Revista VEJA Edição 1910 . 22 de junho de 2005
Entrevista: Ayaan Hirsi Ali
"O Islã é fascista"
Ameaçada de morte por fanáticos, a política
holandesa diz que qualquer sociedade que vive
sob os preceitos do Corão se torna patológica
Antonio Ribeiro
"Em teoria, nada diferencia um fanático cristão ou judeu de um fanático muçulmano. Na prática, eles se sentem mais à vontade no Islã"
Após descarregar toda a munição da pistola no cineasta Theo van Gogh, o fundamentalista islâmico Mohammed Bouyeri aproximou-se da vítima. Ajoelhado numa rua de Amsterdã, Van Gogh murmurou: "Tem certeza de que não podemos conversar?". O assassino cortou-lhe a jugular com uma faca de açougueiro e, com outra, espetou no cadáver uma carta endereçada à holandesa de origem somali Ayaan Hirsi Ali: "A próxima será você". Ayaan é parlamentar em seu país e roteirista de Submissão – Parte I, o curta-metragem de Van Gogh sobre a repressão sofrida pelas mulheres no Islã. Esse é um assunto que ela conhece bem. Aos 5 anos, sofreu excisão do clitóris. Aos 22, fugiu de um casamento arranjado com o primo pelo pai. Refugiada na Holanda, trabalhou como tradutora nos centros sociais para imigrantes e foi brilhante universitária de ciências políticas. Na semana passada, sete meses depois da ameaça de morte, Ayaan, uma negra longilínea de 35 anos, desceu de um carro blindado numa ruela de Paris. Escoltada por seis guarda-costas, falou com exclusividade a VEJA sobre sua renúncia ao islamismo, sobre fundamentalismo e sobre seu encontro com outra célebre vítima da violência religiosa, o escritor britânico Salman Rushdie (tema da reportagem especial desta edição).
Veja – Por que seus inimigos preferem a ameaça de morte ao debate de idéias?
Ayaan – A razão é simples: eles não têm nenhum argumento lógico para opor aos meus. Usam o instrumento dos perdedores, a intimidação. Num debate, eles sabem de antemão que seriam derrotados. O assassinato bárbaro de Theo van Gogh pretendeu mostrar o fim de quem ousa criticar o Islã. Enganaram-se. A dor da perda reforçou minha certeza. Essa gente deve ser confrontada. A tarefa dispensa o medo da controvérsia. O combate contra eles começa com a palavra.
Veja – Qual é o problema com o Islã?
Ayaan – O problema é o Corão e o profeta Maomé. É a mensagem à qual está sujeito 1,2 bilhão de indivíduos no mundo. O Islã não é só uma religião, mas uma civilização. Seu aspecto político e social, regido por códigos severos, contém sementes fascistas. É um sistema que espolia as liberdades do indivíduo e intervém na sua privacidade sem admitir ser contestado. Nenhum muçulmano é livre para questionar a sua crença religiosa. Ao contrário da Bíblia e do Talmude, livros sagrados dos monoteísmos abraâmicos semelhantes ao islamismo, qualquer exegese do Corão é inadmissível. Os muçulmanos devem crer, cegamente. Eu aprendi a decorar o Corão desde a infância, posso recitar suras inteiras. Algumas delas servem para justificar a violência, liberar a consciência dos seus autores e também dos observadores passivos. Segundo o livro sagrado do islamismo, os fiéis devem aspirar, em permanência, ao conhecimento. O mesmo livro diz que Alá sabe tudo. Toda fonte de conhecimento está contida no Corão. Pergunto, como conciliar as duas exigências? Qualquer comunidade que vive segundo os preceitos de Maomé e do Corão torna-se patológica.
Veja – Numa entrevista, a senhora qualificou o profeta Maomé de tirano e perverso. Por que pensa assim?
Ayaan – Disse isso e não nego, nem me arrependo. O calendário marca o ano de 2005, mas os fundamentalistas islâmicos exigem dos muçulmanos imitação perfeita de um comportamento tribal de 2.000 anos atrás. Maomé, o guia infalível, disse haver uma só verdade, e em seu nome revogou toda liberdade. Era um tirano, sim. Maomé seduziu e violou Zainab, a mulher de um pupilo. Isso não é perverso? Permita-me ir além. O profeta casou-se com Aisha, uma menina de 9 anos, filha do seu melhor amigo. Ele não esperou nem a criança atingir a puberdade, apesar da súplica paterna, para pedir a sua mão em casamento. Aisha foi prometida aos 6 anos de idade. Hoje no Irã, casamentos desse tipo são perfeitamente legais, freqüentes. Alguns muçulmanos reivindicam poder emular, sem entraves, esse modelo de moralidade. Trata-se de pedofilia pura. Na Holanda, Maomé seria levado pela polícia às barras de um tribunal.
Veja – Qual a diferença entre os fundamentalistas das diversas religiões?
Ayaan – Em teoria, nada diferencia um fanático cristão ou judeu de um fanático muçulmano. Na prática, eles se sentem mais à vontade no Islã.
Veja – Por quê?
Ayaan – Além de encontrar justificativa religiosa farta, a crítica dos membros de sua própria crença é quase nula. Quando o papa se posiciona contra o uso de contraceptivos, católicos do mundo inteiro contestam sem sofrer represálias. A cantora Madonna desperta antipatia em puritanos com a canção Like a Prayer, mas sua cabeça não está a prêmio. Ninguém degolou os humoristas do Monty Python por ter realizado o filme A Vida de Brian, uma sátira sobre Jesus Cristo exibida no mundo todo. Esse espaço de tolerância não existe no mapa do Islã, mesmo que muito almejado em silêncio. O Islã está como o pai do terrorista Mohamed Atta depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Traumatizado, desamparado, cego. "Meu filho não tem nada a ver com isso. Foi obra da CIA, dos judeus!" O pai não se deu conta da parte maléfica do filho. Recuso que uma religião, outrora pacífica, plena de força e energia, tenha no seu âmago o fanatismo e a violência.
Veja – Como a senhora descreve a situação das mulheres no Islã?
Ayaan – Numa cena do curta-metragem Submissão – Parte I, a câmera mostra o corpo da personagem Zainab, espancada pelo marido. Zainab está coberta por hematomas, feridas, cicatrizes e pelos versos do Corão que autorizam o marido a bater, caso ele julgue a esposa desobediente. Os fundamentalistas islâmicos ficaram irados ao ver os versos sagrados escritos no corpo de uma mulher. O resto, para eles, é normal. Tive um professor que me obrigava a escrever versos do Corão em tabulários. Um hábito em desuso desde o século XVI. Um dia, recusei-me a obedecer. Ele me vendou os olhos, levei uma surra até conseguir me livrar da venda. Encolerizado, ele me pegou pelos cabelos e bateu minha cabeça contra um muro. Desmaiei.
Veja – Como a platéia não religiosa respondeu ao filme?
Ayaan – De forma positiva, mas eu esperava uma dose maior de indignação dos liberais laicos, intelectuais e políticos da esquerda. O pessoal que acha ter o monopólio dos bons sentimentos. Na verdade, eles padecem do velho paradoxo da Revolução Francesa, que promoveu os direitos humanos em casa, mas manteve a escravidão nas colônias. Em nome da convivência multicultural, do respeito às tradições de outrem, esses intelectuais do Ocidente hesitam em colocar em evidência a situação subjugada da mulher dentro do Islã. Eles têm receio de ofender, de suscitar cólera, e assim ajudam a perpetuar o sofrimento e a injustiça. Ora, aqui não cabem relativismos. Abuso e mutilação sexual são crimes, e ponto final. Hoje, agora, já! Tampouco deve ser tolerado o assédio, a perseguição da qual são vítimas os homossexuais muçulmanos. Os ocidentais não podem fazer vista grossa nem calar, como já fizeram durante a existência dos gulags soviéticos. O Islã não viveu o Iluminismo. As sociedades islâmicas enfrentam os mesmos problemas do cristianismo anterior ao século XVIII. Ainda não se estabeleceu o justo equilíbrio entre razão e religião.
Veja – O que é a "obsessão do hímen", uma expressão que a senhora utiliza com freqüência?
Ayaan – No Islã, moças sem hímen intacto são consideradas "objetos usados". Muitas jovens, ao perder a virgindade, vêm para a Europa submeter-se a cirurgias reparatórias. Na Holanda, até bem pouco tempo atrás, em respeito ao multiculturalismo as imigrantes muçulmanas eram reembolsadas pela seguridade social. Aos 5 anos, fui submetida à clitorectomia, uma prática encorajada pelos clérigos islâmicos. Essa é a maneira extrema de garantir a virgindade antes do casamento. Na falta de uma mulher disponível, a minha excisão foi feita por um homem. Relatórios da ONU revelam que 98% das meninas na Somália são submetidas à excisão do clitóris. Os outros 2% são a margem de erro.
Veja – Pode haver convivência pacifica entre o Islã e o Ocidente?
Ayaan – Espero que sim. No entanto, posso afirmar sem equívoco, o Islã atual é incompatível com o estado de direito das democracias ocidentais. A sobrevivência das democracias ocidentais depende da sua vitalidade em defender os valores liberais. A escolha que o século XXI oferece aos muçulmanos é clara: modernidade ou regime tribal. Eu proponho às comunidades islâmicas fazer uma reflexão crítica da sua doutrina religiosa, a exemplo dos fiéis de todas as grandes religiões. Se dizem que é preciso rezar cinco vezes ao dia, vamos demonstrar, empiricamente, que isso é impraticável no âmbito de uma vida moderna. Eu proponho às comunidades islâmicas reter a espada que corta a cabeça de quem pensa por si mesmo. Onde não se pode criticar, todos os elogios são suspeitos. Caso eu estivesse num país muçulmano, já estaria morta. É do interesse tanto do mundo ocidental quanto do mundo islâmico promover a crítica entre os muçulmanos. Enfrentar o fundamentalismo é um objetivo comum.
Veja – Como foi seu encontro com o escritor britânico Salman Rushdie, que também teve de viver escondido por causa de ameaças religiosas?
Ayaan – Trocamos impressões sobre a vida cativa. Ela coloca em risco pessoas próximas e, devido a isso, inibe até iniciar relacionamentos amorosos. Ele me aconselhou a seguir firme em frente, sem deixar que essa situação me enlouqueça. Ambos sabemos que haverá sempre um fanático em nosso encalço. Eu relatei a ele uma história da minha juventude. Quando o aiatolá Khomeini emitiu um fatwa contra Rushdie, eu era uma estudante devota da Escola Secundária de Meninas Muçulmanas de Nairóbi, no Quênia. Eu e minhas colegas ficamos, imediatamente, solidárias com o líder iraniano que tomava a defesa do sagrado Corão e punia o autor de um romance, suposta blasfêmia contra o profeta Maomé, nosso venerável guia. O fato vinha corroborar nosso aprendizado diário, a indignidade dos kafirs, os infiéis, os não muçulmanos. A primeira coisa que veio a minha cabeça foi: "Esse Rushdie deve ser morto".
Veja – O que ele disse?
Ayaan – Rushdie sorriu. Foi gentil ao lembrar que, na época, eu era apenas uma garota.
Veja – Por que a senhora propõe fechar as escolas muçulmanas na Holanda?
Ayaan – Os professores das escolas muçulmanas holandesas ensinam a ser hostil às leis do país. Dizem aos seus alunos: "Nós vivemos na terra do inimigo, somos subjugados pelas leis dele. A lei suprema é a vontade de Alá, revelada pelo arcanjo Gabriel a Maomé, transcrita no Corão". Esses estabelecimentos de ensino público recebem ajuda do governo. Não, não e não! A escola deve ser um lugar neutro, com o objetivo de preparar os alunos para a vida numa sociedade sintonizada com seu tempo, fundada no espírito crítico e no ensino da cidadania. Os holandeses, que vivem em um dos países mais tolerantes da Europa, ficam exasperados de ver, em manifestações de rua, jovens muçulmanos holandeses gritando "Hamas, Hamas! Judeus para a câmara de gás!".
Veja – A Turquia deve ser aceita como integrante da União Européia?
Ayaan – Sim, desde que o governo turco implemente, durante o período de candidatura, as medidas exigidas pela União. Elas beneficiarão os turcos em geral e, em particular, as mulheres muçulmanas, que terão seus direitos mais bem respaldados. Já se percebem alguns passos tímidos nessa direção. A questão geográfica, se a Turquia pertence ou não à Europa, é hipócrita. Por trás dela estão o preconceito da extrema direita nacionalista européia e o medo da competição de mercado que atormenta os partidos da esquerda demagógica. A objeção geográfica nunca foi apresentada quando convidaram a Turquia para ingressar na Otan. Negar a inclusão da Turquia reforçaria a posição dos fundamentalistas muçulmanos turcos. Trava-se atualmente uma batalha de corações e mentes contra o islamismo político. Veja os efeitos catastróficos da tortura a que soldados americanos submeteram os prisioneiros iraquianos da penitenciária de Abu Ghraib. Os fundamentalistas acharam ótimo.
Veja – Líderes das comunidades muçulmanas européias a acusam de projetar uma experiência de vida traumática sobre um grupo inteiro. Aceita essa crítica?
Ayaan – Isso é uma estratégia conhecida para desviar-se da verdadeira questão: o Islã quer ir para a frente ou para trás?
Veja – A senhora abandonou a sua religião, tornou-se apóstata. Mas, se um dia encontrasse com Deus, o que gostaria de ouvir dele?
Ayaan – Você é verdadeira.
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Revista Folha 26/06/2005
Foco no islamismo após o 11 de Setembro fez crescer o interesse na cultura muçulmana
Karime Xavier
Adílson Dias, 35, ex-católico-umbandista
Alá na cabeça
por Roberto de Oliveira
fotos Karime Xavier
Para entrar no mundo de Alá, basta um gesto simples: testemunhar diante de um muçulmano que não há outra divindade além de Deus e que o profeta Muhammad é o último de seus mensageiros. Para quem vive em um país sem vínculo histórico com o islã, o passo seguinte --praticar a religião-- não é tarefa fácil. Mas, se esse país for o Brasil, há sempre um "jeitinho".
A julgar pelas estimativas, os desafios impostos por um país majoritariamente cristão parecem não funcionar como empecilho aos novos seguidores de Alá. No Estado de São Paulo, os muçulmanos passaram de 300 mil para 400 mil nos últimos três anos, segundo estimativa da Wamy (Assembléia Mundial da Juventude Islâmica) e da Comunidade Muçulmana no Brasil. "Em média, 40 brasileiros por mês se convertem ao islã", diz o xeque Jihad Hammadeh, 40, vice-presidente das duas entidades. Número baixo se comparado ao dos milhares arrebanhados pelas igrejas evangélicas, mas surpreendentemente alto se considerarmos que o islã segue na berlinda da mídia mundial depois dos atentados do 11 de Setembro.
Apesar da escassez de informações oficiais e das previsões hipotéticas a respeito da difusão da religião no Brasil, a expansão do islã é um fenômeno global inconteste, afirmam estudiosos (leia texto na pág. 14).
O mais famoso brasileiro recém-convertido é o atleta Jadel Gregório, 24, que adentrou o mundo islâmico em dezembro passado. Em março, o triplista se casou com Samara Abdul Ghani, de origem libanesa. Com a união, ele pretende adotar oficialmente o nome Jade Abdul Ghani Gregório.
No Brasil, a maioria dos "revertidos" --pelo Alcorão, todos nascem muçulmanos, se convertem a uma determinada religião e depois regressam ao islamismo-- é formada por mulheres de classe média, dos 20 aos 40 anos, que abandonaram o convívio com o catolicismo e o pentecostismo, principalmente. Exibem um perfil diversificado: de servidores a profissionais liberais, de estudantes a desempregados.
O último dado oficial é do IBGE. No censo de 2000, foram registrados 27.239 muçulmanos no país --a Wamy acredita que cheguem a 1,5 milhão, espalhados por cerca de 70 mesquitas.
"É complicado ser muçulmano num lugar como o Brasil, cheio de descontração", conta Maria Silvana Pereira, 34, a Jade, dançarina do ventre, ex-católica, que declarou sua fé há cinco anos, depois de ter ficado "encantada" com a cultura islâmica.
O encanto inclui, no caso de Jade, a sublimação de certos fundamentos da religião. "Arranho um pouco no árabe, mas não faço as cinco orações diárias. Sempre beijo as pessoas no rosto. Eles condenam inclusive minha dança. Algo me diz que estou pecando", desabafa. Pelo Alcorão, Jade sabe que peca. Mas não pensa em abandonar a dança nem a religião. "No Islã, Deus perdoou Adão e Eva. Deixei de carregar aquela culpa."
Com sombra nos olhos, brinco de argolas e uma rosa tatuada no pulso esquerdo, Jade diz que é uma mulher que "não se deixa dominar". Seu testemunho aconteceu em uma mesquita, onde mulheres não entram sem véu e ficam sempre atrás dos homens. "Planejo usar o véu, só não sei como vão lidar com ele onde trabalho."
Muçulmana punk Adotar o "hijab" (véu) --cuja função é "proteger" a mulher da cobiça masculina-- também é a sina da auxiliar administrativa Fernanda Mendonça, 19, filha de católicos não-praticantes, ex-freqüentadora das igrejas Batista e Testemunhas de Jeová, há dois anos muçulmana por conta de uma promessa para salvar a mãe de uma doença grave. Quem vê Fernanda na mesquita não imagina que o véu encubra um cabelão cor de cereja, estilo punk, na linha da atriz Franka Potente, de "Corra, Lola, Corra".
"Estou me acostumando aos poucos. Tenho uns 15 véus diferentes, mas quero juntar cem para combinar com tudo e usar no dia-a-dia. Acho um charme."
Na interpretação de Fernanda, ser muçulmana implica uma série de renúncias. "Mais do que referência religiosa, o Alcorão é um guia de conduta", descreve. Ao contrário do que muitos pregam, ela não se sente discriminada no islamismo. "A mulher é uma jóia. E jóias não devem ser exibidas, mas guardadas com amor", diz, citando o livro sagrado dos muçulmanos.
A relação dos neoconvertidos com o islã ocorre às margens das comunidades tradicionais árabes e busca identidade própria. Afinal, não é a mesma coisa ser muçulmano no Oriente Médio e no Brasil, assim como é diferente ser católico na Argentina e nos EUA. "Quantos são os islamismos dentro do chamado mundo árabe? Certamente podemos observar muitas interpretações do Alcorão que levam a diferentes normas de conduta", analisa a antropóloga Regina Novaes, do Iser (Instituto de Estudos da Religião).
Quem já viajou para países de maioria maometana sabe que as convocações feitas pelos muezim (religioso que chama para as cinco orações diárias) não costumam ser atendidas com tanto fervor.
Nesse quesito, há quem diga que os brasileiros neo-islâmicos demonstram comportamento exemplar. "Eles estudam muito. Conheço brasileiros mais fiéis que árabes", diz a libanesa professora de artesanato Abla Assaad, 39, 20 deles no Brasil.
"Acho um milagre deixarem a religião deles em português e entrarem na nossa", completa a dona-de-casa Zeina Jaber Aref, 40, também libanesa. "Não uso véu, não faço as cinco orações todos os dias. Os brasileiros tentam fazer tudo certinho", confessa a secretária Keide Taha, 45, filha de árabes.
Mohamad Ismail Mazluom, 46, libanês, há 18 anos no Brasil, acha que faltam informações em português para orientar melhor os brasileiros. "O idioma é o maior obstáculo." De olho no crescimento dos revertidos, Mohamad criou há seis anos a Caravana da Fé, empresa que traduz CDs, livros e o Alcorão para o português.
Outro exemplo de versão brasileira é a "mussala" (sala de orações) Bilal al Rabachih, a primeira mesquita com base administrativa majoritariamente negra, inaugurada no último dia 12 em dois andares de um prédio da praça da República. Lá, o português é a língua oficial.
"Aqui não há preconceito como no lado dos árabes", diz o ex-rapper e comerciante Diogo Rodrigo Cornélio Pinto, 22, que virou Muhammad Umar cinco anos atrás e freqüenta a "mussala" da República ao menos três vezes por semana.
Criado entre o catolicismo e o candomblé, Muhammad se converteu por influência de rappers americanos pacifistas, como KRS-One.
Inspiração política O preconceito não está circunscrito às facções étnicas, acha Ali Achcar, 34, filho de libaneses cristãos ortodoxos, há 16 anos no islã, oito deles na Arábia Saudita. Segundo ele, sinais de intolerância também se manifestam nas ruas da cidade. "As pessoas te chamam de Bin Laden, não dá para parar em qualquer lugar para rezar, arrancam os véus das mulheres, fazem piadas", diz.
Xeque do Centro de Divulgação do Islã para América Latina, Ali não raspa a barba desde 1990 --orientação do Alcorão-- e sempre veste a "galabia" (camisolão). Chama a atenção por onde anda. "Estou acostumado. O difícil mesmo é ficar só, sem carinho", diz ele. Sexo? Jura que há muito tempo não pratica.
Também inspirado por um artista negro engajado, Adílson Dias, 35, foi levado ao islã pelos filmes do cineasta Spike Lee, diretor de "Faça a Coisa Certa" e "Malcom X". "O cinema me incentivou a pesquisar. Descobri que o primeiro grande contingente de muçulmanos que chegou ao Brasil era formado por escravos. Em 1835, eles participaram da Revolta dos Malês, na Bahia, uma rebelião contra a escravidão", conta Suleyman Assuad, ex-Adilson e ex-católico-umbandista. "Foi uma motivação política que me levou a Alá."
O xeque Jihad acha que a reflexão política é o principal fator que move os brasileiros em direção ao Alcorão. "Depois do 11 de Setembro, a exposição maciça do islã fez com que se questionasse o que era fato ou invenção." Ele argumenta que a ação dos EUA em conflitos mundiais também pode ser pivô desse interesse.
A professora de história contemporânea da USP Maria Aparecida de Aquino descarta essa relação. Num país de religiosidade muito presente, o trânsito entre as crenças é um fenômeno constante e natural, diz ela. "Há cerca de 15 anos, tivemos o crescimento das igrejas pentecostais, principalmente as midiáticas, como a Universal do Reino de Deus. Na seqüência, houve a movimentação em torno dos católicos carismáticos", explica. "A religiosidade brasileira é receptiva. Talvez no islamismo os fiéis estejam procurando uma igreja mais ativa em todos os sentidos, que insira uma participação mais direta de seus seguidores", diz.
Para a antropóloga Regina Novaes, o país tem como característica promover o encontro de doutrinas diferentes, produzindo novas sínteses. "Há uma predisposição sincrética na nossa cultura. Teremos um islamismo à brasileira? Existem chances."
Maria Aparecida vai além. A professora enxerga na desesperança política uma forma de o brasileiro embutir na religião alguma solução imediata.
Num cenário dominado por intrigas e "mensalões" a perder de vista, o terreno parece mais que fértil.
http://www1.folha.uol.com.br/revista/rf2606200505.htm
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Glossário
Ablução ritual de purificação antes das orações; umedecem a cabeça e lavam mãos, rosto, braço, orelhas e pés
Allahu Akbar "Deus é supremo". Expressão de louvor utilizada em diferentes situações do dia-a-dia pelos muçulmanos
Almuadem ou muezim religioso voluntário responsável por convocar os muçulmanos a orar. Nos países islâmicos, os chamados são feitos por alto-falante dos minaretes (a torre da mesquita). No Brasil, as convocações só são feitas dentro da mesquita
Imã literalmente, "aquele que está à frente", líder, religioso que comanda a oração; também se refere àquele que lidera a comunidade
Jihad "esforço" empreendido na causa de Deus. Consiste no esforço que o muçulmano deve desempenhar para difundir e proteger o islamismo. Também pode significar esforço interior no sentido de eliminar maus hábitos. Segundo os muçulmanos, ficou caracterizado erroneamente como "guerra santa"
Muçulmano em árabe, "aquele que se submete a Deus". Nem todo muçulmano é árabe e nem todo árabe é muçulmano
Qibla direção de Meca, para onde os muçulmanos se voltam quando rezam
Ramadã mês em que o profeta Muhammad recebeu a primeira revelação divina. Ocorre no nono mês do calendário lunar islâmico, que começa em 622 d.C. Do amanhecer ao pôr-do-sol, os muçulmanos jejuam e se abstêm de relações sexuais
Shahãdah (pronuncia-se sharrada): testemunho de conversão. O convertido recita: "Não há divindade senão Deus e Muhammad é o Seu mensageiro"
Sunitas os que aceitaram a sucessão após a morte de Muhammad e seguem a "sunnat annabi" (tradição do profeta). Cerca de 85%
Xiitas de "shiaat Ali" (partido de Ali), os que defendem Ali --primo e genro de Muhammad (casado com sua filha Fátima) como sucessor
Fontes: Ahmad Osman Mazloum (xeque da mesquita de Mogi das Cruzes); Alessandro Souza (Sociedade Beneficente Muçulmana); Ali Achcar (Centro de Divulgação do Islã para América Latina); "Folha Explica O Islã", de Paulo Daniel Farah; Marcia Zaia (pesquisadora da PUC)
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Karime Xavier
Os cinco pilares
1 - Testemunhar que "Não há divindade senão Deus, e Muhammad é um mensageiro de Deus"; ou seja, ninguém mais deve ser adorado e idolatrado salvo Deus
2 - Orar cinco vezes ao dia em direção a Meca --berço do islamismo e lugar sagrado
3 - Pagar o tributo (zakat), que corresponde a 2,5% da renda anual do muçulmano, para caridade; não se paga o zakat para instituições, somente para pessoas carentes
4 - Jejuar no mês do Ramadã (flexível, de acordo com o calendário lunar; neste ano será em outubro), época em que comer, beber e manter relações sexuais são atividades proibidas entre a alvorada e o anoitecer. E o castigo por cada pecado é dobrado, assim como a recompensa por cada bondade é multiplicada por 70 até 700 vezes
5 - Fazer a peregrinação a Meca (Hajj) pelo menos uma vez na vida, para quem tem condições físicas e financeiras
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Sai o muezim e entra o CD
Nem sempre a vontade fala mais alto. Aos quatro anos de idade, o indonésio Soleh Sumantri participava de campeonatos para eleger a melhor voz entre garotos de uma escola islâmica em sua terra natal, Bogor, a "cidade das chuvas", a cerca de 60 km ao sul da capital, Jacarta.
Nunca saiu de lá vencedor. Em contrapartida, acumulou um repertório em árabe, mas jamais abandonou a aspiração pelo canto. Aos oito anos de idade, Soleh tornou-se uma espécie de mascote de almuadem ou muezim --aquele que anuncia, em voz alta, do alto das almádenas, a hora das preces-- de uma mesquita local. "Sempre me emocionei cantando para as pessoas virem orar", conta.
Nove anos atrás, Soleh, 34, veio com a mulher tentar a sorte no Brasil, depois que seu primeiro filho morreu, aos nove meses, de infecção. Instalou-se em um casa anexa à mesquita de Mogi das Cruzes. Aqui, teve um casal de filhos e voltou então a exercer a função de muezim, desta vez não mais subindo aos minaretes, mas fazendo uso de microfone.
A mesquita de Mogi das Cruzes é uma das únicas do Brasil a emitir o chamado externo para os muçulmanos rezarem. Dos quatro alto-falantes instalados em um minarete a 42 metros de altura, Soleh anunciava: "Deus é o maior" (repetido quatro vezes); "Testemunho que não há divindade além de Deus" (duas vezes); "Testemunho que Muhammad é um mensageiro de Deus" (duas vezes); "Vinde à oração" (duas vezes); "Vinde ao sucesso" (duas vezes); "Deus é o maior" (duas vezes); "Não há divindade além de Deus" (uma vez). Quinze frases, contando as repetições, emitidas na língua árabe durante cerca de três minutos.
Há seis meses, Soleh se lembrou da sensação desagradável de derrota da época em que participava dos concursos escolares de canto: no início deste ano, o indonésio foi substituído por um CD com gravações das vozes de almuadem de Meca, Medina e Jerusalém, cidades sagradas dos muçulmanos.
"Trabalho como eletricista, e o meu patrão não me deixa sair para anunciar as preces. Agora, só faço isso quando estou de folga. Fiquei chateado, mas preciso do emprego", diz. "Levo meu tapete e faço minhas orações diárias na loja. Contra isso, ninguém reclamou."
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Um islã brasileiro?
[por Peter Demant]
O islã é a segunda maior religião mundial --e aquela que mais cresce devido a três fatores. Em primeiro lugar, a maioria do 1,3 bilhão de muçulmanos mora no vasto arco que se estende da África ocidental até a Indonésia, passando por Oriente Médio e Índia: países pobres com alto índice de natalidade. Segundo, o islã é uma fé expansionista, "monopolista da verdade". Embutida nela há a obrigação de converter todo o mundo.
A única outra religião com taxa de crescimento comparável são os evangélicos protestantes. Na África, em particular, as duas estão numa competição acirrada. Além disso, uma vez convertido, o novo muçulmano não pode mais desistir. Como resultado, o islã, que além de princípios dogmáticos proporciona um estilo de vida abrangente e um controle social mútuo, sofre menos erosão do que outras religiões.
Diásporas muçulmanas concentradas encontram-se hoje na Europa e nos EUA. Na América Latina, os muçulmanos, na maioria descendentes de imigrantes sírio-libaneses ("turcos") e de escravos de origem africana islamizada, são tradicionalmente mais dispersos, menos numerosos e visíveis. Tal quadro começa a mudar, pois aqui também estamos assistindo a uma expansão.
Não há estatísticas confiáveis, mas é possível especular sobre as causas do crescimento no Brasil. Primeiro: a volta à religiosidade de pessoas formalmente já muçulmanas, mas assimiladas ou alienadas da fé ancestral (fenômeno encontrado em outras religiões).
Pregadores islâmicos pescam também numa segunda lagoa: os jovens excluídos e marginalizados das grandes cidades. Eles encontram Deus e um novo sentido numa fé que reestrutura a vida através de regras, deveres e proibições puritanas e relativamente simples. O processo lembra o das várias igrejas evangélicas competindo no "mercado da felicidade". E, como estas, os "renascidos em Alá" podem depois, graças ao apoio da comunidade solidária e à repressão ao sexo livre, álcool e drogas, combinar a rejeição da sociedade "decadente" que os cerca com um desempenho bem capitalista.
Uma terceira fonte de convertidos são os grupos que se sentem discriminados e buscam uma nova identidade coletiva e mais política, desafiadora do sistema ocidental predominante. Nos EUA, mais de um milhão de negros pertence à "Nação do Islã", religião sincrética militantemente antibrancos e separatista (Malcolm X foi um de seus porta-vozes). O fenômeno poderia se repetir aqui, e não se limita necessariamente a um critério racial. Uma minoria pode até escorregar para tendências violentas.
Porém o islã é muito mais pluriforme do que se imagina. Fundamentalistas terroristas, embora super-representados na mídia, constituem apenas uma ínfima minoria. O islã contém em seu bojo tendências mais místicas e tolerantes, tais como os sufis. Essa linha pode atrair um quarto grupo, de pessoas em busca de uma espiritualidade mais esotérica, com um perfil semelhante ao daqueles que abraçam o budismo ou a meditação transcendental.
O Brasil, tolerante para uma grande quantidade de crenças, será um chão igualmente fértil para uma religião austera como o islã, à primeira vista pouco condizente com a (talvez ilusória) sensualidade que é a marca de exportação de nosso país? Por enquanto a questão está em aberto...
Peter Demant, 54, historiador especialista em Oriente Médio, é professor de relações internacionais na USP e autor de, entre outras obras, "O Mundo Muçulmano" (Contexto, 2004).
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