Por: Vera Lúcia Vassouras
Aos 17 de fevereiro de 1600, após uma tortuosa e longa prisão, Giordano Bruno é levado à fogueira pelo Santo Oficio, sob as acusações de "apóstata", "herético impertinente, pertinaz e obstinado". A acusação foi sancionada pelo Papa Clemente VIII e posteriormente renovada por Leão XIII, declarando sua filosofia como um "materialismo degenerado". A época ficou conhecida como o período das reformas político-religiosas: o Renascimento. O filósofo foi condenado pelas três correntes: catolicismo, calvinismo o luteranismo (protestantismo).
Nas pesquisas sobre a vida e obra de Giordano Bruno, há de se destacar a cumplicidade que se manifestou entre os estudiosos e a unanimidade quanto às falsas interpretações de sua obra, tentando diminuir a dimensão científica e importância ética que engendrou. Notória a atitude da Igreja e das Universidades nas quais lecionou, dentre elas, a Universidade de Oxford. Seu nome foi retirado dos registros e, durante anos, negavam tivesse ele existido. Atualmente, inúmeros estudos sobre as obras tentam aprisioná-lo em escolas místicas ou desconsiderar suas pesquisas e teorias que influenciaram a ciência astronômica, assim como toda a filosofia moderna.
Desde o século II, a filosofia permanecia mergulhada no território imóvel da fé, a teologia católica. A terra permanecia como o centro do Universo imóvel e finito. Doutrinas filosófico-teológicas, declaravam a terra como o centro do Universo. Giordano Bruno foi um dos precursores da Teoria do Infinito e, em conseqüência, contrariou os interesses políticos e religiosos estabelecidos há séculos como verdades absolutas.
O desconhecimento dos estudos filosóficos de Giordano Bruno faz parte dos estratagemas seculares e obscurantistas que têm por meta a manutenção da ignorância no que se refere à ciência e à filosofia. O resultado é facilmente constatado diante dos inúmeros conflitos que, cinco séculos após o assassinato do filósofo, a humanidade embrutecida insiste em alimentar. A filosofia, que na época de Giordano não olvidou das ciências e com ela sempre manteve o diálogo na busca das verdades e da sabedoria, ao assumir a sociologia política como seu campo de pesquisa, virou as costas às ciências, aprisionando-se num mero exercício de linguagem. Linguagem que se fala a si mesma. Ora, as ciências são o resultado do exercício da racionalidade humana, portanto, abrem as portas à indagações que proporcionam ao homem a compreensão do planeta, do universo e dele, homem, microcosmo, conduzindo-o a assumir sua porção de responsabilidade diante da problemática humana.
Giordano Bruno foi acusado por manter contato com "países heréticos". Ora, não fossem filósofos e cientistas como Averróis e Avicena, dentre outros filósofos árabes, Aristóteles, Platão e outros pensadores antigos não seriam jamais conhecidos na Europa Medieval. São Tomás de Aquino foi um dos maiores estudiosos da produção intelectual árabe e não consta que tenha sido molestado pelo clero. Do mesmo modo, Ramón Llull estabeleceu, com a ajuda das escolas orientais, o que se denominou Arte Combinatória, quiçá origem das teorias computacionais da atualidade. O conhecimento engendrado por Raimundo Lúlio, como é chamado, assim como Giordano Bruno que os desenvolveu, foram arrestados por seitas, seus estudos, eivados de ética e beleza, são pouco conhecidos. Procuram dar-lhes um caráter de obscuridade e segredo que ambos jamais poderiam suspeitar.
Giordano Bruno, ao contrário do que afirmam alguns de seus críticos, procurou disseminar a tolerância, a concórdia, elegendo a liberdade de pensamento como a única estância a que o homem pode e deve submeter-se. Nesse sentido, reproduz o espírito do Alcorão quando afirma que a inteligência humana é infinita e, assim, não pode aceitar a submissão a verdades absolutas, por ser incoerente com a natureza humana. .
Pouco importa que Giordano Bruno tenha recebido o hábito dominicano aos 17 anos. Essa mesma Ordem o rejeitou, excluindo qualquer referência a seu nome dentre os frades como forma de castigá-lo eternamente por conta de sua rebeldia.
Ora, em um período histórico no qual os Monarcas disputavam o mandato divino com o Papa, o conceito de Deus afastava-se cada vez mais das idéias metafísicas tradicionais de divindade presentes em todas as civilizações, para assumir um trono fictício, como uma entidade abstrata, jurisdicional, internacional e planetária. Encarnação e catolicidade. Fundamentadas no lastro doutrinário de seus favoritos, Igrejas e Monarcas transformaram a humanidade em uma grande empresa, a qual deus confiou à santidade católica atuando no tempo e espaço, infalíveis e santificadas, sobre tudo e contra todos. Nesse sentido, arrogam-se ao direito de intervenção universal em todos os campos das atividades humanas, com um sistema administrativo hierárquico e hierático, presentes em todos os territórios da terra, acima de quaisquer jurisdições terrestres; justificando na hereditariedade do sangue e na reencarnação, a vitalidade contemporânea do sectarismo internacional da fé.
Será justo conceber uma breve analogia entre o sistema jurisdicional universalista de intervenção da Igreja, cujo Estado Eclesiástico sobreviveu a todas as chamadas revoluções populares, em especial, na França liberal, com os direitos de intervenção e jurisdição dos atuais Organismos Internacionais, em nome de uma supremacia política que se manifesta por meio de armas nucleares e bases militares, subjugando, pela força física, química, biológica e corruptiva, governos, governantes e governados.
Giordano Bruno foi capaz de detectar a natureza irracional dos conflitos teológicos-políticos-filosóficos, clamando à razão, o humano, por isso, foi queimado vivo.
A moléstia psicológica da humanidade, caracterizada pela insistência em impedir o conhecimento de quaisquer filosofias que lutem por uma consciência objetiva no que se refere aos destinos da humanidade, ao que sugere, está longe de ser curada. Quanto mais ignoram as ciências, maior sofrimento é cominado à humanidade. Ignorância, origens de guerras seculares e incompreensões anacrônicas. Há de se indagar os motivos pelos quais no mundo contemporâneo, no qual homens são substituídos por máquinas, a música por ruídos eletrônicos, a arte pela obscenidade vulgar, a língua pelas fórmulas; a bêsta humana, afirmando-se racional, seja incapaz de dirigir-se aos céus e refletir como os antigos povos, sobre os destinos da humanidade que estamos a fomentar.
Organizar-se em corporações herméticas é apenas abdicar da liberdade de pensamento, ação e criação. Entregar-se de corpo e alma a fatasmagorias ritualísticas, deturpadas milhares de vezes por aqueles que pensam possuir o conhecimento da humanidade, é insanidade. Inexiste capacidade de influenciar nos movimentos dos astros, tampouco no nascimento e morte das estrelas. A liberdade do homem consiste em procurar em seu território interior as frestas de luz que a história da humanidade compôs, jamais expor-se por ócio à autoridades abstratas. Ininteligíveis, por contrariar a natureza humana e ocultas, por representar a covardia. O que é o homem individual diante do universo? O que justifica, então, entregar-se a qualquer autoridade?
Quase cinco séculos se passaram e o homem individual ou coletivo ainda permanece submetido a poderes hierárquicos, abstratos, extra-terrenos, cimentados na fé reencarnacionista da matéria e na qualidade do sangue, sob a égide de mandatários ocultos que atuam como mandrakes das histórias em quadrinhos. É traumática a servidão humana e inaceitável a preguiça em assumir os próprios passos, sem interventores ou feitores, responsabilizando-se por suas ações e omissões perante as próprias consciências.
Giordano Bruno é precursor da astronomia. Afirmava a unidade do universo, portanto, porta-voz da esperança no ultrapassamento das diferenças fictícias entre os homens. Giordano Bruno é apenas um dentre os homens que, pelo uso do intelecto, ousou transpor o mundo das bêstas.
Ao leitor, que desconhece a obra de Giordano Bruno, transcreve-se a melhor tradução encontrada da Epístola Preambular do livro "Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos" para seu deleite, com votos de que possa seduzí-lo ao conhecimento, adicionando esforços na salvação do planeta. Com a palavra, aquele que jamais morrerá:
"Se eu, ilustríssimo Cavaleiro, manejasse o arado, apascentasse um rebanho, cultivasse uma horta, remendasse um fato, ninguém faria caso de mim, raros me observariam, poucos me censurariam, e facilmente poderia agradar a todos. Mas, por eu ser delineador do campo da natureza, atento ao alimento da alma, ansioso da cultura do espírito e estudioso da actividade do intelecto, eis que me ameaça quem se sente visado, me assalta quem se vê observado, me morde quem é atingido, me devora quem se sente descoberto. E não é só um, não são poucos, são muitos, são quase todos. Se quiserdes saber porque isto acontece, digo-vos que a razão é que tudo me desagrada, que detesto o vulgo, a multidão não me contenta, e só uma coisa me fascina: aquela, em virtude da qual me sinto livre em sujeição, contente em pena, rico na indigência e vivo na morte; em virtude da qual não invejo aqueles que são servos na liberdade, que sentem pena no prazer, são pobres na riqueza e mortos em vida, pois que têm no próprio corpo a cadeia que os acorrenta, no espírito o inferno que os oprime, na alma o error que os adoenta, na mente o letargo que os mata, não havendo magnanimidade que os redima, nem longanimidade que os eleve, nem esplendor que os abrilhante, nem ciência que os avive. Daí, sucede que não arredo o pé do árduo caminho, por cansado; nem retiro as mãos da obra que se me apresenta, por indolente; nem qual desesperado, viro as costas ao inimigo que se me opõe, nem como deslumbrado, desvio os olhos do divino objeto: no entanto, sinto-me geralmente reputado a um sofista, que mais procura parecer subtil do que ser verídico; um ambicioso, que mais se esforça por suscitar nova e falsa seita do que por consolidar a antiga e verdadeira; um trapaceiro que procura o resplendor da glória impingindo as trevas dos erros; um espírito inquieto que subverte os edifícios da boa disciplina. Oxalá, Senhor, que os santos numes afastem de mim todos aqueles que injustamente me odeiam; oxalá que me seja sempre propício o meu Deus; oxalá que me sejam favoráveis todos os governantes do nosso mundo; oxalá que os astros me tratem tal como à semente, de maneira que apareça no mundo algum fruto útil e glorioso do meu labor, acordando o espírito e abrindo o sentimento àqueles que não têm luz e intelecto; pois, em verdade, eu não me entrego a fantasias, e se erro, julgo não errar intencionalmente; falando e escrevendo, não disputo por amor da vitória em si mesma (pois que todas as reputações e vitórias considero inimigas de Deus, abjectas e sem sombra de honra, se não assentarem na verdade), mas por amor da verdadeira sapiência e fervor da verdadeira especulação me afadigo, me apoquento, me atormento. É isto que irão comprovar os argumentos de demonstração, baseados em raciocínios válidos que procedem de um juízo recto, informado por imagens não falsas, que, como verdadeiras embaixadoras, àqueles que as procuram, patentes àqueles que as miram, claras para todo aquele que as aprende, certas para todo aquele que as compreende. Apresento-vos agora a minha especulação acerca do infinito, do universo e dos mundos inumeráveis."
Ao ouvir sua sentença de morte, Giordano Bruno, aos 17 de fevereiro de 1600, disse aos seus algozes: "Maiori forsan cum timore sententiam in me fertis, quam ego accipiam", ou seja, Talvez sintam maior temor em sacrificar-me, sentenciando-me, do que eu, em aceitar"
Contra todos os fundamentalismos, para o verdadeiro filósofo, todos os países são sua pátria.