Quando começamos a crer
Por: Ariel
Kostman
Revista Veja Edição 1834 . 24 de dezembro de
A constatação é científica. A fé trouxe a humanidade até os dias
atuais. Na caminhada evolutiva do homem, foram sendo extintas as populações
que não desenvolveram o que o lendário biólogo de Harvard Ernst Mayr
chamou de "a
máquina de acreditar". Mayr lembra que a faculdade humana de
acreditar em um ser superior nasceu durante a era glacial, entre 80 000
e 45 000 anos atrás. Antes desse período não existem registros fósseis
que indiquem algum apego humano ao sobrenatural.
Quando as geleiras cederam, mostram as escavações arqueológicas, a
humanidade passou a enterrar seus mortos e enfeitar as tumbas com
flores. As paredes das cavernas começaram a ser pintadas de uma maneira
tal que marcam não apenas uma expressão de prazer estético mas de
elevação espiritual. Elas são os primeiros altares da história
humana. Uma delas em particular, a de Lascaux, na França, tem pinturas
de cores e formas tão intensas que é descrita como a Capela Sistina da
Idade da Pedra, em uma comparação com a nave da igreja do Vaticano
pintada pelo gênio renascentista Michelangelo (1475-1564) por encomenda
do papa Julio II. "Acreditar em Deus não é apenas a única mas é
também a maior diferença a separar os homens dos animais",
escreveu Charles Darwin em seu livro A Descendência do Homem, de 1871.
Darwin escreveu também que o "dom de acreditar" não é
instintivo no homem. Em sua formulação sobre esse tema, ele disse:
"A fé surgiu como conseqüência dos consideráveis avanços da
capacidade racional do homem. Ela nasceu da imensa capacidade humana de
exercer sua curiosidade, sua imaginação e sua facilidade em se
encantar". Estudos recentes feitos pela Universidade Carnegie
Mellon, nos Estados Unidos, tentaram encontrar nas interligações do cérebro
humano o "centro nervoso da fé". Como previra Darwin, essa
região não pode ser geograficamente localizada no cérebro. Do ponto
de vista puramente biológico, a fé é o resultado da interconexão de
diversas regiões cerebrais, exatamente como ocorre com as demais funções
cognitivas superiores, ou seja, o pensamento complexo ou a capacidade de
apreciar uma obra de arte. Os especialistas em evolução humana apontam
o súbito surgimento da fé na era glacial.
Para espanto dos estudiosos, ao contrário de algumas conquistas
humanas, como o uso de roupas e a agricultura, as manifestações de
respeito a um ser superior não apresentam evolução lenta. A fé
simplesmente surge na história humana de um momento para outro, de
forma abrupta. "Não foi um processo, mas um evento único. Não se
nota a evolução gradual dessas capacidades. Elas simplesmente
eclodem", diz Walter Neves, antropólogo
evolucionista da Universidade de São Paulo (USP).
Graças ao avanço das tecnologias de datação de fósseis, as provas
das manifestações religiosas dos nossos ancestrais - túmulos
ornamentados, esculturas e pinturas rupestres - são abundantes. O
ritual funerário, que existe desde a aurora da humanidade, é praticado
em quase todo o mundo há pelo menos 40 000 anos. Com os corpos, eram
sepultados ornamentos, ferramentas, armas e comida. Por isso, imagina-se
que nossos antepassados acreditavam que seus mortos ainda necessitavam
dessas coisas para efetuar sua travessia espiritual. Esses rituais
demonstram também que havia uma recusa por parte do homem de aceitar a
morte como o fim definitivo da vida. Apesar da evidência da decomposição
física causada pela morte, a crença de que alguma coisa da pessoa
sobrevive após o fim da vida já estava presente. "Funerais em que
os mortos eram sepultados com flores ou amuletos são indícios claros
de manifestações religiosas, talvez as mais antigas na história da
humanidade", diz Walter Burkert, historiador, da Universidade de
Zurique, na Suíça, autor do livro A Criação do Sagrado. O
refinamento dos funerais ancestrais pode ser visto no Museu Histórico
de Vladimir, na Rússia. Ali são exibidas réplicas dos esqueletos de
um menino e uma menina, entre 13 e 14 anos de idade, encontrados em um sítio
arqueológico da Rússia em 1969. Sepultadas há 25 000 anos, cada uma das
crianças tinha a sua volta cerca de 3 000 contas de marfim presas à
roupa que usavam. Ao redor, estatuetas de animais e discos esculpidos,
indicadores, talvez, de um culto ao Sol e à Lua. No túmulo também
foram encontradas lanças e adagas, que, na interpretação dos
especialistas, teriam sido colocadas ali por parentes que acreditavam
que elas seriam úteis aos jovens em suas lutas em outras vidas.
Tudo o que se leu acima são interpretações científicas do mais
espetacular fenômeno da humanização, a necessidade de acreditar. Como
mostrou Darwin, a fé não está gravada nos nossos genes, mas nasceu,
como o fogo e a escrita, do espírito investigativo humano. Desde então
se tornou companheira inseparável da humanidade no processo evolutivo.
Foi um achado. "A mente humana evoluiu para acreditar nos deuses. A
aceitação do sobrenatural significou uma grande vantagem por toda a pré-história,
quando o cérebro estava evoluindo", afirmou o biólogo Edward O.
Wilson, da Universidade Harvard. Com a crescente organização e a
complexidade das sociedades humanas, a fé tornou-se um poderoso fator
de união. Acreditar no mesmo deus - ou nos mesmos deuses - foi a base
do surgimento das primeiras civilizações. Ser estrangeiro não
significava obedecer a um rei diferente ou habitar regiões geográficas
distintas, mas, antes de tudo, venerar outros deuses. Foi nesse período
que a fé, de um fenômeno humano, se tornou um instrumento de coesão
social, de dominação interna e de conquistas
externas. "O sistema religioso apresentou uma grande vantagem para
os governantes. Se a regra foi estabelecida por uma instância maior,
divina, as pessoas não têm o direito de mudá-la", diz Frank
Usarski, especialista em ciências da religião, professor da PUC de São
Paulo. Até hoje muitas idéias, religiosas ou não, são defendidas
como se tivessem um núcleo sagrado.