de um público de maior
poder aquisitivo.
Paradoxalmente, no momento em que a Igreja parou de discriminar outras
crenças, incorporando elementos africanos e indígenas, as igrejas
neopentecostais – ou evangélicas – desestimulam seus fiéis à prática
do sincretismo. Associam-no à prática de satanismo
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PEQUENO VOCABULÁRIO ESPÍRITA
Nas cinco obras que deixou para a posteridade, Allan Kardec estabeleceu
os princípios básicos da doutrina espírita. Uma curiosa mistura de
conceitos religiosos com alguma terminologia científica do século XIX.
Conheça alguns dos principais termos do Espiritismo:
Universo — Criação de Deus. Todos os seres racionais e irracionais,
animados e inanimados fazem parte dele. Comporta vários mundos
habitados com seres em diferentes graus de evolução.
Deus — É considerado uma forma de inteligência suprema. Eterno, imutável,
imaterial, justo, bom e onipotente.
Cristo — Ao contrário do que pregam a maior parte das religiões
cristãs, Jesus Cristo não é o filho de Deus, mas um espírito mais
evoluído. E um modelo para toda a humanidade.
Espíritos — Seres inteligentes da criação. São criados ignorantes
e evoluem ao longo de várias vidas até alcançarem a perfeição.
Dividem-se em "espíritos puros" (perfeição máxima),
"bons espíritos" (em que predomina o desejo do bem) e
"espíritos imperfeitos" (caracterizados pelo desejo do Mal).
Homem — Espírito encarnado em um corpo material.
Reencarnação — O espírito atravessa várias existências como
encarnado. Cada uma delas é um estágio evolutivo rumo à perfeição.
Desencarnar — A morte (desencarnação) é encarada como apenas mais
um estágio da vida espiritual — considerada a verdadeira vida. Não
é compreendida como uma cisão definitiva entre as pessoas que se amam,
mas apenas uma separação temporária no mundo físico.
Livre-arbítrio — O homem tem várias escolhas na vida, mas responde
por todas as suas ações.
Prece — A prece torna melhor o homem e é um ato de adoração a Deus.