Deus: Culpado ou Inocente?

Jocax, Janeiro /2005.


Fiz uma experiência num fórum de discussão do orkut sobre filosofia que tinha, como um dos objetivos, verificar quais as razões das pessoas terem uma crença tão arraigada em Deus apesar de todas as evidências em contrário. Iniciei com um tópico intitulado “Argumentos anti-Deus” e que, posteriormente, mudei para “Deus: Culpado ou Inocente?”.

Como critério de acusação utilizei o argumento de Hume, que considero, dentre os argumentos antideus que já li, o mais poderoso por expor as contradições de um suposto Deus bom e poderoso com a realidade dos fatos. Posteriormente, em duas mensagens do fórum (*), foi me dito que tal argumento não seria original de Hume, mas remeteria aos primórdios da filosofia e teria sido relatado pela primeira vez por Epícuro.

O tópico do orkut (**) era aberto com a seguinte mensagem de chamada:

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Deus: Culpado ou Inocente? 12/17/2004 2:34 AM

Jocax acusa Deus de CRIME HEDIONDO (com requintes de crueldade) e doloso (com intenção de matar). E apresenta a Prova do crime (abaixo).

Se ninguém conseguir absolve-Lo Ele será condenado a INEXISTÊNCIA.(Pois não pode haver um deus bom e poderoso que permita tal BARBÁRIE)

Eis a prova do crime:

"Católicos fervorosos estavam rezando na igreja, surge um terremoto , e destrói TODA a cidade sobra uma ÚNICA menina de 2 anos de idade que presa nos escombros da igreja , começa a ser DEVORADA VIVA pelos ratos. Depois de muito sofrer ela morreu devorada viva.

Acusação: Onde estava deus bom e todo poderoso que NEM AO MENOS conferiu uma morte rápida à criança inocente?

Se ninguém provar sua inocência até o dia do veredicto final (18/jan) Deus poderá ser condenado à inexistência.

Façam suas defesas!

O Julgamento já começou!

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Eu queria um exemplo que mostrasse claramente que pode ocorrer o mal sem que este tenha se originado do Homem. Isto deixaria mais explícito a ocorrência do mal puro, sem razão de ser, onde o sofrimento pode ocorrer sem intervenção humana. O exemplo eu inventei, o que não significa que seja um exemplo fantasioso e, principalmente, não tenha realmente ocorrido. O tópico foi criado antes do maremoto recentemente ocorrido na Ásia, onde morreram cerca de 40 mil crianças, e eu poderia igualmente tê-lo usado como exemplo.

Deus estava definido como um ser “Bom e todo-poderoso” e qualquer prova que mostrasse que uma ou ambas destas qualificações não se verificassem então não poderia existir um ser “bom e poderoso” e estaria demonstrada sua inexistência.

Assim, eu faria o papel de promotor com a acusação de “Porque Deus não deu ao menos uma morte rápida à criança?”. Eu não estava propondo que Deus devesse salvar a criança ou a própria aldeia, que seriam também argumentos perfeitamente válidos, mas apenas que os internautas explicassem, com suas crenças, as razões dEle permitir tal sofrimento aparentemente inútil. Os internautas eram convidados a defendê-Lo.

Após mais de trezentas mensagens de argumentações de defesas e contra-argumentações, compilei os principais argumentos da defesa com a contra-argumentação correspondente. São elas:

1- “Os ratos se beneficiam”

Alguns argumentavam que os ratos seriam beneficiados com o ocorrido, pois também precisavam se alimentar. Mas se deus tivesse dado morte rápida à criança o alimento seria o mesmo e a criança não sofreria.

2- “A criança aprende”

Foi o argumento mais utilizado. Aqui, presume-se que a ‘alma' da criança deveria aprender alguma coisa com sua morte horrenda, e se ela morresse de outra forma menos dolorosa seu aprendizado não seria completo. Este tipo de argumento foi utilizado de variadas formas. Mas eu retrucava que para um deus todo-poderoso tudo que a criança devesse aprender com o ocorrido ela poderia igualmente aprender sem o sofrimento. O análogo da alma, no cérebro humano, seria que modificações na estrutura ou conexões cerebrais são criadas a partir da experiência, mas que teoricamente também poderiam ser construídas sem se passar pelo trauma obtendo-se o mesmíssimo aprendizado. Ou seja, a menos que Deus gostasse de vê-la sofrer, tudo que sua alma pudesse aprender com a tragédia poderia ser igualmente aprendido de uma forma não dolorosa e, caso isso não pudesse ser feito então Deus não seria todo-poderoso.

3- “Os outros ou alguém aprende”

Foi um argumento derivado do anterior. Neste caso a sua morte faria com que, não ela própria, mas outras pessoas se beneficiassem aprendendo com sua morte. Neste caso, um bom deus poderia igualmente fazer com que todos que tivessem que aprender alguma coisa com esta morte, também aprendessem sem ter que sacrificar a criança. Isto evitaria o sofrimento com o mesmo benefício que sua morte pudesse causar.

4- “Nosso conceito de bondade não serve a Deus”

Queria-se dizer com isso que o que consideramos um ser “Bom” não serve para Deus que têm uma noção não humana de bondade. Mas, quando qualificamos Deus de “Bom” esta qualificação é feita em linguagem humana para humanos entenderem e não para Deus ou qualquer outra espécie entender. De forma que se Deus não se enquadra no padrão humano de bondade não poderíamos igualmente qualifica-lo de bom. A qualificação de “Bom“ pode ser utilizado para seres que não desejam que haja sofrimento inútil.

5- “Não podemos compreendê-lo”

Se não podemos compreênde-Lo também não podemos dizer que ele seria bom.

6- “Deus não interfere no mundo”

Esta assertiva foi feita várias vezes. Mas sempre antes de responde-la eu ‘alfinetava' perguntando a razão de tantas pessoas rezarem e fazerem promessas a Deus. Pois se Deus não interferisse no mundo então de nada adiantaria as rezas e penitências a Ele. E, para os católicos, a Bíblia esta recheada de relatos mostrando que Deus atuou explicitamente em nosso mundo. Entretanto, independentemente disso tudo, o fato é que se ele poderia ter interferido, e se não o fez, até que uma explicação seja dada, é porque ou não tem poder para faze-lo, ou não é bom. Sua omissão foi malévola e assassina o que o desqualificaria como um ser bom.

7- “Se Deus não existe não se pode conjecturar sobre Ele”

Na verdade pode-se, e isso se chama Método-Hipotético-Dedutivo” muito utilizado pelas ciências e pela matemática:

i-Primeiramente se supõe, por absurdo, que a hipótese que queremos testar seja verdadeira (i.e. Deus bom e poderoso existe)

ii-Depois, faz-se inferências lógicas com esta hipótese e as outras premissas.

iii-Caso se chegue a um absurdo (algo que contrarie os fatos ou as outras premissas)

iv-Então, pode-se concluir que a hipótese inicial era FALSA, (i.e. Deus não existe)

8- “O exemplo não é real”

O exemplo eu inventei, mas eu não poderia afirmar que o fato nunca ocorreu. Mas sempre que utilizavam esta argumentação para negar o mal, eu retrucava que a pessoa poderia então utilizar como fato incriminador as 40 mil crianças que morreram no recente maremoto na Ásia que era algo bem documentado e um fato bem pior do que a morte de uma única criança sendo comida por ratos. Isso sem contar a dor que suas mães sentiram com sua morte, que pode ser um mal ainda maior que a própria morte das crianças.

9- “Deus têm planos secretos”

Este argumento é derivado do argumento cinco que diz que ‘não podemos compreende-lo'. De qualquer modo, se Deus precisa sacrificar barbaramente a criança para fazer com que seus planos dêem certo, então ele não teria poder suficiente para que dessem certo sem o maldoso sacrifício ou então não seria bom.

10- “Se deus criasse a perfeição, criaria a si próprio”

Pretende-se mostrar que Deus precisa criar um mundo imperfeito caso contrário o mundo seria ele próprio. Poderia se argumentar que criar um clone de si próprio seria melhor que criar um mundo imperfeito para, sadicamente, vê-lo sofrer em exemplos do gênero. Contudo saber que o mundo não é perfeito não implica que se deva negar-lhe assistência quando necessário. Desde que, claro, haja poder para isso e não se deseje que o mal aconteça (se seja bom).

11- “A criança iria crescer e tornar-se extremamente Má”

Argumentou-se que se a criança não morresse ela faria coisas mais maléficas do que o mal ocasionado a ela própria. Poderia-se contra argumentar invocando o ‘livre-arbítrio' já que se a criança tem seu destino traçado ela não teria livre-arbítrio para escolher e, neste caso, todos seriam como robôs pré-programados na mente de deus com todos seus destinos já traçados. Neste caso Deus já teria pré-programado tudo até a morte da garota e o resto das maldades que acontecem, aconteceram e acontecerão. Entretanto devemos permanecer na simplicidade e argumentar que o mal não precisa ser pago com o mal. Se a criança fosse ser má nem precisaria deixa-la nascer (para depois ter que matá-la desta maneira?).

12- “A culpa foi dos homens, pois Deus deu-lhes o livre-arbítrio”

Aqui tenta se argumentar que a culpa do ocorrido foi dos homens. Primeiro, mesmo que tivesse sido, isso não absolveria Deus do ocorrido já que não havia mais ninguém vivo que pudesse ajudar a criança e sua omissão assassina teria provocado a morte cruel. Além disso, o povoado da aldeia não tinha capital nem tecnologia para construir casas a prova de terremoto grau oito na escala richter. Sem contar que a própria garota, de apenas dois anos, não teve escolha: Mal sabia falar e foi levada a igreja pelos seus pais. (Os inocentes devem pagar pelos culpados?)

13- “Se Deus tivesse que interferir teria que interferir em tudo”

Argumentou-se também que se Deus tivesse que interferir no sofrimento da criança ele teria, igualmente, que interferir em todos os casos em que o mal fosse ocorrer. A resposta poderia ser: E alguém iria reclamar? Todos não querem paz e tranqüilidade em suas vidas? Outra resposta, uma das que utilizei foi: Por acaso você manda em Deus para dizer o que ele tem ou não tem que fazer? Se a menina precisava de ajuda ele poderia, caso quisesse, tê-la ajudado ou ao menos, conferido-lhe uma morte rápida.

14- “Um mundo sem sofrimento seria sem graça”

Alguém já experimentou um mundo assim para atestar que seria preferível a um mundo com sofrimento? E, neste caso, o paraíso também não seria sem graça? De qualquer modo a criança não deve ter achado nenhuma graça em ser devorada viva pelos ratos e, com certeza, daria qualquer coisa para sair daquela situação. Ou seja, caso a tese do “mundo sem graça” fosse verdadeira Deus poderia dosar as suas interferências de modo a deixa-los mais engraçado e, por certo, o caso da criança não deveria ser a ‘pitada de sal' que estaria faltando.

15- “Algumas pessoas só aprendem sofrendo”

Aqui eu presumi que o interlocutor estivesse falando sobre a alma da criança uma vez que, após a morte, a pessoa não poderia mesmo utilizar o que aprendeu. Mas se aprender é algo bom e a alma vai aprender com o sofrimento então, se Deus é realmente poderoso, ele poderia fazer esta alma aprender a mesmíssima coisa que aprenderia sofrendo, sem a dor. Se ele não pode faze-lo então ele não poderia ser todo-poderoso.

16- “Alteraria o livre-arbítrio das pessoas”

A garota não teve nenhuma opção em ir para a Igreja com os pais já que ela só tinha dois anos. Assim, ela não escolheu estar lá e nem ao menos sabia o que estava acontecendo. Então, se Deus conferisse-lhe uma morte rápida não estaria mudando a escolha de ninguém. Além disso, o hipotético ‘livre-arbítrio', sem entrar no mérito desta questão, está na escolha que se faz e não nos efeitos que esta escolha faria. Assim se eu tirar a faca da mão de meu filho, que a pegou na cozinha, eu não estaria tirando-lhe o arbítrio e sim atuando sobre os efeitos de sua arbitragem. Ele, obviamente, permaneceu com seu arbítrio incólume. O mesmo aconteceria se Deus interferisse em todos os males do mundo: Ele não estaria alterando o livre-arbítrio de ninguém, apenas atuando em suas causas.

17- “Os homens são todos pecadores”

Poderíamos perguntar qual foi o pecado que a criança de dois cometeu e se é justo que os inocentes devam sempre pagar pelos culpados. Entretanto, isso não é necessário uma vez que se Deus fosse bom e poderoso, não precisaria fazer com que maldade se pague com mais maldade. O objetivo de todo castigo ou punição é a aprendizagem. Não tem sentido castigar por castigar, a menos que o carrasco seja masoquista, o objetivo de uma punição sempre é a aprendizagem para que haja menos sofrimento no futuro. Sendo assim, para um ser todo-poderoso, tal aprendizagem poderia ser conseguida sem intermédio da dor.

18- “Deus não tem nada a ver com lógica”

Se um ser pratica maldades então ele não é bom; Se um ser é bom ele não quer que coisas ruins ocorram; Se um ser é bom ele não quer que coisas ruins ocorram, logo podemos confiar nele. Mas tudo isso é lógica então se Deus não tem nada a ver com a lógica também não podemos dizer que este ser seja bom, pois se fosse Ele teria que seguir a lógica de seres bons e se não segue esta lógica não podemos qualifica-Lo de Bom.

19- “Se Deus nos fizesse aprender Ele alteraria nosso Livre-Arbítrio”

O arbítrio é a forma com que se escolhe, com base no conhecimento que se tem, as diferentes opções que a vida nos oferece. A aprendizagem fornece o conhecimento e o conhecimento não é a escolha. O conhecimento é apenas a fonte de informações que podemos usar para fazer nossos julgamentos e então utilizar nosso arbítrio para escolher. Quando alguém nos ensina algo este alguém não está interferindo em nosso livre-arbítrio e sim nos dando mais conhecimento para que possamos arbitrar melhor, com menos chances de errar. Isso não quer dizer que não possamos escolher os caminhos que escolheríamos antes de obter este conhecimento. Podemos manter nossa opção anterior mesmo com o novo conhecimento. Assim, se Deus nos desse mais conhecimento, se nos fizesse aprender Ele não estaria alterando nosso livre-arbítrio apenas nos dando mais alternativas ou mostrando novas conseqüências sobre as opções que porventura fôssemos escolher.

Poderíamos argüir também que torturar uma criança até a morte para que outras pessoas porventura possam aprender é muito mais malévolo do que fazer estas mesmas pessoas aprenderem o que aprenderiam com esta barbárie sem, contudo, ter que sacrifica-la. O efeito final sobre as almas seria o mesmo e não teríamos o sofrimento inútil.

Veredicto do Julgamento

Após ter sido lido os autos da defesa e os contra argumentos da promotoria, concluímos que o Réu é CULPADO do crime de Omissão de Socorro e, com o agravante de ser todo-poderoso também co-responsável pelo episódio. Sendo assim, até que fatos novos apareçam, Ele está CONDENADO a INEXISTÊNCIA. A execução da pena deverá ser feita por meio da conversão do status do meme-vírus-deus de ativo para desativado. Isto deve ser assim porque é impossível retirar, pura e simplesmente, meme-vírus de uma mente. Esta desativação memética fará com que as mentes não mais acreditem que este meme-vírus crie uma ilusão de existir um ser exterior verdadeiro e passará então a ser uma simples lembrança de um tempo no qual as ilusões dominavam o ser humano. Será também um passo fundamental para que a justiça seja buscada aqui mesmo na Terra e não mais na esperança eterna da justiça divina.

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(*) As mensagens sobre Epícuro postarei posteriormente.

(**) http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=38942&tid=5172025


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