O
Risco da Crendice
VEJA - Edição 1 733 - 9 de janeiro de 2002
Daniel Hessel Teich Entrevista: Michael Shermer
Diretor de ONG americana que combate as superstições diz que vivemos
uma era de irracionalismo e que acreditar em tudo pode ser perigoso
"Pode parecer inofensivo acreditar em espíritos ou telepatia. Não
é. Quem acredita nisso pode acreditar em qualquer coisa" Holly
Freedman
O psicólogo americano Michael Shermer dedica-se há nove anos ao que
considera uma cruzada: em defesa do pensamento científico, ele combate
superstições, crendices e mitos. Suas armas são palestras que faz pelos
Estados Unidos, cursos no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech),
participações em programas de televisão e de rádio e sete livros sobre
o assunto. O último deles, Fronteiras da Ciência: onde o que Faz e o
que Não Faz Sentido Se Encontram, foi lançado no ano passado nos Estados
Unidos. Shermer é diretor da Sociedade dos Céticos, uma espécie de ONG
que tem entre os simpatizantes cientistas do calibre do paleontólogo
Stephen Jay Gould, um dos principais escritores de divulgação científica
do mundo. Colunista da revista scientific american, ele mantém um site
na internet dedicado a desmascarar charlatães. Quando não está debatendo
com crédulos de todos os matizes ou escrevendo livros, Shermer se dedica
a outras tarefas não menos desgastantes. É apaixonado por corridas e
enduros de bicicleta e participante assíduo de competições como a Race
Across America, que cruza os Estados Unidos de ponta a ponta.
Veja – Por que o senhor afirma que estamos vivendo
um momento de irracionalismo?
Shermer – Nós somos menos crédulos e supersticiosos do que eram as pessoas
há 500 anos. A história é outra se compararmos com 25 anos atrás. O
irracionalismo só tem aumentado. Pesquisas mostram que cada vez mais
se acredita em astrologia, experiências extra-sensoriais, bruxas, alienígenas
e discos voadores, na existência da Atlântida. Há uma lista enorme de
coisas absurdas. O espantoso é que não são apenas os lunáticos que crêem
nessas coisas. Muita gente com bom nível de educação também cai nessa.
São crenças pegajosas, que se fixam de forma muito mais forte do que
podemos imaginar.
Veja – Por que isso acontece?
Shermer – O irracionalismo tem aumentado principalmente por culpa da
comunicação de massa e da internet. As pessoas que vivem da exploração
dessas crenças são hábeis na exploração desses recursos. Usam técnicas
de vendas como telemarketing, anúncios e promoções. As religiões tradicionais
vêm perdendo muito espaço nos últimos anos, o que tem deixado um campo
aberto para crenças alternativas como paranormalidade e cultos da
nova era.
Veja – Não é paradoxal que isso aconteça no momento em que o conhecimento
e a ciência sejam tão difundidos?
Shermer – A explicação é simples. As pessoas procuram crenças que as
consolem, coisa que a ciência não faz. É mais fácil acreditar em crendices
e superstições que na ciência. As pessoas querem respostas para questões
de cunho moral, que a ciência não tem como responder. Nós não devemos
esquecer que todos os seres humanos, entre eles os cientistas e os céticos,
querem ter uma vida melhor. Sob esse ponto de vista, é difícil resistir
ao canto de sereia do misticismo.
Veja – O que o senhor acha do enorme sucesso no Ocidente de orientalismos
como o feng shui, a doutrina chinesa que propõe o uso da decoração e
da arquitetura para reequilibrar a energia das pessoas?
Shermer – As pessoas estão tentando dar sentido às coisas
a sua volta. Querem botar ordem num caos que não conseguem compreender.
Coisa parecida acontece entre as tribos animistas da Amazônia. Os índios
crêem que o mundo está repleto de espíritos e forças que ajudam a arrumar
esse caos e tratam de invocá-los como podem. É claro que os brasileiros
que vivem nas grandes cidades não levam a sério o animismo dos ianomâmis
e provavelmente ririam dos pajés se os vissem tentando arrancar os encantamentos
e os espíritos que eles acreditam ser a causa das doenças. Na verdade,
essas crenças dos povos primitivos têm tanto fundamento científico quanto
as bobagens oferecidas pelos
pajés do feng shui.
Veja – O senhor poderia enumerar algumas dessas crenças
que foram moda nos últimos anos e logo depois abandonadas como charlatanices?
Shermer – Todos se lembram dos famosos biorritmos, aquela história de
que era possível usar os ciclos do corpo que se repetem em ritmos regulares
para traçar previsões sobre a carreira, a vida amorosa e o futuro financeiro
de uma pessoa. Muita gente ganhou fortunas com isso e hoje ninguém mais
toca no assunto. Outra bobagem foi o Triângulo das Bermudas. Dizia-se
que era um lugar onde navios e aviões desapareciam misteriosamente.
Há ainda o poder das pirâmides, que se acreditava capaz de conservar
comida, afiar facas e até aumentar a potência sexual. É bobagem pura,
que ninguém mais leva em consideração. Há também as cirurgias psíquicas
nas Filipinas e na América do
Sul, mas já são menos freqüentes. Foram desmoralizadas depois que mágicos
demonstraram a facilidade com que se produzem os truques ditos paranormais.
Veja – O que o senhor pensa de quem acredita em duendes e bruxas?
Shermer – Adultos crêem nisso pela mesma razão por que acreditam no
feng shui. O ser humano é um bicho que se senta em torno da fogueira
e conta histórias. E com isso adquire experiência para enfrentar o mundo.
É assim desde os tempos das cavernas. Ocorre que, com a diversidade
de culturas, os povos fazem isso numa miríade de formas,
chamando as forças animistas de diferentes nomes. Duendes e bruxas são
dois entre milhares deles. O que importa é que por baixo de todos esses
nomes está a crença nas superstições e a necessidade de explicar o mundo
de forma mágica.
Veja – Como o senhor justifica a vantagem do pensamento científico sobre
o obscurantismo?
Shermer – A ciência é o único campo do conhecimento humano com característica
progressista. Não digo isso tomando o termo progresso como uma coisa
boa, mas sim
como um fato. O mesmo não ocorre na arte, por exemplo. Os artistas não
melhoram o estilo de seus antecessores, eles simplesmente o mudam. Na
religião, padres, rabinos e
pastores não pretendem melhorar as pregações de seus mestres. Eles as
imitam, interpretam e repetem aos discípulos. Astrólogos, médiuns e
místicos não corrigem os
erros de seus predecessores, eles os perpetuam. A ciência, não. Tem
características de autocorreção que operam como a seleção natural. Para
avançar, a ciência se livra dos
erros e teorias obsoletas com enorme facilidade. Como a natureza, é
capaz de preservar os ganhos e erradicar os erros para continuar a existir.
Veja – Acreditar em superstições é um comportamento de risco?
Shermer – A maior parte das pessoas pensa que acreditar em espíritos
ou telepatia é inofensivo. Não é. Por uma razão simples: quem acredita
em coisas para as quais não existe nenhuma evidência pode acreditar
em tudo. Da mesma forma que o consumo de maconha pode levar à heroína,
crenças simplórias em fantasmas e discos voadores podem
levar a outras mais perigosas.
Veja – Como é possível separar o que é ciência do
que é pseudociência?
Shermer – É uma tarefa complexa. Eu adoto um modelo para definir, de
um lado, a ciência consagrada e, de outro, a pseudociência. Entre ambas
há uma zona cinza,
fronteiriça. Nessa região ficam linhas de pesquisas feitas por profissionais
sérios, perscrutadas por publicações científicas de prestígio, mas que
têm objetos de estudo um tanto quanto exóticos. Podem, de um momento
para outro, cair tanto para o lado da ciência quanto para o da crendice.
Na área cinzenta estão a busca de vida fora da
Terra, a acupuntura e teorias econômicas, como o socialismo. Na área
da não-ciência estão a astrologia, a negação do holocausto e a ufologia.
Veja – A exploração de crendices é um grande negócio. O senhor tem como
avaliar o dinheiro que isso movimenta?
Shermer – Ninguém sabe exatamente quanto se movimenta nesse mercado
que envolve milhares de formas de ganhar dinheiro. Só os medicamentos
alternativos rendem dezenas de bilhões de dólares por ano. Assim, se
considerarmos todas as categorias juntas, eu calcularia o lucro da pseudociência
em 1 trilhão de dólares por ano. Temos de lembrar ainda que essa fonte
de ganho se torna ainda mais tentadora quando se trata de religiões
e seitas isentas de impostos.
Veja – Por que esse é um negócio para o qual parece não existir fronteiras?
Shermer – As pessoas gostam de acreditar que as coisas não acontecem
por si mesmas, mas por alguma razão ou motivo. Uma pesquisa mostra que
um dos motivos de as pessoas acreditarem em Deus é o fato de que o mundo
é tão bonito e o universo segue mecanismos tão delicados que seria impossível
não existir um criador para tudo isso. Esse é, de certa forma, um pensamento
baseado em conhecimento científico, nas relações de causa e efeito.
Precisamos levar em conta que nem sempre há motivos ou explicações para
tudo o que queremos.
Veja – Alguns cientistas tentam entender o poder da fé e das orações
na cura de doenças. O que o senhor acha desses estudos?
Shermer – Eles são falhos por três razões primárias. A primeira: não
há como comprovar cientificamente se as pessoas estudadas têm fé ou
se estão rezando. Elas dizem que têm, e ponto final. Segunda: muitos
desses estudos não avaliam variáveis importantes como idade, sexo, situação
socioeconômica, condições físicas, fatores que poderiam contribuir para
outros resultados. E, por último, a maioria dos resultados de um estudo
desses não pode ser repetida. As variáveis de análise são tão subjetivas
que um
estudo jamais terá o resultado semelhante ao de outro. Ou seja, essas
pesquisas não são nem um pouco confiáveis.
Veja – Por que uma das mais populares práticas místicas
gira em torno de pessoas que se propõem a conversar com os mortos ou
realizar curas com a ajuda deles?
Shermer – Porque a morte é um problema crucial para o homem. Todos nós
queremos acreditar que depois dela continuaremos a existir, seja na
forma que for. Os médiuns que convencem as pessoas de sua capacidade
de falar com os mortos validam as crenças de que de fato há vida após
a morte. Também oferecem um alento em meio à tristeza da
perda de uma pessoa amada. É confortante crer que o falecido está em
um lugar acessível com a ajuda da mediunidade.
Veja – O fato de ajudar as pessoas a superar a dor da perda não valida
essas práticas?
Shermer – Aqueles que exploram a dita mediunidade não estão ajudando
ninguém. São oportunistas que se aproveitam da emoção de pessoas fragilizadas.
A melhor forma de superar a morte é encará-la de cabeça erguida. A morte
é uma parte da vida, e fingir que o morto pode falar em estúdios de
TV ou salas escuras por intermédio de pessoas que cobram por seus serviços
é um insulto à inteligência dos que estão vivos.
Veja – O senhor acha possível acreditar no sobrenatural e ao mesmo tempo
estar a salvo de charlatães?
Shermer – O problema de acreditar em superstições é que a maioria das
pessoas que crê em uma delas acredita também em todas as outras. As
crendices estão fortemente relacionadas. Se você abandona a capacidade
crítica de pensar cientificamente, pode acreditar em absolutamente tudo.
Veja – Mas há pessoas que acreditam em astrologia e também na teoria
da evolução proposta por Charles Darwin.
Shermer – A maioria das pessoas tem um modo de raciocínio em que mantém
as crenças de forma isolada. Seria como se o cérebro fosse composto
de uma série de compartimentos a vácuo, com cada uma dessas coisas guardada
de maneira a não se misturar.
Veja – O senhor acha que as pessoas que acreditam em coisas estranhas
são propensas ao fanatismo religioso?
Shermer – Não acho que seja assim. As pessoas crédulas acreditam em
muitas coisas, isso para não dizer que crêem em qualquer coisa. Para
ser fanático é preciso uma crença fortíssima em uma única coisa.
Veja – O que o senhor diz a uma pessoa que acredita em vida após a morte
quando ela lhe pergunta se isso é verdade?
Shermer – Nós temos a obrigação de falar a verdade em todas as ocasiões,
a todas as pessoas, sejam elas adultos ou crianças. Não há nenhuma evidência
de que exista de fato vida após a morte. A questão é falar isso de uma
forma amigável e ponderada e mostrar que é possível levar a vida em
plenitude. Elas irão entender que não há grandes problemas em ser cético.
Veja – O que levou o senhor a se envolver numa cruzada contra as crendices?
Shermer – É simples. Eu sou um homem que acredita na ciência. Meu sonho
é ver nossa espécie sobreviver a nossas limitações e sair deste planeta,
procurar outras estrelas
parecidas com o Sol e partir para outras galáxias. O obscurantismo limita
nossa capacidade de ousar e de superar nossas limitações. Sem a ciência
não existe crescimento cultural ou material de uma sociedade.
Veja – O senhor tem algum tipo de crença religiosa?
Shermer – Eu me defino como um agnóstico, uma pessoa que acredita
naquilo que pode ser comprovado. Citando o biólogo Thomas Huxley, parceiro
de Darwin e pai do agnosticismo, sou daqueles que acreditam em Deus
como um problema insolúvel.